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Cruzando Limiares na Companhia dos Deuses Hermes e Héstia

Vinde habitar esta casa bonita com mente amistosa

Juntos, pois vós conheceis as ações elevadas dos homens

Sobre esta terra, a quem vós ajudais com saber e vigor.

Salve, nascida de Crono e tu, Hermes do cetro dourado!

Ora de vós eu irei me lembrar…

LEONARDO e ANTUNES, 2016

Pensar em Hermes e Héstia, juntos, como invocados no poema-hino acima, pode parecer algo improvável, porque, através das narrativas míticas, sabemos que Hermes é o grande mensageiro de Zeus. Um deus mundano, jovem por excelência, um tanto trapaceiro, trickster, sagaz e ardiloso. Capaz de circular pelos recantos mais obscuros e iluminados do universo.

E sabemos que Héstia é a mais velha das deusas do Olimpo, graciosa, pura e virgem, protetora do mundo interior, da união em torno do espaço íntimo do lar. De acordo com Ginette Paris (1986): “Héstia e Hermes juntos formam uma associação de opostos, o primeiro recusando-se a deixar o centro e o último sendo o deus das comunicações e viagens.”

Hermes e Héstia juntos?

Mas, então, por que no Hino Homérico à Héstia eles são invocados juntos e de que momento tão especial da vida humana em que isso acontece o poema está falando?

Hermes e Héstia unidos como divindades indicariam, de acordo com o poema homérico, que nós, humanos, precisamos da ajuda de ambos em momentos de grandes mudanças, aqueles nos quais devemos ultrapassar fronteiras e limiares e durante os quais somos convocados a empreender a travessia que nos levará de um ponto a outro, de uma condição conhecida à outra completamente diferente.

Héstia estaria presente nos dois pontos fixos, o inicial e o final, e no centro, garantindo que ao longo do percurso sejam mantidos os sentimentos de acolhimento, de segurança, de certeza de que seremos capazes de suportar esse período de transição e que chegaremos ao outro lado, onde ela nos acolherá novamente.

Hermes estaria presente ao longo do percurso, guiando-nos, ensinando o caminho, auxiliando-nos a lidar com o imponderável, o desconhecido, o estranho, dando-nos astúcia e inteligência, além das ferramentas necessárias para a construção de conhecimentos e modos de adaptação e comunicação que nos auxiliarão na nova vida que nos foi exigida.

Giustiniani Hestia, escultura em mármore, Coleção Torlonia, Roma e Hermes com o infante Dionísio, conhecido como Hermes de Olímpia, escultura em mármore atribuída a Praxíteles, Museu Arqueológico de Olímpia, Grécia

Pandemia: habitando o lar

Durante a pandemia do Covid-19, tive a nítida impressão que essas duas divindades se uniram num “único lugar” e que fomos convocados a empreender uma travessia e a suportar uma transição dolorosa e muito difícil a partir de “nossas casas”. Foram dois anos de perdas diárias, em todos os sentidos que se possa imaginar. Certezas e hábitos foram colocados em xeque, pois a cada dia, acordava-se e se pensava: “quem mais e o que mais morrerá hoje?”

Dentro de nossas casas, sentíamo-nos acolhidos. Héstia confirmava sua presença e seu espírito: “a casa é um lugar seguro, eu estou aqui”. No entanto, estávamos tão habituados à companhia de Hermes que pouco nos preocupamos com a “nossa casa”, num sentido realmente amplo da palavra.

Na sociedade contemporânea, Hermes é a divindade mais presente, pois queremos a vida mundana, as relações, os contatos – mesmo que virtuais e, quando chegamos em casa, continuamos querendo todas essas coisas.

A comunicação e a informação se tornaram os fundamentos de nossas vidas, as redes sociais, as bases de nossas relações. Então, estar em casa ou no mundo exterior não fazia muita diferença, pois estávamos o tempo todo conectados, literalmente.

O longo período inicial de isolamento social – quando as ruas da cidade ficaram vazias e só saíam de casa as pessoas que realmente não podiam se permitir o isolamento e que arriscavam suas vidas e de seus familiares ao saírem para trabalhar, isto é, aqueles que trabalhavam no comércio essencial, na indústria, no transporte, nos hospitais etc. – obrigou-nos a uma rápida adaptação.

