Neste artigo, trato da espiritualidade a partir do olhar da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, relacionando com as categorias de Tradição e tradições da Teologia cristã, presentes também, mesmo que sem esse nome, nas outras religiões. Diante do risco do neoconservadorismo, que muitas vezes ameaça a vida, até que ponto as religiões são salvaguarda de uma espiritualidade humanizante e quando elas se afastam, tornando-se inclusive o oposto disso?
A espiritualidade é uma dimensão humana, reconhecida assim pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que a incluiu em 1998 em seu conceito de saúde. O ser humano busca sentido e significado e tem sede de valores supremos que o influenciem de dentro para fora e sobre os quais alicerçar a própria vida. Em sua ausência, sente-se inseguro e desamparado, algo que a pós-modernidade ou modernidade tardia vem escancarando.
Segundo Brigitte Dorst (2016, p. 13), “a espiritualidade […] é uma constante antropológica em múltiplas formas de manifestação”, referindo-se a dimensões profundas da experiência de abertura e conexão à totalidade e unidade em todas as formas de religiosidade. Ela explica que o termo “espiritualidade” não era usual na época de Jung, mas as questões relativas a ela, chamada de “experiência religiosa”, ocuparam toda a vida de Jung e o conjunto completo de sua obra. “Jung sustenta uma compreensão da psique como espaço de experiência do numinoso”. (DORST, 2016, p. 16-17)
Para Jung (2020, §6), o numinoso “constitui uma condição do sujeito, e é independente de sua vontade. […] a propriedade de um objeto visível, ou o influxo de uma presença invisível, que produzem uma modificação especial na consciência.” A experiência do numinoso aparece de tal forma ao espírito humano e provoca tal impacto que merece “respeitosa consideração” (§8), e a esta atitude ele chama de religião, a partir do vocábulo latino religere. “Toda confissão religiosa, por um lado, se funda originalmente na experiência do numinoso, e, por outro, na pistis, na fidelidade (lealdade), na fé e na confiança” relacionadas à mesma experiência central e fundante “e na mudança de consciência que daí resulta.” (§9)
Essa experiência espiritual é o cerne das religiões, que criam sistemas em torno dela e mais próximos ou afastados de sua essência, sobre o que falaremos a seguir. Por ora, é importante ressaltar como Jung associa essa experiência à produção autônoma do inconsciente a partir das imagens arquetípicas que se manifestam em todas as culturas, pois constituem a herança espiritual humana, imagens essas que também aparecem nos sonhos — de onde é possível resgatar o chamado da alma às pessoas a quem a religião já não diz nada, ou por não a terem, ou por ficarem em sua exterioridade.
O chamado, seja ele como vier, remete à ampliação de consciência, a partir do contato com a profundeza e integração de alguns de seus conteúdos. A esta direção aponta o processo de individuação, de tornar-se si mesmo, meta (como processo, não como ponto de chegada) de todo o desenvolvimento humano, acentuada na segunda metade da vida, na qual, por isso mesmo, a sede da alma se torna mais gritante. O mergulho interior não é fácil, pois leva a encontrar qualidades inferiores e tendências primitivas que desmancham a imagem ideal que temos de nós mesmos. Encontramos dentro aquilo que escandalizados condenamos fora. “Todo indivíduo é acompanhado por uma sombra, e quanto menos ela estiver incorporada à sua vida consciente, tanto mais escura e espessa ela se tornará” (JUNG, 2020, §131), podendo irromper e se apossar de nós, o que tantas vezes acontece. Como disse o apóstolo Paulo, fazemos o mal que não queremos, e o bem que queremos somos incapazes de fazer (cf. Rm 7,19), situações das quais popularmente dizemos: “eu estava fora de mim”.
É necessária uma mudança geral de atitude que, segundo Jung (2020, §136), “só pode começar com a transformação interior dos indivíduos”, que passa por “encontrar um caminho através do qual a personalidade consciente e a sombra possam conviver.” (§132) Este caminho de voltar-se a si mesmo numa aceitação e reconciliação profundas pode ser expresso como “fazer as pazes com Deus”, pois é um encontro com o Selfcomo centro e totalidade, ao qual o eu passa a reconhecer como valor supremo e se submeter. Dê o nome que der, é um encontro com a imagem de Deus em si. Além disso, é uma trajetória ética, pois o sujeito assume as próprias responsabilidades em lugar de projetá-las nos outros. “Seja qual for a coisa que ande mal no mundo, este homem sabe que o mesmo acontece dentro dele, e se aprender a arranjar-se com a própria sombra, já terá feito alguma coisa pelo mundo.” (JUNG, 2020, §140)
A espiritualidade assim compreendida tem muita ligação com o que a Teologia cristã chama de Tradição, que em unidade com as Escrituras forma a fonte da fé, memória viva e vivificante da experiência primeira de encontro transformador com Cristo e a elaboração dessa experiência ao longo da História. Está voltada não só à compreensão e formulação de dogmas, mas sobretudo a manter o núcleo dessa experiência através dos tempos e ajudar cada nova geração a vivenciá-la. Cito o Cristianismo a partir de minha experiência, mas cada religião pode reconhecer sua própria Tradição, no sentido do núcleo essencial, e seu dinamismo com o passar do tempo, mantido vivo, capaz de continuar produzindo experiência e gerar impacto nos indivíduos por gerações.
