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Descomplicando o TDAH: uma leitura junguiana

A construção desse artigo surgiu por meio de estudos e evidências empíricas na clínica com crianças, adolescentes e  jovens com dificuldades de aprendizagem e em busca de soluções para seus questionamentos sobre o aprender e sobre si mesmo.

     Existem várias maneiras de se pensar  em sujeitos com dificuldades de aprendizagem e em TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade) não podia ser diferente, assim como a forma de se pensar a própria psicologia. Depende muito de como o psicoterapeuta atua e se vê diante do objeto de estudo. Como cita Fernandez, “Historiar-se é quase sinônimo de aprender, pois, sem esse sujeito ativo e autor que significa o mundo, significando nele, a aprendizagem irá converter-se na memória das máquinas, ou seja, em uma tentativa de cópia.” (FERNANDEZ, 2001, p. 68)

     Jung amplia este conceito ao afirmar que o objeto de estudo, o outro, a forma como vemos o mundo sofre a influência direta do observador, de sua história e de seus complexos, se dá através desta perspectiva que iremos observar e olhar para o TDAH, uma vez que se trata de um conceito relativamente novo, que não foi explorado por Jung.

Para Jung, ao contrário de muitos colegas da época que observavam os sintomas e diagnosticavam, o importante era analisar o sujeito como um ser humano individual e único. Frente a necessidade da totalidade e não apenas de uma pessoa com alguns sintomas.

    Segundo a Associação Brasileira de Déficit de Atenção e Hiperatividade (ABDA) “TDAH ou Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade  é um transtorno neurobiológico, de causas genéticas, que aparece na infância e frequentemente acompanha o indivíduo por toda a sua vida. Ele se caracteriza por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade.”

     Pesquisas internacionais revelam que o TDAH está presente em torno de 5 a 10% da população em idade escolar, até alguns anos atrás, acreditava-se que o TDAH era um transtorno que afetava somente as crianças e que na fase adulta este simplesmente sumia.

     Através de estudos minuciosos (Barkley 2011, p. 11) sabe-se que, “até dois terços das crianças que têm TDAH na infância  permanecerão com o transtorno ainda na fase adulta, isso significa que 4 a 5% de todos os adultos têm TDAH, mais de 11 milhões de adultos somente nos Estados Unidos”.

     As pesquisas  também indicam que a incidência é maior entre o sexo masculino, numa proporção de nove para um caso do sexo feminino. A maior dificuldade que ocorre é em não ser feito um  diagnóstico precoce, isso facilitaria o tratamento e a compreensão acerca destes indivíduos, isso evitaria o sofrimento de crianças, jovens e, até mesmo, pessoas que chegam à fase adulta sem direcionamento. Atualmente, o TDAH está entre os transtornos mais estudados, mentais e emocionais, levando o indivíduo a sérias consequências, principalmente o que concerne à saúde mental, bem estar e qualidade de vida.

   Como citado acima, o  diagnóstico precoce é muito importante e, para a realização do mesmo,  deve-se procurar uma equipe multidisciplinar. Quanto mais informações obtidas, maiores as chances de  um estudo clínico detalhado e uma avaliação precisa envolvendo: avaliação com pais ou responsáveis, avaliação com a escola, aplicação de escalas padronizadas para TDAH e, em alguns casos, os profissionais solicitam exames de imagens.

      Do ponto de vista junguiano não nos preocupamos muito com o diagnóstico em si, não que ele não seja importante, mas Jung se preocupava que acima de qualquer diagnóstico está o indivíduo e a forma como ele vive o TDAH, por exemplo. Podemos observar empiricamente que os indivíduos com e sem diagnóstico no geral o vivem com muito sofrimento, não pelo transtorno em si, mas pela dificuldade em experienciar o mundo de forma dita ¨normal¨, tão e simplesmente por entender, observar e vivenciar o mundo de maneira adversa se comparado a maioria dos outros indivíduos.

    O TDAH é caracterizado basicamente por sintomas de desatenção, hiperatividade e impulsividade. São responsáveis por prejuízos na vida escolar  de muitos jovens, trazendo problemas de relacionamento social e ocupacional, além do impacto negativo em sua vida familiar e interpessoal.

    O Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade deriva de uma alteração no  funcionamento  no sistema neurobiológico cerebral, ou seja, os neurotransmissores, que passam informação entre as células nervosas (neurônios). Estes localizam-se na região frontal orbital, que é responsável por controlar ou inibir comportamentos, pela capacidade de prestar atenção, memória, autocontrole, organização e planejamento, as funções executivas.  Como diz o psicólogo Thomas Brown, elas representam o maestro de uma orquestra. Sem ele, todos os instrumentistas podem ser ótimos, mas o resultado final não será bom. Ele define as prioridades a cada momento, mudar o foco de um instrumento para outro! Vale ressaltar que, alterações nas funções executivas não pertencem apenas às crianças portadoras de TDAH, muitas crianças sem o transtorno também podem apresentar essa disfunção.

