Este artigo busca explorar a performance artística das drag queens. Quem seria essa personagem que surge nos palcos dos bares e boates LGBT, comanda o início do movimento por direitos LGBT e agora ocupa os holofotes da televisão e da música? Que aspectos podem ser observados nessa performance e por que tem uma associação tão forte com os homens gays? Aliás, o que é uma drag queen?
Drag queens são artistas que fazem uso da feminilidade estereotipada e exacerbada, em sua maioria homens “fantasiados” de mulher (JESUS, 2012, p. 18). Não se trata de como o indivíduo se sente em relação à sua própria percepção, tanto interna quanto externa, na verdade é o que ele faz como expressão artística. A drag queen não tem nenhum compromisso com a mulher real, se passar por mulher ou ainda ser confundida com uma mulher nas ruas, mas sim de personificar um feminino, um constructo que pode conter várias mulheres como observado por Greaf (2015, p. 4). Esse compromisso com a realidade só é observado quando esses artistas buscam personificar uma pessoa real, geralmente uma grande diva ou referência feminina.
A arte drag pode ser performada por qualquer pessoa. Vale lembrar que a drag não possui relação estrita com identidade de gênero ou orientação sexual do artista, e essa arte também foi chamada no Brasil de transformismo, sendo o termo “drag queen” uma importação linguística (Cf. AMANAJÁS, 2014, p. 3; JESUS, 2012). Mesmo assim essas artes foram se diferenciando ao longo do tempo, onde o ator transformista, continuou sua existência em programas de TV, palcos de teatro, a drag queen seguia em outro universo estético e simbólico, com indumentárias exageradas, referenciadas por ícones da moda e drag queens americanas (Cf. SANTOS, 2014, p. 197).
O termo drag puro e simples é uma gíria inglesa antiga de bastidores do teatro, para o uso de roupas de mulher por homens, hoje em dia é atualizado para definir inclusive mulheres que se vestem como homens (a exemplo drag king). Drag queen é um termo criado usando puramente gírias gays (no inglês, queen é uma maneira que os gays usam para se referir a outro gay) que para Baker (1994) é o termo que melhor define essa arte, principalmente por ligá-la ao mundo gay automaticamente, no entanto nem todos os artistas que realizam essa performance acham que é o melhor termo para defini-la (BAKER, 1994, p. 17-8).
Ao longo do tempo, vestir-se de mulher, foi ganhando cada vez mais valor para a comunidade gay. “Em uma sociedade dominada pelo masculino, com papéis sexuais cada vez mais definidos, um homem se vestir de mulher era sequer tolerado como piada; era algo irracional, ameaçador” (BAKER, 1994, p. 110). “É importante notar que não é a drag em si que significa homossexualidade, mas as ações e trejeitos dos homens que o fazem – e o efeito disso nas testemunhas” (BAKER, 1994, p. 113).
Valores negativos são atribuídos à homossexualidade e ao feminino pela sociedade. Todos, inclusive os homens, sofrem com essa repressão, mas os meninos gays mais próximos da feminilidade, ou efeminados, são afetados de maneira mais intensa por essa mensagem negativa, gerando dessa forma uma negação do eros e um ódio a todo tipo de manifestação do mesmo, chamada de “homofobia internalizada”, que leva à criação de personas mentirosas e aprisionadoras em troca da aceitação social, tudo isso às custas da própria alma (Cf. BARCELLOS, 2011, p.70).
Homens com um feminino aparente, principalmente os homens gays, são obrigados a reprimir esse lado para sobreviver à violência psicológica e até física que lhes é imposta. Como o feminino (ainda) é percebido na sociedade atual como inferior, fraco e indesejado, ser homem e ter comportamentos femininos é praticamente uma ofensa. Ter um lado feminino é considerado uma fraqueza e dessa forma, deve ser escondido, muitas vezes compensado, por uma persona encarceradora e opressora.