Novas soluções pipocavam rapidamente aqui e ali, as escolas passaram a ministrar aulas online. Os cursos, os escritórios fecharam suas portas e começaram a projetar plataformas de home-office. Os serviços de courier e de entregas domiciliares cresceram exponencialmente e foram cruciais naquele momento.

Redes sociais e conectividade

Aplicativos como o Instagram, Youtube, Zoom, Sympla, dentre outros, conectavam profissionais de várias áreas que passaram a utilizá-los não somente para o lazer, mas também para fazer circular seus projetos, ideias e trabalhos.

Conferências e reuniões passaram para a modalidade online; ritos fúnebres, já que foram limitados a poucos membros da família e sendo proibidas as aglomerações, eram transmitidos online, assim como casamentos, festas de aniversário, missas, batizados, etc.

Héstia esteve presente o tempo todo, já que estávamos em seus domínios. Ela bem que tentou nos chamar de volta à casa tantas vezes antes, lembrando-nos de que aquele espaço interior também fazia parte de nossas vidas, o espaço tão negligenciado do lar. Mas estávamos muito fascinados com o mundo lá fora e demos poucos ouvidos a ela.

Hermes, assumindo sua forma mais abstrata, surpreendentemente, durante a pandemia, adentrou os domínios de Héstia. Não para permanecer definitivamente, porque isso seria impossível para ele, mas para nos auxiliar nessa transição tão necessária.

Devemos lembrar que o símbolo de Héstia é a lareira, o fogo que aquece a partir de um ponto central toda a dimensão do nosso “lar”. Enquanto que o símbolo de Hermes é “um pilar de pedra com um falo ereto e tendo a cabeça de Hermes no topo que é colocado nos limites das propriedades, nas encruzilhadas ou pontos de transição, denominadas Hermas” (MORFORD, LENARDON, SHAM, 2013), ou seja, sempre fora, exposto. Dois domínios que parecem, num primeiro momento, impossíveis de serem conectados.

Herma, Museu Nacional Arqueológico de Atenas

No entanto, foi o que aconteceu e ambos passaram a compartilhar do mesmo espaço, só que de modo muito peculiar.

Claro que Hermes teve que se contentar em nos fazer viajar, em nos guiar, não por estradas e fronteiras físicas, mas através de algoritmos, interfaces e protocolos do mundo cibernético. Mas ele já estava familiarizado com tudo isso, a gente é que não estava!

O fato de Hermes se manter sempre jovem faz com que ele esteja constantemente atualizado. Como nossos filhos e netos que já nascem sabendo tudo de celular, laptop, videogame e Ipad. Enquanto nós, mais velhos, sentimo-nos engatinhando nesse terreno tão cheio de novidades a cada dia. Na pandemia, essas novidades se multiplicaram. Isso exigiu muito esforço, mas a partir daquele momento, muito coisa mudou e demos um imenso salto na nossa capacidade de comunicação e interconexão.

Hermes com toda a sua exuberância comunicativa parece ter ofuscado um pouco o domínio de Héstia.

Todo mundo queria falar ou fazer alguma coisa a partir de suas casas.

Pululavam cursos e palestras, transmissões ao vivo de famosos e anônimos que debatiam sobre tudo, mas principalmente sobre o momento trágico que vivíamos. Várias iniciativas no sentido de amenizar a dor em relação às perdas e às mudanças tão violentas com inúmeras campanhas de solidariedade, distribuição de cestas básicas, kits de máscara e álcool gel para população de rua.

Vizinhos se ofereciam para fazer as compras para seus vizinhos idosos ou vulneráveis. Nós testemunhamos realmente uma grande corrente do bem acontecendo em todo lugar e tudo organizado virtualmente.

Também víamos as pessoas cantando a partir de suas janelas, dando apoio ou mandando mensagens de insatisfação através dos milhares de panelaços que aconteciam em todas as cidades do Brasil. Uma necessidade quase que visceral de comunicar a partir de nossas casas com o mundo lá fora que tinha se tornado tão hostil por conta de um vírus do qual sabíamos muito pouco.

