Resumo: No Natal, as famílias cristãs se reúnem e, com esse encontro, ocorre a mobilização de afetos profundos: memórias são acessadas e emergem expectativas de união e alegria. Mas também é um campo fértil para diversos tipos de conflitos; parece que algumas impurezas, antes empurradas para debaixo do tapete, resolvem se rebelar, dando lugar às célebres explosões emocionais. Neste artigo serão visitadas algumas projeções próprias desta época do ano.
O presente artigo investiga as dinâmicas arquetípicas de anima e animus e sua manifestação nas projeções emocionais, familiares e culturais durante o período natalino.
A partir da psicologia analítica de C. G. Jung, examina-se como o Natal, enquanto rito coletivo carregado de símbolos, intensifica idealizações, conflitos e expectativas herdadas do inconsciente pessoal e coletivo. Discutem-se figuras simbólicas como o Papai Noel, a Virgem Maria, Pai José e o Menino Divino, bem como os papéis familiares que emergem no imaginário festivo. Por fim, aborda-se a relevância clínica dessas projeções e suas possibilidades de integração.
Na cultura ocidental, a festividade do dia 25 de dezembro, o Natal, é considerada a comemoração do nascimento de Cristo pelos cristãos. Por isso, é uma data voltada à celebração do amor e da união.
As famílias cristãs se reúnem e, com esse encontro, ocorre a mobilização de afetos profundos: memórias são acessadas e emergem expectativas de união e alegria. Mas também é um campo fértil para diversos tipos de conflitos; parece que algumas impurezas, antes empurradas para debaixo do tapete, resolvem se rebelar, dando lugar às célebres explosões emocionais.
Ao recorrer à Psicologia Analítica, podemos ampliar nossa reflexão sobre esse tema e trazer clareza para compreender o fenômeno.
Jung descreve estruturas universais presentes em nossa psique, os arquétipos, que funcionam como formas que moldam nossas percepções e relações. Entre esses arquétipos, anima e animus exercem papel fundamental na maneira como nos relacionamos com o outro e com o mundo. As funções psíquicas que expressam o princípio feminino e o princípio masculino interiorizados, influenciam idealizações, projeções e dinâmicas de vínculo.
Na celebração do Natal, os conteúdos psíquicos emergem de maneira amplificada. A festa, a reunião familiar, as imagens religiosas e as memórias da infância podem desencadear uma regressão psíquica, na qual partes ocultas acabam sendo projetadas, e ali estão anima e animus, vivos, prontos para desvelar o que por tanto tempo permaneceu escondido.
Nesse contexto, tudo pode acontecer: o que se constela são os rituais, os papéis desempenhados dentro da família e as diversas figuras simbólicas que trazem à tona conteúdos inconscientes.
Jung afirma: “… a anima é um arquétipo que se manifesta no homem, é de supor-se que na mulher há um correlato, porque do mesmo modo que o homem é compensado pelo feminino, assim também a mulher é pelo masculino” (Jung, 2013a, p.26).
Correlativamente, designei o fator determinante de projeções presente na mulher com o nome de animus. Este vocábulo significa razão ou espírito. Como a anima corresponde ao Eros materno, animus corresponde ao Logos paterno. … Uso os termos “Eros” e “Logos” meramente como meios nocionais que auxiliam a descrever o fato de que o consciente da mulher é caracterizado mais pela vinculação ao Eros do que pelo caráter diferenciador o cognitivo do Logos. No homem, o Eros, que é a função de relacionamento, em geral aparece menos desenvolvido do que o Logos.
Jung, 2013a, p.27
Ambos se expressam inicialmente através de projeções. Projetamos anima e animus em pessoas e figuras externas para, posteriormente, retomar essas qualidades de volta para a psique e integrá-las. Quando fixados, podem gerar ilusões, idealizações extremas ou hostilidade.
Cada parte da nossa personalidade que não amamos tornar-se-á hostil a nós. Ela também pode distanciar-se de nós e iniciar uma revolta contra nós. Nossa psique, portanto, é uma máquina natural de projeção; podemos recuperar as imagens que guardamos enroladas na lata e projetá-las para os outros ou sobre os outros.
Zweig e Abrams, 2024, p. 42
Por serem arquétipos, anima e animus transitam em toda extensão da psique, percorrem os núcleos dos complexos. Mas a percepção de sua atuação só pode ser observada com as projeções.
A projeção é um mecanismo pelo qual conteúdos inconscientes são atribuídos a outras pessoas, situações ou objetos. É um modo natural da psique tentar reconhecer em outro aquilo que ainda não foi identificado internamente. Em períodos emocionalmente carregados, como o Natal, as projeções tornam-se mais intensas. Segundo Jung ( 2013a, p. 21): “As projeções transformam o mundo externo na concepção própria, mas desconhecida”.
A reunião familiar, o retorno à casa antiga, a repetição de rituais e o clima cultural de idealização facilitam a ativação do inconsciente pessoal e coletivo. Assim, velhas feridas, expectativas infantis e papéis familiares cristalizados reaparecem com força.
Muitas vezes é trágico ver como uma pessoa estraga de modo evidente a própria vida e a dos outros, e como é incapaz de perceber até que ponto essa tragédia parte dela e é alimentada progressivamente por ela mesma.
Jung, 2013a, p.21
O Natal reúne imagens profundamente enraizadas no inconsciente coletivo: a Mãe Divina (Virgem Maria), o Velhinho generoso e onisciente (Papai Noel), o Menino Divino, frequentemente interpretado como símbolo do Self, além de figuras masculinas portadoras de dons, como os Reis Magos.
