Resumo: O ensaio reflete sobre a dificuldade da escrita e a inveja da fluidez de autores que parecem escrever com naturalidade. Como analista junguiana, relaciono essa experiência ao processo criativo e à clínica, percebendo a escrita como esforço, enfrentamento e também como forma de redenção psíquica. A criatividade é entendida menos como dom e mais como trabalho, crise e solução. A escrita, antes vista como inacessível, surge como exercício terapêutico e organizador, permitindo contato com funções internas desprezadas. Ao citar Jung e Suassuna, destaca a escrita como conexão íntima com o outro e como possibilidade de viver com autenticidade. Mesmo difícil, torna-se prática de exposição de alma e de comunhão atemporal entre escritor e leitor.

Palavras-chave: Clínica; escrita; Suassuna; vida; autoanálise.

Ao dedicar tempo a escrita sempre me falta tempo, sou daquelas que demora para sentar e desenvolver um texto ou artigo. Fico mais tempo refletindo sobre a inveja que tenho da facilidade dos bem habilitados a escrever. Tem gente que simplesmente consegue desenvolver em uma sentada aqueles textos incríveis, engraçados e elaborados que nos prendem no seu desenvolver e saímos ao final com aquela sensação que foi tão bom o que li que poderia durar mais. Mas infelizmente sou do outro tipo de gente, que um bom texto é um texto feito e sempre se consola com o famoso ditado: “antes o feito que o perfeito”.

A minha reflexão vem conjunta com a minha profissão de analista junguiana e paralela a minha insistência (ou teimosia, não sei) de me colocar sempre em posições de “desconforto” nesse lugar. Fugir da Academia me empurrou diretamente para ela e, com isso, me vejo escrevendo. A maioria sempre sai a fórceps, mas me vejo algumas vezes conduzida por um eu “que não sou eu” a elaborar “coisas” interessantes, e sempre me surpreendo com isso.

Tudo bem que sempre me vi como uma pessoa criativa, talvez isso tenha sido tão verbalizado no meu seio familiar quando eu era criança que eu acredito nisso até hoje, pode ser crença, porém vejo como uma habilidade que pode ter me conduzido até onde estou hoje. Mas a criatividade é mais trabalho do que propriamente um dom inato e impermeável aos pouco criativos, tenho estudado isso há algum tempo. Criatividade exige esforço, crise e tentativa de solução. Sempre usei essa fórmula para as técnicas expressivas e essa foi uma boa saída para meus processos internos, já a escrita não.

A escrita estava naquele lugar imaginal de uma benção concedida a poucos.

Ariano Suassuna que fala: “O sonho é que leva a gente para a frente. Se a gente for seguir a razão, fica aquietado, acomodado“, não basta a criatividade, precisa de borogodó para traçar o roteiro e contar a história sem se perder, sem enrolar, sem ficar chato ou enfadonho. Uma espécie de condução direta ao leitor, tão intima e precisa que quando te leem vocês estão conectados de forma direta pelo inconsciente coletivo. Você – escritor – conduz o outro – o leitor – direto a SUA imaginação e assim a história se desenvolve DENTRO de uma outra pessoa que pode nunca te ver, nunca te encontrar e nesses tempos de rede social encontrar um pedaço do que você produziu e nem saber quem você é ou foi.

Na minha clínica me sinto muito uma leitora de livros muito bem escritos pelos meus clientes. Ler, sempre foi uma posição mais confortável para mim, por isso talvez ter feito terapia antes de me tornar terapeuta me deu uma percepção interna e profunda da importância e dedicação do trabalho do terapeuta, ajudar o outro a ampliar a própria história ajuda a boas narrações para “finais felizes”, ou reviravoltas emocionantes a quais podemos chamar de “plot twist” (guinadas surpreendentes e incríveis!). Escrever é sempre mais difícil na minha visão.

Escrever pode estar associado a viver.