Adaptamo-nos a tudo isso com uma rapidez incrível, mas será que não seria o caso de parar e pensar no que isso significou realmente para nossas almas?

Que reverberações foram sentidas em nossas vidas, tanto no auge da pandemia quanto agora?

Resolvi fazer essa reflexão, porque tenho a sensação de que esquecemos daquilo que vivemos. Uma sensação de que o novo normal já virou velho. O que era novo, hoje é antigo, parafraseando Belchior, e precisamos todos esquecer. Será?

Para mim, aconteceu algo interessante. Devido à pandemia, o curso de Arteterapia que eu tinha acabado de me inscrever, acabou tendo que ser feito na modalidade online. Com isso, tive a oportunidade e o privilégio de experimentar algo muito estimulante ao longo desse período trágico: pude redescobrir “minha casa”.

Falo isso em todos os sentidos, pois “casa” aqui inclui também minha história, meu passado, meus ancestrais, minha vida, minha alma. Também incluo minhas lembranças, fotos antigas, pratos preferidos e tradicionais da família, o contato mais profundo com meu filho.

Foi realmente uma experiência que eu não tinha há anos.

Todos aqueles anos anteriores de intensa correria, de trabalho incansável, de luta pela sobrevivência, fizeram-me esquecer a “minha casa”. Naquele momento, vi o quanto sentia falta dela.

Todas as dinâmicas propostas pelas aulas me inspiravam e me obrigavam a ir bem mais fundo nessa “viagem interior” e o fato de estar em casa, cercada das minhas coisas, dos meus objetos, das minhas roupas, fotos, lembranças, odores, alimentos, tudo tão pessoal, tão meu, ativou um intenso trabalho de resgate daquilo que pertencia a mim e somente a mim.

Tantas e tantas coisas esquecidas ao longo do tempo produtivo da vida adulta que nos empurra em direção a um frenesi de energias espalhadas e consumidas com frivolidades e inutilidades. Ter feito o curso de Arteterapia durante praticamente toda a pandemia e a partir da minha casa foi uma oportunidade única que tive na vida, pois tive a chance de contar com todo o meu “arsenal pessoal e doméstico”.

Superando obstáculos

Logo no início, com muitas lojas fechadas, mal tínhamos a chance de comprar nossos materiais para as aulas. Mas o que poderia ter sido um obstáculo acabou se tornando um exercício de criatividade e imaginação.

Além, é claro, de um mergulho profundo nos meus pertences mais íntimos, nas lembranças, nos objetos, roupas, fotos, utensílios, plantas, alimentos, vasilhas, escritos perdidos dentro e fora do computador, tecidos, sapatos, quadros, molduras antigas, caixas, souvenirs, etc.

Tudo virava possibilidade de inspiração e de criação de imagens.

Fiquei impressionada com a profundidade dos trabalhos produzidos nas aulas e com o quanto nossa imaginação corria solta, livre. Algo que contrastava com nossa condição real. Foram promovidos encontros online paralelos, fora das aulas, onde cada uma de nós propunha uma atividade criativa. [E somente esses encontros dariam um artigo à parte, pois eram muito intensos e produtivos]. Fazíamos dois, três trabalhos em duas horas de encontro e depois falávamos daquilo que tínhamos tentado expressar através deles.

Companhia na solidão: Hermes e Héstia juntos

No auge da dor e da solidão, da incerteza e da insegurança, parecia que ambos os deuses, Héstia e Hermes, estavam ao nosso lado. Auxiliando-nos, guiando-nos e nos dando um manancial de imagens interiores que buscavam expressão.

Quando cruzamos um limiar, entramos em um espaço liminar, um lugar entre dois mundos, uma zona de transição entre duas formas e orientações fixas, ou duas estruturas e identificações psicológicas fixas.

Não estamos mais fixados em um lugar literal ou em imagens mentais familiares dos outros ou de nós mesmos; o ego entrou em um espaço que não reconhece e não pode controlar. A liminaridade é criada durante os períodos de mudança e crescimento psicológico, quando o ego é incapaz de se identificar totalmente com uma autoimagem anterior.

