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Doramas e a expressão das emoções

Com o absoluto sucesso do filme Parasita, o cinema asiático chamou atenção do mundo. Com um incrível roteiro original, ele arrecadou o Oscar de Melhor Filme de 2020 e despertou os olhares para as produções da Coreia do Sul. 

As séries de TV produzidas na Coreia do Sul, os K-dramas (ou doramas coreanos), ocupam cada vez mais espaço em plataformas como a Netflix. 

No Brasil os doramas caíram no gosto popular ganhando um número cada vez crescente de seguidores e fãs dessas produções. 

Doramas são filmes e séries chamados de “television drama” que, na pronúncia japonesa, sairia como “terebí dorama”. 

Basicamente doramas são narrativas colocadas em ação. O formato pode variar entre comédia, romance, fantasias, suspense etc. São chamados de “dramas” não por serem tristes, mas por dramatizarem as situações cotidianas.

Um número crescente de pessoas se apaixonam por essas narrativas, pois elas trazem reflexões profundas: contam histórias de superações; abordam as dificuldades e conflitos familiares; evidenciam complexos maternos/paternos; evidenciam aspectos da sombra coletiva daquela cultura; os personagens resgatam a importância do senso de pertencimento do grupo social; a importância da comida para a demonstração de afeto; as demonstração de cuidado e amor. 

Nos doramas o amor é um assunto à parte. Muito diferente da intensidade dos romances a que estamos acostumados, onde beijos vigorosos e sexo ardente são explícitos, nos doramas o amor é expresso de forma profunda e delicada. Quando um personagem coloca um pedaço de comida no prato do outro têm-se uma grande demonstração de intimidade e ternura, por exemplo. 

O amor é declarado pela troca de olhares, o roçar das mãos, um sorriso tímido, ao oferecer um cachecol para proteger o outro do frio. 

O romance é bonito e leve, onde explícito é apenas o cuidado com o ser amado. 

Os doramas nos captam… 

A leveza, a beleza, a poética e a profundidade que os assuntos são abordados nos causam encantamento.

E, como a arte evidencia o Espírito da Época e das Profundezas, vivemos num período de realidade muito densa, brigas intermináveis, confusões políticas, esfacelamento econômico, onde a dureza da vida nos obriga a sermos demasiadamente sérios e nos roubam a beleza e a poiesis que gostaríamos de ter. 

 Ao nos submetermos a todo este peso, assistir um dorama é uma forma de captarmos a leveza e o amor que nos escapa.

Mesmo os temas como raiva, a disfuncionalidade familiar, o amor não correspondido, o desejo de poder, e tantos outros assuntos sombrios e arquetípicos são expressos de forma sutil e menos densa.

A fotografia e a poética nos faz suspirar, onde desejamos viver a vida de uma forma diferente da nossa própria realidade.

Talvez seja por isso que os doramas nos captam: inconscientemente temos uma projeção compensatória da nossa vida não vivida. Lembrando que, para Jung, a compensação é a “equilibração funcional, como autorregulação do aparelho psíquico” (OC 6, p.437, §774).  Ou seja, as dificuldades vividas, a falta de romance e amor nesses tempos áridos, a solidão e tristeza são compensadas pela beleza e poética que os doramas nos trazem.

É importante ressaltar que os doramas não ocultam a dureza, as mazelas e dificuldades, mas elas se apresentam de modo singular e muitas vezes opostos ao nosso olhar ocidental. Além disso, vemos a enorme diferença cultural entre Ocidente e Oriente de temas importantes como honra, ancestralidade, patriotismo etc.

Na série Pousando no Amor (Netflix) esses contrastes são evidenciados: os pares românticos pertencem a “mundos diferentes”. O capitão Ri é um militar de família tradicional na Coreia do Norte e a Se-ri é uma rica empresária da Coreia do Sul. A série mostra a abissal diferença cultural, econômica e de valores que ambas as Coreias possuem. Mas os temas arquetípicos como amor, amizade, lealdade, sombra pessoal e social também compõem a narrativa e estão presentes em ambos os lados.