Viver é difícil! E como Jung expressa em Símbolos da Transformação Vol.5 de OC: “O reverso da santidade são as tentações, sem as quais nenhum santo pode viver”. (§436) Somos chamados o tempo todo a saber viver, experimentar, realizar e o que diferencia a disponibilidade a “santidade” de servir ao Self é saber que sempre estaremos expostos a tentação da acomodação e nos colocarmos protegidos em “templos”. A verdadeira santidade, o verdadeiro servir ao Self, é nos relacionarmos com o mundo, nos aventurarmos em possibilidades de continuar firmes na caminhada com proposito ao lado das tentações, e negando ao medo de viver a possibilidade de viver “de verdade”. Vejo isso quando me permito escrever, mesmo não considerando uma área a qual tenho talento ou dom inato, tenho me negado cada vez menos a essa exposição; e esse texto vem falar sobre isso.

No ato da redenção revive o que estava sem vida, morto; isto significa psicologicamente: aquelas funções que jaziam incultas e estéreis, inativas, reprimidas, desprezadas, subestimadas etc. irrompem e começam a viver. É exatamente a função menos valorizada que leva avante a vida, ameaçada de extinguir-se na função diferenciada.  

Jung, 2012 vol.6, §496

Concordo que é muito difícil a gente se expor a experiências que não nos são agradáveis ou consideramos enfadonhas, não vejo a escrita nesse lugar.

A realidade é que gosto tanto de ler livros, ouvir histórias bem contadas e ver desenvolvimento de enredos surpreendentes em filmes, series e afins que meu senso crítico me reprime. Quem conta melhor uma história do que alguém que viveu ou vivenciou aquilo? Talvez por isso fico tão atenta nos relatos em setting terapêutico. Mas voltando a repressão crítica quando Jung fala: “se alguém se voltar só para fora, tem que viver seu mito; se for para dentro, tem que sonhar sua vida exterior, a vida real” (Jung, 2012 vol.6 §268) ficou fácil entender que a escrita vinha como um processo terapêutico ordenador e organizador para mim, e acaba sendo uma necessidade para alguém introvertido (como eu).

Existem muitos tipos de introvertidos, talvez seja bom lembrar. Consegue se achar por essa consideração de Jung?

Talvez o que me aprisiona nesse movimento da escrita é a sinceridade, como esse texto explora, o medo de ser expor já que pela palavra é mais difícil eu sair fora da persona. Um pensamento rápido e uma língua afiada são ferramentas disponíveis, escrever exige elaborar e conduzir. E para ser interessante, precisa de alma, colocar alma na escrita nos expõe a muitos, relações reais são mais reduzidas e nos revelarmos a elas é escolha. Algumas nos conhecem muito, outras nem tanto. Podemos manter um ar distante e formal. Mas a escrita sendo uma organização pode nos colocar visíveis numa humanidade que um introvertido (como eu, lembrando) se sinta tremendamente vulnerável.

Escrever hoje ocupa outros espaços para mim, não fica mais fácil, mas com certeza é mais leve e prazeroso. Menos acadêmico também. Tenho me permitido a exposição de alma e vejo a escrita como um a troca que vai além do conteúdo partilhado, mas também uma permissão e acesso a imaginação daquele que comunga suas percepções, talvez as que julga mais interessante, com todos aqueles que vão acessar, ler e compartilhar.

Poderia ser um acesso indireto a gente mesmo que isso seja em outro tempo? Não sei. Mas gosto da ideia dessa conexão atemporal permitida, e fico pensando que Suassuna talvez tenha razão quando falou que “quem gosta de ler não morre só”.

Bárbara Pessanha – Membro Didata em formação IJEP

Dra. E. Simone Magaldi – Membro Didata IJEP

Referências:

JUNG, C. G. Símbolos da Transformação 5. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. [OC 5]

JUNG, C. G. Tipos Psicológicos 6. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. [OC 6]

FERNANDES, Márcia. Ariano Suassuna. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/ariano-suassuna/ Acesso: 20. set. 25.

MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios: uma seleção. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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