“O homem considera uma virtude reprimir da melhor maneira possível seus traços femininos […]. A repressão de tendências e traços femininos determina um acúmulo dessas pretensões no inconsciente” (JUNG, 2011, p. 79). Nesse sentido, homens que apresentem comportamentos tidos como femininos, algo que, apesar de não ser necessariamente um significado de homossexualidade, é mais observável em homens gays, tendem a ter um acúmulo maior de pretensões femininas em seu inconsciente, muito provavelmente em sua sombra. Ainda nesse sentido, Jung (2011, p. 79) continua: “[…] o homem, em sua escolha amorosa, sente-se tentado a conquistar a mulher que melhor corresponda à sua própria feminilidade inconsciente: a mulher que acolha prontamente a projeção de sua alma”. Nos casos em que a mulher não é o interesse amoroso e/ou sexual, a feminilidade inconsciente pode, então, se projetar de outras maneiras: amor fraternal, identificação, admiração e idolatria daquelas mulheres que correspondem ao feminino inconsciente, ao mesmo tempo a tarefa de integrar esse feminino ainda existe. Jung não aborda essas outras formas de afeto ao feminino pelo homem, ele afirma que no caso do homem homossexual, o componente de heterossexualidade do filho fica preso à mãe (JUNG, 2000, p. 95), sendo então essa uma assunção minha.
Greaf (2015, p. 5) diz que na performance de uma drag, podem ser encontradas várias mulheres, ou várias características femininas, no entanto, considerando que as barreiras de gênero (masculino/feminino) não são tão definidas como se pensava, não podemos definir a personificação da drag como hiperfeminina, mas um feminino masculinizado, ou ainda, a captura de uma construção social do que seria uma mulher para a construção de um personagem. A personagem drag seria uma manifestação do feminino apreendido por meio dos olhos e do corpo de um homem, no entanto não se trata de uma imitação, o intérprete assume sua personalidade feminina temporariamente, performando o feminino de acordo com os estereótipos vigentes (BRAGA, 2018, p. 27) ou apreendidos. Essa descrição da personagem drag vai de encontro à definição de anima de Jung. Nesse sentido a mulher expressa na personagem drag é uma imago projetada da anima, com características sombrias, apreendida e expressa pela consciência masculina, muito provavelmente pelo complexo materno, por isso a personagem da drag tende a ser uma mulher com atitude fálica, pois a libido vai para a criação, em seu próprio corpo, dessa imago idealizada.
Nenhuma mulher é como uma drag queen […], elas carregam de forma tão exagerada os signos ligados ao feminino que é como se, além de ultrapassar a fronteira entre os gêneros, essa figura explodisse o outro lado, ou seja, a própria ideia de feminino que fazemos hoje. Ela o faz sobretudo na sua atitude predominantemente fálica no espaço público. Ela assedia, seduz, provoca e é ao mesmo tempo um ser impenetrável (MALUF, 1999, p. 274-5).
O ritual de se fazer drag queen é chamado de “montação”, pois é diferente do ato de apenas se vestir de mulher. Se montar implica em se transformar de maneira temporária em um ser feminino com referência à imago da mulher, de maneira exagerada e exacerbada. Nesse processo o homem se transforma em uma mulher simbólica e manifesta características reprimidas ou sombrias de sua personalidade sob uma máscara feminina.
A montação não é um ato simples, mas um ritual de transformação; é criar e expressar a personagem drag por meio do próprio corpo, em que o masculino vai se escondendo e o feminino vai aparecendo. Psicologicamente pode-se dizer que essa mulher inconsciente vai emergindo à medida em que é investida de libido (maquiagem, figurino, peruca) enquanto o homem, ou o ego masculino, vai submergindo, mas sem de fato afundar. A drag é o encontro desses dois aspectos.
A performance drag, por trazer o elemento feminino de maneira tão exuberante, de alguma maneira se relaciona com a construção da imagem do feminino no inconsciente do homem gay, e sua manifestação consciente pode ser uma demonstração do fascínio pela anima, ou ainda, a descoberta de um feminino que por ser tão reprimido, agora quer compensar essa vida na sombra por meio da exacerbação e do exagero, quer mostrar que existe, é uma mistura de fúria, beleza e luxúria digna das deusas. Drag foi uma maneira de inverter o estigma da efeminação por ser gay e usar isso como um crachá de orgulho (BAKER, 1994, p.238).
A persona, imagem construída pelo homem tal como ele quer ser, é compensada interiormente pela fraqueza feminina; e assim como o indivíduo exteriormente faz o papel de homem forte, por dentro se torna mulher, torna-se anima (JUNG, 2011, p.85). Uma persona masculinizada, construída para esconder um feminino, pode criar inconscientemente uma sombra hiperfeminina, essa anima então será projetada de alguma maneira. Viver o feminino como algumas drags vivem é sinônimo de liberdade, de força, de um lugar possível de se sentir forte e completa.