Alguns doramas trazem temas arquetípicos muito difíceis de lidar, como por exemplo os complexos familiares.

Herdeiros (Netflix), fala sobre um grupo de estudantes da alta elite coreana, que são preparados para assumir os impérios empresariais de suas famílias. Mas a vida pessoal desses estudantes são um desastre. 

O protagonista Kim Tan é um rapaz bonito e rico que foi exilado aos Estados Unidos por seu irmão mais velho sob o pretexto de estudar. Apesar da fortuna, sua família é altamente disfuncional. Por ser filho do pai milionário com sua amante, o pai e o irmão o rejeitam; sua mãe biológica é uma mulher fútil e consumista; sua madrasta controladora e possessiva. Seu ex-melhor amigo Young-do é um rapaz maldoso, que pratica bulling de forma bastante perversa. Em contrapartida, ele foi abandonado pela mãe quando muito jovem, deixado aos cuidados de um pai impiedosamente rigoroso e fisicamente abusivo em relação a ele.

Por serem temas arquetípicos, identificamos em nossas vidas tais dificuldades familiares. Quem de nós nunca sentiu na pele tais sombras familiares, que nos fazem sentir sozinhos, mal compreendidos e rejeitados?

O belíssimo Saimdang – Memória das cores (Netflix) fala de uma mulher muito à frente de seu tempo. Pintora e poetisa talentosa, Shin Saimdang viveu no início do século 16, na era Joseon (Coreia). 

O filme fala de um amor que transcende o tempo. Além disso, traz a força da beleza e toda dificuldade do feminino: o cuidado com os filhos; a dedicação à família; o acolhimento aos rejeitados; o protagonismo da mulher na sociedade; o amor que transcende o tempo; a espiritualidade; a crueldade que a mulher sofre numa sociedade patriarcal; a honra etc.

Em Saimdang o amor é declarado em pinceladas… O intenso erotismo entre os personagens é expresso através da arte, nas pinturas, nas cores.

Ao assistirmos Saimdang refletimos como nos distanciamos de nós mesmos. De forma profunda e poética, ele nos faz pensar sobre nossa realidade imediatista, onde esquecemos que somos seres eternos vivendo uma temporariedade terrena. Ele nos remete a alma.

Jung diz lindamente que “a alma é o ponto de partida de todas as experiências humanas, e todos os conhecimentos que adquirimos acabam por levar a ela. A alma é o começo e o fim de qualquer conhecimento.” (OC 8/2, p.61, §261)

E, falando em alma, o espetacular Navillera (Netflix) nos faz refletir sobre o significado da vida. O protagonista Shim Deok-chul é um senhor de 70 anos aposentado, que dedicou a vida toda a trabalhar como carteiro e a criar os filhos. Mas, ao se deparar com a morte do melhor amigo, percebe que não realizou o grande sonho de sua vida: ser bailarino. 

Ao tomar a decisão de dançar, transforma profundamente não apenas sua vida, mas de todas as pessoas do seu entorno.

Ele não se deixa abalar por sua limitação física, se intimidar pelo sentimento de ridículo, se abater devido a censura familiar: ele luta para viver seu grande sonho.

Esta série nos faz refletir como deixamos de viver nossos sonhos em função de exigências sociais e familiares. Renegamos nossa felicidade ao renunciar àquilo que amamos. Varremos nosso desejo ao inconsciente.

Jung nos lembra no livro Os arquétipos e o inconsciente coletivo: 

“(…) se é que compreendemos algo acerca do inconsciente, sabemos que ele não pode ser engolido. Sabemos também que não se trata simplesmente de reprimi-lo, uma vez que tivemos a experiência que o inconsciente é vida, a qual se volta contra nós se for reprimida, como ocorre nas neuroses” 

(JUNG, OC 9/1, p287-288, § 521.)