Quando as tradições se afastam do núcleo
As religiões podem se aproximar da espiritualidade, ajudando a manter vivo esse núcleo de experiência transformadora, a vivenciar o cerne, o essencial da fé, ou podem se distanciar dela, perdendo o dinamismo e cristalizando-se em tradições que aos poucos se afastam do sentido profundo e levam a ficar na exterioridade, tornando-se “pedra de tropeço” e impedindo elas mesmas o que deveriam promover, a interioridade, o autoconhecimento e a união humano-divina com suas consequências éticas. Para Jung (2012, §1652), “tudo o que é vivo sofre modificação. Não deveríamos contentar-nos com tradições imutáveis.”
Ele acredita que as religiões, sobretudo o Cristianismo, deixou de conversar com o espírito moderno. Caiu numa exterioridade vazia, um “verniz externo, porquanto o homem interior permaneceu intocado, alheio à transformação.” (JUNG, 1994, §12) Por um lado, a religião que não oferecia essa experiência, mas insistia em normas, dogmas e literalidades começou a parecer historinhas ingênuas aos olhos ilustrados que valorizavam a Ciência e a técnica. Por outro, essa consciência autônoma tornou-se inflada. “O homem moderno sofre de uma hybris da consciência, que se aproxima de um estado patológico.” (JUNG, 2020, §141) Jung chama esse processo histórico de “des-animação do mundo” e lamenta o vazio e a falta de sentido decorrentes daí.
A Igreja Católica, por sua vez, colocou-se em pé de guerra com a Modernidade, por muito tempo a condenando e reafirmando posições e posturas vindas desde o Concílio de Trento, ocorrido em meados do século XVI. Apenas no Concílio Vaticano II (1962-65) essa postura combativa foi revista, abriu-se um diálogo com a Modernidade, ecumênico e interreligioso, reforçou-se o caráter vivo e com isso dinâmico da Tradição, a Revelação como comunicação entre Deus e o ser humano, a Escritura como História da Salvação, sempre necessitada de uma hermenêutica ou interpretação, a Igreja como Povo de Deus a caminho pelas trilhas da História, devendo com isso rever constantemente as tradições e inculturar-se a partir também das tradições dos diversos povos. Nesse espírito e como recepção do Concílio, na América Latina foi desenvolvida a Teologia da Libertação, a partir do chão da vida e denunciando a opressão concreta vivida pelo povo, e reforçou-se a pastoral de base junto a este mesmo povo. Não sem exageros, claro, uma vez que a História caminha num movimento pendular. A partir da década de 1980, retomou-se o fechamento, reforçando movimentos espiritualistas que perdiam de vista o social, condenando alguns teólogos e dando força ao neoconservadorismo que hoje se revela a pleno vapor. Esse movimento veio com o neopentecostalismo, marcante também na explosão de igrejas evangélicas a partir do mesmo período; mas não apenas, uma vez que foram formados vários grupos, alguns dos quais retomam tradições como véus, determinadas vestimentas e mesmo o uso do latim. O que elas têm a ver com Jesus de Nazaré, reconhecido e transmitido pelos “com-Jesus” — chamados seguidores do Caminho — como o Cristo, é que fica difícil compreender.
De fato, Jung, em 1952, já alertava do perigo dos “ismos”, os exageros; porém, ele, a partir da inflação da consciência na Modernidade (materialismo, psicologismo, ateísmo), e nós, nessa retomada pendular, ainda sem alma, centrada em acessórios e absolutamente excludente e desumana. Pois, enquanto nos dividimos política e religiosamente (e o que é pior, Igreja e Estado novamente de mãos dadas e alianças feitas), continuamos nos afastando da interioridade e da transformação profunda a que a autêntica experiência religiosa guardada pela bem compreendida Tradição nos conduziria. Seguimos nos matando em nome de Deus. E o pior: continuamos a projetar, a dizer que são os outros os perigosos e assassinos, inimigos da família, da moral e dos bons costumes (como outrora, no auge do Iluminismo, talvez fossem os outros os ignorantes e selvagens). “Como poderá ver claramente, quem não se vê a si mesmo, nem às obscuridades que inconscientemente impregnam todas as suas ações?” (JUNG, 2020, §140)
O caminho proposto pela Psicologia Analítica, que conversa com a espiritualidade que está no cerne, núcleo das diversas religiões, é humanizador (individual e coletivamente) e pode dar resposta ao momento tão difícil que vivemos. O chamado de volta às fontes, feito pelo Concílio Vaticano II aos católicos e pessoas de boa vontade, e que cada tradição religiosa também reconhecerá quando sente a necessidade de se reaproximar da experiência primeira, vai na mesma direção. A Tradição conversa com a espiritualidade no sentido do que é essencial e valor fundamental para a humanização do humano; as tradições trazem a marca de uma época e podem contribuir ou não com isto, precisando de constante discernimento.
Quando a religião se torna guardiã da experiência que busca integrar consciente e elementos do inconsciente e percorrer uma trilha ética a partir da responsabilidade pela vida, ela cumpre seu papel de proximidade transformadora e, neste sentido, podemos dizer com Jung:
ninguém pode saber o que são as coisas derradeiras e essenciais. Por isso, devemos tomá-las tais como as sentimos. E se uma experiência desse gênero contribuir para tornar a vida mais bela, mais plena ou mais significativa para nós, como para aqueles que amamos — então poderemos dizer com toda a tranquilidade: “Foi uma graça de Deus”. (JUNG, 2020, §167)
Tania Pulier — analista em formação/IJEP
Lilian Wurzba — analista didata/IJEP
Referências:
DORST, Brigitte. Introdução. In: JUNG, Carl Gustav. Espiritualidade e transcendência. Petrópolis: Vozes, 2016. p. 10-34.
JUNG. Psicologia e alquimia. Petrópolis: Vozes, 1994.
___. A vida simbólica. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. v. 2.
___. Psicologia e religião. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2020. v. 1.