O objetivo deste artigo é refletir sobre o não confronto com a Sombra e o viver na simbiose promovida por diversas dimensões na contemporaneidade. É possível sofrer por uma ilusão de um “eu ideal” e não querer sofrer para aceitar uma medida que corresponda melhor ao “eu”? De que maneira isso corrobora em prol do Mal?
A contemporaneidade tem realizado movimentos que à luz da psicologia junguiana poderíamos chamar de unilateralizantes: uma busca incessante pela felicidade; concepções únicas de riqueza e pobreza (monetária), de sucesso, de beleza, etc.; e agora, está cada vez mais automatizada.
Filha da Cultura de Massas de Morin (1997), Harari (2016) demonstra como a sociedade e seus aparelhos eletrônicos estão cada vez mais automatizando as escolhas humanas – qual trajeto percorrer com o carro; qual comida escolher diante da promoção do dia; com qual indivíduo se relacionar (lembrando de aplicativos de relacionamentos), entre outros.
De fato, os algoritmos, por meio de estatísticas avançadas, sugerem serviços, produtos, ideias e ideais e entregam somente o que seu usuário gostaria receber. Isso é válido para o âmbito econômico, social e também político. A imagem mais popular que se encontra para este fenômeno atual é a bolha.
A bolha é similar ao círculo, ao oroboros, que remonta simbolicamente o útero, a mãe protetora e simbiótica. Estamos aqui falando não de uma Totalidade a qual o herói volta depois de sua jornada; mas de uma Totalidade a qual o ser humano não está saindo para tornar-se indivíduo.
O que Jung (2013) denomina de Fantasia pode trazer uma riqueza para o pensamento. A frase “alguma coisa de real importância chegou a existir sem ter sido, primeiro, fantasia?” (JUNG, 2013, p. 73) já aponta que o autor entende Fantasia como humus da psique individual e coletiva, sem o qual não seria possível estabelecer uma concepção de realidade, de “eu”, e por isso mesmo, até de se relacionar com o outro. Nada obstante, este processo possui estagnações, passividades e, individualmente, limites.
Um dos grandes limitantes da Fantasia, e portanto da psique, é ela permanecer na oroboros, seja dos algoritmos, seja da família de origem (vide meu artigo anterior), seja onde for. Em contrapartida, esse contexto é por demasia confortável para o “eu” já que nesta simbiose, o “eu” normalmente cria uma imagem ilusória de si e acaba por preferir manter-se na ilusão ao invés de confrontar o “não-eu”, isto é, sua Sombra. O Mal que estar nesta simbiose pode provocar e os preconceitos que podem criar-se a partir disso acabam por violentar tanto o “eu” quanto os que ele exclui na medida em que segue essa vida inconsciente.
Jung (2012) discorreu brilhantemente sobre culpa coletiva e como ela afetou a Europa inteira no pós-nazismo. Talvez, neste sentido, todos ainda sentiremos a culta dos mais de 500 mil mortos pelo coronavírus aqui no Brasil.
Neste contexto parecem existir dois sofrimentos – um destrutivo e outro criativo. O destrutivo é o permanecer na simbiose: a Fantasia do “eu” é tão sedutora que o indivíduo apesar de ter ideia de sua Sombra, sofre por estar identificado demasiadamente com uma imagem criada e legitimada pelas suas bolhas (unilateralizada), ainda que sua alma tente reagir trazendo sonhos, atos falhos, sincronicidades e somatizações (JUNG, 2014). Em síntese, este é o sofrer por não querer sofrer (passar por).
Este grupo pouco ou nada se difere dos grupos de indivíduos que negam completamente sua Sombra, acreditam ser “Cidadãos do Bem” e cometem as maiores atrocidades possíveis. Enquanto estes últimos estão cegos para o Mal em si, os que escolhem uma Fantasia de “eu ideal” fecham os olhos para o próprio Mal. Não à toa, no Canto III da Divina Comédia, Dante Alighieri afirma que, para àqueles que em tempo de crise mantiveram-se calados ou indiferentes, do Céu são excluídos e do Inferno repelidos. Isto é, para estes não há um lugar nomeado, já que passaram suas vidas sem assumir a qual lugar pertencem.
Com isso podemos entender que este “sofrer por não querer sofrer” é uma das atitudes mais maléficas possíveis, pois ela estagna o indivíduo em uma cosmovisão reduzida, em uma ilusão de “eu ideal e somente bom” ou de “vida ideal”. Cypher, em Matrix, é o exemplo cinematrográfico deste indivíduo – reconhece o deserto do real, mas quer voltar à simbiose. Künsch (2021) aponta que “do Mal não se escapa, assim como sem o confronto com o Mal não se avança”. Portanto, quando se está estagnado, do Mal se consome e dele vive-se mesmo negando-o veementemente, fortalecendo assim, atualmente, um status quo preconceituoso, totalitário e diabólico.
Já o segundo tipo de sofrimento é pela integração e reconhecimento da Sombra. Carl G. Jung, nos Livros Negros, quando encontra-se com a imagem a menina morta, e do fígado dela tem que se alimentar, percebe que o mal está em todos nós. Ele sofre ao desprender o fígado da menina e sofre ainda mais para mastigá-lo. Mas ao mesmo tempo, existe aí um sofrimento criativo, no sentido da ampliação da consciência. Reconhecer o Mal em si é um alívio (JUNG, 2012) e primeiro passo para sua domesticação. Não podemos negar que quando ele acende novamente em nossa alma ele não afete, mas neste ponto, já há o reconhecimento do que somos capazes, e desidentificados, podemos tentar ab-reagir.
Küsch (2021) aponta que “de onde vem o Mal podem vir também as energias para se lutar contra o Mal”. Esta reação provém da fonte: da Fantasia: da imaginação ativa à arteterapia e expressões criativas, o que faz a antiga Fantasia ilusória do “eu” se desmantelar, deixando solo fértil para novas imagens serem construídas. Vale lembrar que este processo é ininterrupto.
Leonardo Torres – Analista em Formação pelo IJEP
Analista Didata: Waldemar Magaldi
Referências:
HARARI, Y. N. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Lestas, 2016.
JUNG, C. G. Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, C. G. Aspectos do Drama Contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 2012.
KÜNSCH, D. Livrai-nos do Mal Amém. em: https://www.ijep.com.br/artigos/show/livrai-nos-do-mal-amem Acessado em: 15 jun. 2021.
MORIN, E. Cultura de Massas do Séc. XX. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1997.