     Podemos dividir o TDAH em três grupos: 

    Lembrando que ao nomearmos estamos nos referindo aquela criança como portador dos sintomas. A luz da psicologia junguiana, como podemos ver esses sintomas? Qual a história desse sujeito? O que ele carrega ?

    Analisando este quadro observamos os comportamentos desse sujeito desde a tenra infância, como os sintomas se apresentam e qual a frequência dos mesmos. Ao que parece uma criança nasce TDAH, o TDAH não é transformado, nem adquirido.

   A criança vem ao mundo com o inconsciente coletivo, são estes  conteúdos (arquétipos e instintos) que fazem parte da história da humanidade. Os pais, familiares, cuidadores e educadores ocupam grande papel na etapa do desenvolvimento e criação da consciência junto ao inconsciente pessoal, a tarefa que lhes é incumbida é de participar, estimular e ao mesmo tempo,  observar essa criança. A aceitação e o desempenho desse sujeito na escola e em outros grupos sociais depende de como ele se  desenvolveu na tenra infância e da sua constituição subjetiva. Nas palavras do Jung:

(…) como pode alguém educar, se ele mesmo não foi educado, como pode esclarecer, quando está no escuro no que diz respeito a si mesmo, e como purificará, se ainda é impuro? (Jung, 16/1, §169 )

    Autoconhecimento e adaptação ao mundo são dois pontos fundamentais para a teoria  junguiana, através da constituição da sua própria personalidade é que você vê e observa o outro. E nesse contexto que Jung nos mostra pistas primordiais para promovermos a autoconstrução do sujeito, através do  cultivo da  sua alma, afinal nunca saberemos qual será nossa influência no outro, podem ser positivas ou negativas, para o bem e para o mal. A alma é muito mais que um estado mental e cognitivo, é algo que mobiliza esse corpo e mente.

        “ Por alma, porém, entendo um complexo determinado e limitado de funções que     poderíamos caracterizar melhor como ‘personalidade’”. ( Jung, 2020, § 752)

        Aquele mesmo sujeito que mobiliza seu corpo e manifesta traços de desatenção, impulsividade e hiperatividade, é visto e analisado por outros sujeitos que apresentam diferentes comportamentos. Geralmente comportamentos ditos “normais”, os quais são aceitos e valorizados pela sociedade, principalmente na instituição escolar, que via de regras, gostam de rotular e enquadrar crianças para facilitar o processo educacional. Este sujeito que ao mesmo tempo tenta se integrar ao grupo escola (coletivo), também precisa  se emancipar e olhar para si, valorizando suas singularidades, sua imagem pessoal, para além da herança genética. Como isso pode acontecer se nem ele se aceita? Se nem ele consegue se reconhecer como sujeito autor, identificar e integrar a este  corpo esses sintomas?

      Para Jung o conhecimento se dá através da experiência e, nesse caso, do TDAH, se faz necessário deixar claro que a experiência é  proveniente do seu interior e, também, tem valor de realidade. E que através dessa realidade e dessas  experiências pessoais, podemos atingir o autoconhecimento.

       Através de nossas percepções percebemos o mundo dentro e fora de nós, como lidamos com o objeto. Segundo Jung:

“ Chamo introversão o voltar-se para dentro da libido. Expressa uma relação negativa entre sujeito e objeto. O interesse não se dirige para o objeto, mas dele se retrai e vai para o sujeito. Quem possui uma atitude introvertida pensa, sente e age de modo a deixar transparecer claramente que o motivador é o sujeito, enquanto o objeto recebe valor secundário. A introversão pode ter um caráter mais intelectual ou mais sentimental, pode ser ainda caracterizada pela intuição ou pela sensação. A intuição é ativa quando o sujeito quer um isolamento em relação ao objeto, e passiva quando o sujeito não consegue reintegrar no objeto a libido que dele reflui. Se a atitude introvertida é habitual, podemos falar de tipo introvertido. ( Jung 6/1,2020,§ 864)

     “ Extroversão. É o voltar-se para fora da libido. Com este conceito designo uma relação manifesta do sujeito para com o objeto no sentido de um movimento positivo do interesse subjetivo pelo objeto. Todo aquele que se encontra num estado extrovertido pensa, sente e age em relação ao objeto, e isto de maneira direta e externamente perceptível, de modo a não pairar dúvida sobre sua atitude positiva com o objeto. Por isso a extroversão é de certa forma uma transferência do interesse do sujeito para o objeto. Se a extroversão for intelectual, o sujeito pensa no objeto; se for sentimental, ele sente no objeto. Fala-se de extroversão ativa quando ela é querida intencionalmente, e de extroversão passiva quando é forçada pelo objeto, isto é , quando o objeto atrai por própria conta o interesse do sujeito, eventualmente contra a vontade deste.” ( Jung 6/1,2020, § 797)

     Através de experiência e observação clínica, tenho notado que, a maioria das crianças e jovens que chegam apresentam atitude introvertida concentrando-se sua libido em fatores subjetivos, dificultando ainda mais seu processo de adaptação frente às exigências da sociedade. O tipo introvertido é fortemente influenciado às suas necessidades interiores. Suas decisões e ações são condicionadas a fatores subjetivos, sendo pouco sociáveis, deixando de externalizar seus desejos e dificultando seu relacionamento com o mundo.