O ego fica então suspenso entre o que é familiar e o que é desconhecido, o que gera confusão, desorientação e receptividade a formas mais sutis de ser, permitindo ao indivíduo perceber uma realidade diferente e estar aberto aos deuses. […] A liminaridade é experimentada não apenas na perda de um ente querido, mas durante transições importantes da vida, como adolescência, meia-idade e outros eventos nodais em nossas vidas, bem como peregrinação. E quando entramos na liminaridade, o deus Hermes é evocado como um guia para a esfera de Héstia e da alma.

Conhecemos esses deuses por meio da troca de pele, mudanças de identidade e mudanças no ciclo de vida.[i]

Após cada encontro ou aula, nos sentíamo aliviados porque, após tanta reflexão, tanta dor e tanto estranhamento vividos ao longo daquela semana ou mês, tínhamos a possibilidade de expressar, de exteriorizar nossos sentimentos e éramos acolhidos. Porque estávamos todos enfrentando o mesmo “monstro desconhecido”, não importando onde estivéssemos.

A pandemia foi vivida como um trauma coletivo e global e todas essas condições afetaram bastante nossas produções e nossas trocas. Ainda bem que tínhamos Hermes a nos guiar dentro da esfera de Héstia e da alma, mas também para nos proporcionar meios de exprimir essas experiências e transitar por elas, numa tentativa constante de mudança daquele estado de profunda dor.

A comunicação daquilo que estávamos vivenciando se tornou fundamental para nosso bem-estar físico e psíquico.

Era o que víamos em todo lugar! As pessoas sentiam necessidade de expressar para o mundo a partir de suas casas suas dores, sonhos, imagens, criações, inspirações.

Não foram poucos os projetos que assumiram a tarefa de reunir relatos de sonhos durante esse período. Em parceria com algumas universidades federais do país, foram criados bancos de sonhos.

Com um compilado de mais de 900 sonhos, os psicanalistas Christian Dunker, Cláudia Perrone, Gilson Iannini, Miriam Debieux Rosa, Rose Gurski organizaram o livro Sonhos Confinados: o que sonham os brasileiros em tempos de pandemia. Senão vejamos a apresentação deste livro abaixo transcrita:

Sonhos Confinados

A precariedade das vidas e a fragilidade das condições humanas e sociais parecia se desnudar de forma quase poética nas narrativas oníricas. A exigência suplementar de trabalho psíquico que a chegada da pandemia nos impôs, principalmente nos primeiros meses, torna esses sonhos particularmente interessantes.

Como não dispúnhamos de formas simbólicas, nem de narrativas padrão, nem de um repertório de imagens compartilhadas capazes de apreender tudo que se passava, nosso psiquismo teve que trabalhar mais. Teve que processar, dia e noite, sem parar, esse novo real. Os sonhos desempenham, nesse contexto, um papel decisivo em nossa saúde psíquica.

DUNKER, PERRONE, IANNINI, ROSA, GURSKI, 2021

Os sonhos e suas imagens e narrativas invadiram a realidade do nosso dia-a-dia e a realidade trágica que vivíamos invadia constantemente nossos sonhos e imagens.

Nossas perdas, dores, medos, incertezas eram tão fortes e profundos que a produção onírica aumentou em tal grau que todos passaram a querer comunicar e compartilhar esses sonhos. Se tratou de um movimento de introspecção, de atenção à vida interior, à condição psíquica. Ao passo em que, após essas vivências, a comunicação foi fundamental.

Sonhos também viraram espetáculos teatrais, como a peça online produzida pelo Grupo Galpão, de Belo Horizonte, Sonhos de uma noite com Galpão [ii].

Viraram livros, como o acima mencionado, Sonhos Confinados. Dentre outros projetos e iniciativas destinados a demonstrar o impacto que a pandemia estava tendo nas nossas produções imagéticas. Em outras palavras, o quanto nossa psique estava se esforçando para se adaptar e para construir novas perspectivas de sobrevivência.