Esses símbolos falam diretamente com a psique profunda. O imaginário natalino reforça, ainda, papéis de gênero específicos: a mãe cuidadora e acolhedora, o pai provedor e protetor, as crianças como receptores da generosidade adulta e o ideal de família perfeita. Esses padrões emergem como projeções arquetípicas
A Mulher como “Mãe do Natal”
No Natal essa força simbólica é intensificada. “Mãe do Natal” A figura feminina é frequentemente investida de projeções da anima coletiva: acolhimento, sacrifício, cuidado ilimitado. No Natal, essa exigência se intensifica. Espera-se que ela organize, concilie, acolha e harmonize todos os membros da família.
Embora a figura da mãe, tal como aparece na psicologia dos povos, seja de certo modo universal, sua imagem muda substancialmente na experiência prática individual. Aqui o que impressiona antes de tudo é o significado aparentemente predominante da mãe pessoal.
Jung, 2013b, p.89
O Homem como “Provedor Natalino”
O animus projetado assume a forma do pai que garante a segurança material e emocional da festa. Muitas vezes, surge a expectativa de que o homem seja o responsável por sustentar financeiramente o ritual, resolver tensões e assumir a posição de autoridade benevolente.
A Criança Interna Ferida
Como período de regressão simbólica, o Natal mobiliza lembranças da infância. Expectativas não atendidas, cenas familiares difíceis e feridas afetivas emergem com força. Os conteúdos não integrados retornam sempre que a psique enfrenta situações altamente simbólicas.
Papai Noel como Projeção do Animus
O Papai Noel pode ser compreendido como uma imagem arquetípica do animus positivo: generoso, provedor, justo. Ele representa o princípio masculino que recompensa, reconhece e oferece direção.
Virgem Maria como Imagem da Anima
A Virgem Maria condensa aspectos arquetípicos da anima: pureza, acolhimento, cuidado, sacrifício e mediação entre o humano e o divino. No imaginário natalino, essa imagem alimenta expectativas sobre o papel feminino.
Presentes, ceia, reencontros e rituais natalinos funcionam como espelhos das dinâmicas internas.
Rituais ativam estruturas psíquicas profundas e facilitam a emergência de conteúdos inconscientes. Dessa forma, o Natal se torna um laboratório simbólico em que sombras familiares, expectativas infantis e papéis de gênero emergem com maior intensidade. No contexto clínico, isso se torna ainda mais evidente nestes períodos emocionalmente carregados.
Isso explica o porque muitos pacientes experimentam sofrimento psíquico nessa época: as projeções ativadas sobre a família, o amor, o cuidado e os papéis de gênero ficam mais intensas e, por vezes, dolorosas.
Seria lógico admitir que essas projeções, que nunca ou somente com muita dificuldade podem se desfazer, pertencem à esfera da sombra, isto é, ao lado obscuro da própria personalidade. Entretanto, esta hipótese é impossível, sob certo ponto de vista, na medida em que os símbolos que afloram nesses casos não se referem ao mesmo sexo, mas ao sexo oposto: no homem, à mulher, e vice-versa. É aqui que deparamos com o animus da mulher e a anima no homem, que são correlativos e cuja autonomia e caráter inconsciente explicam a pertinácia de suas projeções.
Jung, 2013a, p.21
No período natalino, a convivência familiar funciona como um campo ampliado dessa mesma dinâmica: aquilo que não foi integrado retorna como afeto, irritação, nostalgia ou expectativa extrema.
Essas compreensões ajudam a fundamentar o trabalho clínico nessa época do ano, permitindo que o terapeuta auxilie na identificação dessas projeções e na possibilidade de reintegração simbólica. Na clínica psicológica, é comum observar um aumento de sofrimento psíquico no período natalino. Pacientes relatam angústia, nostalgia, irritabilidade ou pressão por corresponder a papéis familiares rígidos.
A tomada de consciência sobre anima e animus, e sobre as projeções que emergem, pode ajudar na retirada dessas imagens e na integração de aspectos internos. Esse processo promove autonomia emocional e reduz conflitos familiares, permitindo que o sujeito viva o Natal com mais autenticidade e menos idealização.
O Natal, enquanto rito cultural poderoso, mobiliza conteúdos arquetípicos que atuam sobre as relações familiares e afetivas.
As projeções de anima e animus intensificam expectativas, papéis rígidos e conflitos, mas também oferecem oportunidades de autoconhecimento e integração psíquica. Ao reconhecer essas dinâmicas, o indivíduo pode retirar projeções, ressignificar vínculos e viver a experiência natalina com maior consciência.
Antigos dissabores entre familiares emergem com muita intensidade e os complexos nos tomam sempre nos momentos mais impróprios, após algumas champanhes o ego fica mais fragilizado e complexo nos toma fazendo com que novamente os conflitos familiares se instalem. Por isso o medo das confraternizações natalinas em que nossos monstros internos também participam da festa.
Euflausina Goes dos Santos- Membro Analista em formação IJEP
Dra. E. Simone Magaldi – Analista Didata IJEP
Referências:
JUNG, Carl Gustav. Aion – Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 2013a (Obras completas v. 9/2).
__ Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2013b.
ZWEIG,Connie; ABRAMS Jeremiah (Org). Ao Encontro da Sombra. Edição digital. São Paulo: Cultrix, 2005.