Homens que não sigam o padrão de comportamento esperado pelos padrões de gênero, recebem a mensagem, consciente e inconscientemente, de que não são homens, dessa forma, o masculino consciente fica fragilizado, enquanto a vida e o interior feminino crescem no inconsciente, compensando uma persona aprisionadora, como dito por Barcellos (2011, p. 70).
“Quando se cria um personagem no palco, ou num poema, drama ou romance, normalmente se pensa que isso é apenas um produto da imaginação, mas aquele personagem por um caminho secreto, fez-se a si mesmo” (JUNG, 1985, p. 68). A personagem da drag queen, então, existe no inconsciente de seu intérprete, ela é construída a partir da vivência do homem com o feminino e permeada com suas percepções a seu respeito, sendo um misto de homenagem, admiração e ao mesmo tempo de escárnio e exacerbação.
Pode-se então afirmar que a interpretação ou incorporação de drag queens pelos homens gays pode ter um componente de manifestação de um feminino inconsciente reprimido, compondo parte da anima. A drag é uma das possíveis respostas a uma alma ferida, onde masculino e feminino naquele corpo tentam se curar da tentativa de se adaptar aos valores binários de gênero que até hoje a sociedade tenta impor e seguir. Esse feminino que desabrocha nessas performances sai da ferida que o masculino tem, pelas frequentes mensagens homofóbicas e sexistas que recebe durante a vida.
Apesar dessa relação com o feminino, não raramente as drag queens são acusadas de misoginia, ao satirizar o feminino, exacerbando características que são consideradas femininas, por uma lente machista, o que pode ser verdade em alguns casos, mas não é o objetivo da drag como manifestação artística. Ao satirizar a construção social da mulher, a drag nem sempre a oprime, mas busca libertá-la dos constructos sociais aos quais o patriarcado tem tentado trancafiar. Nesse sentido, Baker (1994) afirma:
À primeira vista parece ser o caso [a misoginia], mas o que elas estão realmente fazendo é criticar essas estruturas sociais – a divisão rígida de papéis entre os sexos e os valores heterossexistas que são seguidos – que fazem mulheres e homens se comportarem dessas maneiras. A drag queen não está ridicularizando a vida comum das mulheres reais, ou da mulher como tal, mas da sociedade em geral.
A arte drag é um possível caminho simbólico para integração e vivência do feminino por homens gays e por aqueles que sentem o impulso e o desejo de performar nessa arte. Ela vem trazer força e qualidades que o feminino inconsciente tem, mas foi reprimido. Essa persona obscura e feminina, como todo aspecto sombrio, tem muito a contribuir no desenvolvimento psicológico e no cumprimento dos desígnios do Self.
Além de ser a manifestação de um feminino inconsciente e reprimido, a drag queen tem essa presença incômoda e que leva seu público a todo momento se questionar sobre o que está vendo, se é homem, se é mulher, se é os dois. Esse questionamento dos papéis de gênero é importante e tem o papel de libertar a todos, tanto homens, quanto mulheres da prisão imposta pela construção social dos gêneros.
Performar como drag queen tem potencial para integrar conteúdos femininos inconscientes daqueles que se sentem à vontade ao fazê-lo. Drags transitam entre os gêneros e mostram que quando um homem abraça e aceita seu lado feminino ele não se torna mais fraco, pelo contrário, lhe dá mais força.
Mauro Soave Junior – Membro analista em formação do IJEP-Bsb
E. Simone Magaldi – Membro didata do IJEP
Referências:
AMANAJÁS, Igor. Drag queen: um percurso histórico pela arte dos atores transformistas. Revista Belas Artes, São Paulo, n. 16, set-dez/ (2014), p. 1-23. Disponível em: <http://www.belasartes.br/revistabelasartes/?pagina=player&slug=drag-queen-umpercursohistorico-pela-artedos-atores-transformistas>.
BARCELLOS, G. O amor entre parceiros do mesmo sexo e a grande tragédia da homofobia in SALLES, Carlos Alberto C.; CÉSAR e MELO, Jussara M. de F – (orgs). Estudos sobre a Homossexualidade: Debates Junguianos (2011). São Paulo – Vetor Editora, p. 65-86
BAKER, R. DRAG: A history of female impersonation in the performing arts (1994). New York University Press. New York.
BRAGA, Lucas. A Marcação da Feminilidade em Corpos Masculinos: A Construção de uma Performance Drag. 2018. 110 f. TCC (Graduação) – Curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda, Escola de Educação, Tecnologia e Comunicação, Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2018.
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