Pensando hoje, em retrospectiva, para mim é quase impossível separar essas duas experiências: pandemia e curso de Arteterapia. E esse artigo pode ser considerado um modo de, a partir dessa relação entre Hermes, Héstia, pandemia e curso, tentar avaliar o impacto de tudo isso na minha vida e na minha alma.

O vírus SARS-CoV-2 preenchia nosso imaginário.

Não se sabia o que ele estava trazendo, para onde estava nos levando. A imagem dele aparecia em todo lugar, aquela forma circular cheia de pontos de conexão em volta, como se fossem cornetas de arautos anunciando desgraças e trazendo notícias ruins todos os dias.

Para mim, a imagem do vírus era a imagem do isolamento. Produzi uma imagem do vírus em uma das aulas: ele tinha pés estranhos, tortos, calçava uma bota e tinha vários braços, como um polvo, que trazia e nos entregava coisas estranhas.

Essa figura também vinha como líder de uma banda, líder de seus seguidores, uma legião de desgraças. O líder carregava e brincava com um bastão que tinha uma seta para cima e para baixo, como que determinando quem vive e quem morre. Foi uma imagem muito impactante para mim e até hoje me incomoda olhar para ambas as imagens abaixo: a do vírus e a minha interpretação dele.

Durante a pandemia redescobri minha casa e conheci uma espécie de vaso alquímico. Um Temenos que me protegia, acolhia e me dava segurança.

Redescobri a presença de Héstia.

Olhava em torno e reconhecia os sinais, coisa que não acontecia há tempos, sentia-me segura para interagir com os elementos presentes, sabia com quem e com o que eu podia contar.

O Temenos, como espaço para a construção da alma, foi uma grande inspiração para o desenvolvimento futuro do meu trabalho como Arteterapeuta. Como nos diz a Prof. Dra. Karen Geisel Domingues, autora do artigo intitulado Cultivar Alma – Um olhar sobre o processo transferencial na abordagem junguiana:

No Temenos, resolvi observar com mais cuidado o nascimento da vida anímica, a partir da relação Eu-Tu (BUBER in JACOBY, 1992), ou seja, os processos transferenciais que surgem a partir do momento em que duas almas se encontram com a intenção de fazer desabrochar a vida mais profunda da própria vida – a essência da criação, o Amor.

Pois, quando a existência parece estar estagnada em suas possibilidades de expressão no sujeito, a capacidade de tocar a alma do cliente pelo terapeuta vem como arte genuína.[iii]

O período da pandemia me ofereceu uma oportunidade única de desenvolver uma relação mais amorosa com minha alma.

Estava nos domínios de Héstia, da interioridade, com Hermes a me guiar nos caminhos em direção à alma.

Numa das aulas, produzi uma imagem do que seria meu psicopompo nessa trajetória em direção ao mundo interior. À essa morte individual e coletiva que vivenciei, literal e simbolicamente. Psicopompos são criaturas, espíritos, anjos ou divindades em muitas religiões cuja responsabilidade é escoltar as almas recém-falecidas da Terra para a vida após a morte.

Em meio a tantas perdas, consolava-me pensar que uma criatura estaria ao meu lado e ao lado de tantos que estavam perdendo suas vidas. Imaginei meu companheiro e ele tomou a forma retratada nessa colagem abaixo:

Dentro de um trauma coletivo de tamanha dimensão como foi o da pandemia, são muitos os complexos que constelam.

Em suma, vivenciamos um forte complexo de negação, em que milhares ainda duvidavam até mesmo da existência do vírus e afirmavam que se tratava de manipulação dos números. Sendo estes também alvos de suspeita do próprio Presidente da República que liderava carreatas e “motociatas” repletas de negacionistas.

O agora ex-presidente nem afirmava nem negava que teria se vacinado. Hoje sabemos que sim, que ele se vacinou. Que a negação servia apenas para prejudicar e colocar em risco a população, pois ele mesmo estava se protegendo.

Ambos complexos, o da morte e o da negação da morte, encontraram-se e reverberaram de tal modo que dois polos foram se formando. Um conflito de dimensões pouco vistas nos últimos anos no país. Formaram-se dois grupos antagônicos, membros da mesma família romperam relações, casais se separaram, amigos de longa data nunca mais se falaram.

