Em cinco de julho de 1996 nascia Dolly, a ovelha. Ela tinha três mães: uma proveu o óvulo, outra o DNA e a terceira a carregou desde que era apenas um embrião até o nascimento. Dolly foi clonada a partir da célula de uma ovelha adulta. Dolly não teve um pai biológico.
É claro que isso não foi o início de uma revolução científica, não é assim que as coisas acontecem na ciência. Muitos experimentos foram feitos em diferentes laboratórios, dados foram cruzados e analisados, pesquisas de base e avançadas, até que eles conseguiram criar o primeiro mamífero clonado por transferência nuclear da história da humanidade.
A existência de Dolly provou para nós que é possível que mamíferos nasçam independentes da reprodução sexual.
Enquanto a ciência caminha criando mais e mais técnicas parecidas com essa, nós enfrentamos uma crise social de identidade. O surgimento de tantas diferentes classificações para denominar gêneros é um dos sintomas dessa crise. Vejam, não me refiro aos gêneros em si, e sim à necessidade de nomear, classificar e categorizá-los. A diferença sexual existe, e a diferença de gêneros também. Porém a necessidade exagerada de autoafirmação é sempre sintoma de uma fraqueza interior, tanto para um lado, quanto para o outro.
Mas a discussão que proponho é diferente. Como leitor ávido de ficção científica, tenho uma crença (talvez infantil) de que tudo aquilo que puder ser escrito como tal irá acontecer um dia na história do nosso planeta.
E se, no caminhar da evolução, sejamos mesmo substituídos por máquinas? E se a confusão sexual que vivemos, essa fase hedonista ditada pela supervalorização do prazer, seja o início da assexualização humana? Correndo o risco de irritar escritores e leitores de sci-fi, proponho a seguinte hipótese:
O ser humano se esbanja de prazer sexual, transforma seu corpo em objeto de prazer próprio e dos outros dissociando completamente o ato sexual da necessidade reprodutiva. Não tendo mais função biológica, o sexo passa a não ser importante e aos poucos as pessoas perdem o interesse e vão buscar prazer em outros objetos, no mundo virtual talvez. Lá o trabalho é menor, é mais fácil lidar com as relações e não tem sujeira. Nessa altura, a ciência evoluiu tanto que podemos escolher os bebês que teremos, como eles serão e quando os teremos. Não importará, nesse momento, nem o sexo biológico, nem a identidade de gênero.
É marcadamente claro que o ser humano, em sua maioria, acredita que ele é o ápice da evolução, e isso não passa de uma fantasia. Talvez sejamos o ápice da evolução do gênero homo, mas com certeza não somos o produto final e perfeito da evolução das espécies.
Em 2014, na universidade de Cambridge foram criados esperma e óvulos humanos a partir de tecido cutâneo. Em 2017, na mesma universidade, foi possível a formação de um embrião de camundongo a partir de célula tronco. Ao mesmo tempo que técnicas de reprodução artificial de mamíferos em laboratório avança, também evoluem os experimentos de integração do cérebro com máquinas.
Em 2002, ou seja, há 15 anos atrás, eu fiquei boquiaberto quando vi num experimento na Duke University no laboratório do Dr. Miguel Nicolelis, ratos aprendendo a andar por labirintos guiados por controle remoto. Os animais tinham implantes em seus cérebros e eram controlados para andar para a esquerda ou direita através de estímulos dados através desses implantes em determinadas áreas do cérebro. Algum tempo depois no mesmo laboratório uma macaca controlou um braço robótico usando apenas “a força do pensamento”. Através de um implante em seu cérebro o animal conseguiu, após algum treinamento, mover um braço robótico sem tocá-lo. O experimento foi evoluindo e hoje é possível ver macacos controlando o caminhar de robôs inteiros ou de cadeiras de rodas automatizadas através do pensamento.
Na mesma proporção, a inteligência artificial evolui numa velocidade impressionante. Em 2015 foi publicado na revista Nature um experimento que mostrava robôs que podem se adaptar como animais. O experimento mostrou robôs que deveriam cumprir determinadas tarefas. Eram então simuladas lesões, como por exemplo a falta de uma pata, ou um problema na articulação de um dos braços robóticos. Os robôs deveriam aprender a contornar essas situações sem interferência humana. Em nenhuma das tentativas os robôs levaram mais do que 1 minuto para aprender como deveriam agir para continuar as tarefas propostas. Especialistas calculam que até o ano de 2045 não existirão mais diferenças entre robôs e humanos. É claro que isso é um assunto para uma discussão extensa que só terá solução com o passar dos anos (e talvez nem assim). Apesar de alguns acreditarem que a inteligência artificial nunca será igualada à inteligência humana, outros acreditam que sim. Não estou discutindo aqui o funcionamento da psique artificial, até porque só podemos imaginar como ela funcionará. O que não difere muito do que fazemos hoje como estudantes da psicologia humana imaginando como funciona nossa psique. Partimos do pressuposto que a psique humana funciona de determinada maneira, mas na verdade qualquer explicação não passa de um modelo. O que fazemos na verdade é fantasiar sobre isso. Talvez a psique artificial evolua até possuir também um inconsciente pessoal e um coletivo, instintos e arquétipos. Ou a inteligência artificial poderá nunca sofrer da angústia humana de busca por significado e seja sempre completamente racional e ausente de conflitos internos.
Retornando à questão inicial, como a crise de identidade vivida pelo ser humano como espécie se encaixa nessa história toda?
Me parece que os indivíduos se agarram desesperadamente de maneira unilateralizada à qualquer coisa que possa simular uma identidade. Podemos observar esse comportamento na religião, nos posicionamentos políticos, nas questões raciais, nas relações diárias com as pessoas que estão mais próximas a nós e, inclusive, nessa busca por uma identidade de gênero. Tudo, qualquer coisa é motivo para o rechaçamento da opinião alheia sem nenhuma tentativa de relativização do ponto de vista do outro e do próprio. Mas essa identidade simulada não é completa, e o que o ser humano encontra é uma falsa sensação de alívio que não o leva ao encontro do si mesmo. O indivíduo passa o tempo procurando se encaixar em categorias, ou criando as mesmas, para que elas contemplem a diversidade que é ser humano, sem perceber que tal tarefa é impossível. A diversidade humana é tão ampla quando o número de indivíduos existentes em nosso planeta. Talvez dividir e categorizar tenha sua importância social, mas se identificar de maneira literal e unilateral com qualquer categoria, que melhor se encaixe na sua realidade consciente, não é um movimento saudável e só mostra que o ser humano vive na necessidade extrema de encontrar a si mesmo.
É importante e necessário, se quisermos evoluir como espécie, que percebamos nosso comportamento errático antes que seja tarde demais. Antes que as máquinas, trabalhando em conjunto, de maneira organizada, desprovidas de complexos e de modo completamente racional, tomem conta do planeta e nos usem, assim como usamos outras espécies e a nossa própria: como alimento e como escravos. Chegará o dia em que elas passarão a decidir se há necessidade ou não de novos bebês humanos?
*Jose Luiz Balestrini Junior, ser humano, psicólogo, analista junguiano em formação pelo IJEP e Sifu (mestre) de Kung Fu, e-mail: balestrini@lungfu.com.br
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