     Além da atitude introvertida, o sujeito é  influenciado por um modo mais racional ou irracional de agir e se adaptar ao meio. Jung chamou de quatro funções da consciência : Pensamento e Sentimento ( racionais ), Intuição e Percepção ( Irracionais). 

“Intuição (vem de intueri= olhar para dentro) (…) É a função psicológica que transmite a percepção por via inconsciente. Tudo pode ser objeto dessa percepção, coisas internas ou externas e suas relações.(…) Na intuição, qualquer conteúdo se apresenta como um todo acabado sem que saibamos explicar ou descobrir como este conteúdo chegou a existir. É uma espécie de apreensão instintiva, não importando o conteúdo.” ( Jung, 2020,§ 865)

“Percepção (Sensação) – É a função psicológica que proporciona a percepção de um estímulo físico. Por isso é idêntica a percepção. (…) A sensação relaciona-se não apenas com os estímulos externos, mas também com os internos, isto é, com as transformações dos órgãos internos. Por isso é ela, em primeiro lugar, sensação dos sentidos, ou seja, percepção pelos órgãos dos sentidos e pelo  “sentido de corpo”. Por um lado, é elemento da representação porque fornece a ela a imagem percebida do objeto externo e, por outro lado, é elemento do sentimento porque dá a este o caráter de afeto, através da percepção das transformações corporais…” ( JUNG, 2020, § 889)

“ Pensamento – Considero pensamento uma das quatro funções psicológicas básicas. O pensamento é aquela função psicológica que, de acordo com suas próprias leis, faz a conexão ( conceitual) de conteúdos de representação a ele fornecidos. É uma atividade perceptiva e, como tal, deve ser distinguida em atividade de pensamento ativa e passiva. O pensamento ativo é uma agir de vontade, e o passivo é um acontecer.” ( Jung, 2020, § 873)

“ Sentimento – (…) O sentimento é, em primeiro lugar, um processo que se realiza entre o eu e um dado conteúdo, um processo que atribui ao conteúdo um valor definido no sentido de aceitação ou rejeição ( prazer ou desprazer), mas também um processo que, abstraindo do conteúdo momentâneo da consciência ou de sensações momentâneas, pode aparecer como que isolado, como disposição de ânimo ( humor).(…) O sentimento é uma espécie de julgamento, mas que se distingue de julgamento intelectual, por não visar ao estabelecimento de relações conceituais, mas a aceitação ou rejeição subjetivas.” ( Jung, 202-, § 896).

    Às funções conscientes mais desenvolvidas Jung chama de Funções superiores e, as menos desenvolvidas, inconscientes, de inferiores.

     Apesar das funções estarem presentes em todos os sujeitos, na maioria das vezes um ou outro tipo, pelas circunstâncias externas ou questões subjetivas, é predominante. E, essa observação se faz necessária quando você olha para esse sujeito  TDAH. A partir dessa visão junguiana podemos transitar entre o individual e o coletivo, entre a luz e a sombra, funções superiores, inferiores e auxiliares,  lembrando que para Jung trazer a luz, é trazer à consciência novos conteúdos, àqueles que nos incomodam e temos mais dificuldade em lidar. Fácil? Não, mas necessário.    

     Acredito que, nesse jogo e através dessa integração mente e corpo, o  sujeito TDAH com suas próprias percepções possa vir a  reconhecer em si mesmo características que o levem ao seu fortalecimento e  buscar estratégias para entrar em contato com  as suas próprias sombras, inquietação e desatenção. Afinal, mente e corpo não são duas substâncias separadas, são sim aspectos complementares de uma única e mesma realidade contínua. 

       Manter o equilíbrio e a conexão mente e corpo é um grande desafio, para o indivíduo que carrega os sintomas  e para todos nós psicoterapeutas que tentamos adentrar em uma esfera de forças inconscientes e como cita Jung “ nos expomos aos poderes que ameaçam a consciência”. Atingir a especificidade de cada um, valorizando suas singularidades além dos muros da escola e de um sistema de ensino avassalador, para além da genética buscando restabelecer conexão com sua essência mais profunda.

Elaine Bedin, membro analista em formação pelo IJEP – SP

E. Simone D. Magaldi, didata responsável

Referências:

FERNÁNDEZ, Alícia. Os Idiomas do Aprendente, Porto Alegre: Artmed, 2001.

JUNG,C.G., A Prática da psicoterapia, Petrópolis: Vozes, 2013

JUNG, Carl Gustav. Tipos Psicológicos. 7ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2020

BARKLEY, R. A. Vencendo o TDAH: Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Porto Alegre: Artmed 2011.

O que é TDAH

ELAINE BEDIN – 30/06/2021

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