 Quantas neuroses, quantos sintomas não causamos em nós por reprimirmos nossos sonhos, nossos desejos? Ao buscarmos nos enquadrar nas exigências sociais, nos identificamos demasiadamente com a persona, nos distanciando do significado da nossa alma.

Distantes do Self, nos perdemos e nos afastamos cada vez mais do nosso caminho de individuação.

Os doramas trazem poesia e beleza até mesmo em assuntos tabu, como por exemplo a morte e autismo.

Na lindíssima série A caminho do céu (Netflix) o personagem principal Geu Ru é portador da síndrome de Asperger. Ele e seu pai são “limpadores de trauma”, ou seja, cuidam da limpeza e dos pertences das pessoas após morrerem. E vão muito além: separam os objetos que são mais sagrados e importantes das pessoas mortas e entregam para aqueles que foram importantes na vida do falecido.

De uma forma respeitosa e reverente ao falecido, antes de iniciarem os trabalhos, apresentam-se, dizem o dia e a hora da morte da pessoa e pedem licença para começar a limpeza.

A série nos ensina a desestigmatizar e naturalizar os processos do fim da vida. E que, ao tratar com respeito a morte, tendemos a respeitar a vida, a valorizar o presente e as relações, pois são os cultivos das relações que nos honram no momento de nossa partida, deixando marcas profundas nas histórias de quem amamos.

Pensar em morte é pensar em vida. Viver a plenitude e cumprir a jornada da nossa alma requer passarmos pelos vales das sombras. 

“A caminho do céu” nos mostra a adaptação de quem fica quando a morte se apresenta, a sombra dos erros cometidos, o preço que pagamos por causa da falta de comunicação, a sombra pessoal que nos engole, a fragilidade, o profundo respeito a quem se foi, o processo de luto. E que todas essas dores fazem parte da vida.

Outro dorama que trata do autismo, ou TEA, transtorno do espectro autista, é “Tudo bem não ser normal”, a sensibilidade deste drama é impressionante: complexo materno, complexo paterno, inadaptação social, psicopatia…e, o pano de fundo é um hospital psiquiátrico que nos arrebata, nos episódios finais, ao mostrar os traumas que levaram os indivíduos a internação psiquiátrica.

Nos faz refletir que nos conhecer é enxergar a escuridão que nos habita, encarar as dores da alma, a falibilidade do ser. Esta ampliação da consciência nos coloca nos eixos e reajusta o caminho da jornada da vida. Pois, individuar-se não significa sermos perfeitos, mas indivíduos completos com sua luz e escuridão.

Doramas chineses, baseados em lendas e mitos, são de um visual e beleza impressionantes.  Temos: “Ice Fantasy”, “Eternal Love”, “Ashes Love” e tantos outros, mostram com muita delicadeza a luta dos contrários, o bem e o mal; o poder e o amor. Antagonismos existentes em cada um de nós. São dramas mais longos cujos cenários são puro encantamento. Histórias que se destinam a todas as idades. Uma releitura que faz emergir os conteúdos dos mitos e lendas chineses que não pertencem só aos asiáticos mas a todos nós, uma vez que não temos um inconsciente coletivo, é ele que nos tem, como diz Jung: Nesta camada do Inconsciente Coletivo somos todos um.

Este artigo tem a intenção de te convidar a pensar que os doramas explicitam de forma compensatória e projetiva aquilo que nos falta: romance, delicadeza, poesia, relações, superações, luto, amor… E que ao nos encantarmos por um dorama, temos a chance de perceber nossos desejos e/ou nossa vida não vivida.

É permitir-se ao afago do encantamento e a captura da beleza.

Daniela Euzebio – Membro analista em formação do IJEP SP

Natalhe Costa – Membro analista em formação do IJEP SP

E. Simone Magaldi – Membro didata do IJEP

Referências

JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 1986 (Obras completas de C.G.Jung, v. 8/2). 

JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2016 (Obras completas de C.G.Jung, v. 9/1). 

JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2013 (Obras completas de C.G.Jung, v. 6). 

Imagem: Rafaela Garcia

Daniela Euzébio e Natalhe Costa

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