E todo o terreno de conflitos para as eleições de 2022 que se aproximavam estava sendo adubado com ódio e ressentimento. Só a negação nos torna reféns de nossas sombras e elas emergiram e ninguém mais conseguia controlar as animosidades.

Ficamos trancados e em isolamento durante muito tempo. Muitos em home-office, outros tantos sem trabalho realmente. Isto por que as atividades ainda estavam bastante restritas, apesar de ter iniciado a volta de algumas após as primeiras doses da vacina.

Retornando ao presencial com Hermes e Héstia

Lembro-me de ter voltado às atividades presenciais após a segunda dose da vacina em setembro de 2021. Esse confinamento mudou muito a relação, principalmente das mulheres, com a questão da aparência.

Na época, muitas figuras da mídia assumiram seus cabelos brancos, passaram a não pintar mais, e isso foi alvo de muita discussão, mas ao mesmo tempo, foi um dos gritos de liberdade dado pelas mulheres em relação ao aprisionamento do espelho.

Ao mesmo tempo, a exigência da perfeição também atuava em tantos outros domínios da vida da mulher: o profissional, o acadêmico, o familiar, o social. Também esses domínios estavam em xeque para nós mulheres e o domínio estético, de algum modo, foi um pouco colocado em segundo plano.

Pois bem, assumir os cabelos brancos foi um modo de gritar para os quatro cantos: “estou exausta, estou no meu limite, não me venha com exigências estéticas, eu até aguentei durante muito tempo, mas agora, durante essa tragédia, não quero mais aguentar!”

Agora, em abril de 2023, podemos dizer que o auge da pandemia do Covid-19 já passou, mesmo que ainda sejam contabilizadas algumas centenas de mortes por mês.

Estão começando a campanha de vacinação com a ambivalente, que tem o potencial de dar cobertura para o vírus e suas variantes conhecidas.

Os casos são muito menos fatais, chegamos a um grande percentual de cobertura de vacinação no país. O pior já passou, mas os efeitos são visíveis. Com manifestações físicas e psíquicas resultantes do longo período de isolamento social e de todo o estresse que enfrentamos ao longo dos últimos três anos.

Poder contar com Héstia – que nos acolheu no mergulho profundo em nossa alma, e com Hermes -que nos guiou através dos meios necessários e das oportunidades de expressão, foi inestimável.

Resultando num crescimento, desenvolvimento e ampliação de consciência que, pelo menos para mim, talvez não fosse possível ocorrer de outra forma.

Foi uma conjunção de fatores tão improváveis quanto dolorosos, tão surpreendentes quanto profundos, que me permitiram atravessar a jornada do curso e da pandemia. E, agora ,desse artigo-relato, onde revivo muitas das experiências e emoções envolvidas.

Isa CarvalhoMembro Analista em formação IJEP

Lilian WurzbaAnalista Didata IJEP

Referências:

ANTUNES, C.L.B. (2015). 26 Hinos Homéricos. Cadernos de Literatura em Tradução, (15), 13-24. https://doi.org/10.11606/issn.2359-5388.i15p13-24.

DUNKER C., PERRONE C., IANNINI G., ROSA M. D., GURSKI R. Sonhos Confinados: o que sonham os brasileiros em tempos de pandemia. São Paulo: Autêntica, 2021.

MORFORD, M.; LENARDON, R. J.; SHAM, M. 10.ed. Classical Mythology. Oxford: Oxford University Press, 2013.

PARIS, G. Pagan Meditations. Dallas: Spring – Dallas, 1986.


[i]https://kipdf.com/hermes-and-hestia-transitions-and-crossroads_5aee40e07f8b9ad6918b45d6.html – acesso em 28 de fevereiro de 2023

[ii]https://www.grupogalpao.com.br/projetos/sonhos-de-uma-noite-com-o-galpao acesso em 28 de fevereiro de 2023

[iii]https://www.academia.edu/33707196/Cultivar_Alma_Um_olhar_sobre_o_processo_transferencial_na_abordagem_junguiana – acesso em 28 de fevereiro de 2023

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