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Importância do sonho no setting terapêutico – relato de um caso

IMPORTÂNCIA DO SONHO NO SETTING TERAPÊUTICO – RELATO DE UM CASO Psicologia Junguiana

Muitas vezes Jung compara a constelação de complexos a um estado de possessão, como se forças demoníacas tomassem conta dos pensamentos, do corpo e das ações do indivíduo. Sabemos que não estamos falando literalmente de demônios – sem negar possibilidades metafísicas, mas não as considerando para uma explicação psicológica do fenômeno -, mas sim de personalidades fragmentárias, personagens psíquicas que habitam o inconsciente pessoal e que, quando carregadas de energia, irrompem na consciência determinando o comportamento da pessoa. Nas palavras do próprio Jung:

Toda constelação de complexos implica um estado perturbado da consciência. Rompe-se a unidade da consciência e se dificultam mais ou menos as intenções da vontade, quando não se tornam impossíveis. Daí se deduz que o complexo é um fato psíquico que, em termos de energia, possui um valor que supera, às vezes, o de nossas intenções conscientes; do contrário, tais rupturas da ordem consciente não seriam de todo possíveis. De fato, um complexo ativo nos coloca por algum tempo num estado de não liberdade, de pensamentos obsessivos e ações compulsivas para os quais, sob certas circunstâncias, o conceito jurídico de imputabilidade limitada seria o único válido. (JUNG, 8/2, §200)

            Nesse sentido, podemos dizer que a possessão é a irrupção na consciência de uma imagem reflexa de um afeto personificado, ou seja, um complexo. O ego enxerga esse personagem como se não fosse parte do indivíduo; tenta criar explicações para tal fenômeno, sendo uma delas aquilo que em diversas religiões foi chamado do possessão.

            Para começarmos a falar sobre os sonhos e entender como os complexos estão relacionados ao assunto, lembremos rapidamente de Freud que afirmou que o sonho seria a via régia para o inconsciente. O pai da psicanálise não estava completamente errado, sua afirmação só não estava completa, faltando-lhe a percepção daquilo que Jung irá afirmar mais tarde quando diz que a verdadeira via régia para o inconsciente são os complexos. A visão mais ampla de Jung permite que compreendamos que os complexos se manifestam sim nos sonhos, mas podem aparecer também personificados em muitos outros tipos de narrativas, como por exemplo nas imaginações dirigida ou ativa; nas produções artísticas e nos sintomas.

            Para essa pequena reflexão, trouxe o sonho de uma cliente, material que se apresentou de maneira muito pedagógica para ilustrar como a própria psique cria imagens que demonstram aquilo que Jung afirmou em sua teoria. Veremos no material onírico o complexo personificado como uma jovem possuída pelo demônio que luta para invadir o espaço consciente do indivíduo. Se trata do caso de uma mulher de quase cinquenta anos com cerca de dois anos de trabalho analítico comigo. A história completa não importa para a discussão desse evento particular, o mais importante aqui é um aspecto específico do relacionamento que essa mulher tinha com a mãe, a qual, mesmo durante a vida adulta da filha, vivendo fisicamente longe e afastada de sua vida cotidiana, continuava agindo como se ela fosse uma adolescente e repetindo frases do tipo “você só pensa em você”, “você só faz aquilo que quer”, “você não enxerga os outros”; coisas que costumava lhe dizer quando ela ainda estava se descobrindo como ser individual que poderia pensar e agir de maneira diferente dos próprios pais. O sonho foi assim:

Eu dirijo uma espécie de mini ônibus, uma van, o veículo está vazio. É noite, eu passo por uma rua pouco iluminada e paro no ponto onde os passageiros poderiam embarcar, embora só tenha uma pessoa. Lá em baixo, pelo vidro da porta do veículo, eu vejo a menina do filme O exorcista; ela está como no filme, com o rosto desfigurado e possuída pelo demônio. Ela quer entrar no ônibus e por alguns segundos eu fico em dúvida se devo ou não deixá-la subir. Por fim decido que é melhor não, saio com a van deixando ela no ponto. Não me arrependo.

            O fato mais interessante dessa história foi essa mulher contar esse sonho e fazer as associações somente após o material onírico ter sido útil em sua vida consciente, o que aconteceu antes mesmo da sessão de análise quando ela relatou o sonho. A situação foi a seguinte: numa discussão com sua mãe ao telefone, enquanto ela ouvia as costumeiras provocações que sempre a levavam a perder o controle e cair em discussões absurdas e descabidas, ela sentiu que isso estava prestes a acontecer novamente e que em muito breve perderia o controle, porém, dessa vez, teve o seguinte pensamento “não vou deixar esse demônio subir no meu ônibus”. Essa ideia surgiu enquanto a imagem da moça possuída que lhe visitara no sonho reaparecia de maneira clara em sua mente. Depois desse pensamento ela pôde simplesmente deixar sua mãe discutindo sozinha enquanto a ouvia pacientemente e aguardava que se acalmasse sem precisar entrar numa das brigas sem sentido que sempre acabavam acontecendo nessas situações.

            Após o acontecido, durante a sessão, relatou o sonho e fez as seguintes associações: o veículo de transporte público era o seu próprio comportamento, sua própria vida; ela deveria dirigir e decidir quem poderia ou não entrar. A figura da mulher possuída foi associada diretamente à sua adolescência, momento da vida em que discutia e brigava muito com a mãe, período também em que se interessou muito por filmes e histórias de terror e horror. Através da experiência ela já havia percebido a capacidade do sonho comunicar mensagens importantes para uma possível adaptação mais harmoniosa à maneira como ela lidava com aquela situação com sua mãe, que se arrastava fazia muitos anos. Ela percebeu ali que há muito tempo brigava com a projeção de um personagem que habitava a sua própria psique (seu complexo materno) e se deixava ser invadida por aquela adolescente possuída do sonho, a qual poderíamos dizer que caracteriza um complexo carregado de conteúdos sombrios. Porém, mais importante do que nomear qualquer função da psique, é perceber a dinâmica de funcionamento desse complexo. Nesse caso isso foi possível para ela através do encontro da mensagem enviada pelo inconsciente no sonho e da experiência que ela teve ao falar com a mãe no telefone.

            Durante a sessão aproveitamos para fazer algumas poucas ampliações das imagens, mesmo que o recado principal do sonho estivesse dado e compreendido através da experiência que ela viveu; isso havia sido o mais importante naquele momento. Não parecia necessário insistir em ampliações no nível do objeto, isso porque sempre existe a possibilidade de sonhos do passado voltarem a nos visitar no futuro se essa for a necessidade da psique; quero dizer que se for preciso esse sonho irá retornar para o nosso espaço analítico. Em momentos diferentes o mesmo sonho pode aparecer trazendo um novo recado que faça sentido em outras situações de vida; também não podemos esquecer o fato de que o inconsciente é um sitema compensatório natural da consciência, é atemporal e aespacial, portanto, os sonhos falam de passado, presente e futuro se olharmos do ponto de vista da consciência. Insistir em interpretações no nível do objeto pode arruinar a análise do ponto de vista do sujeito quando as conexões entre a vida consciente do indivíduo e o material do inconsciente estão tão claramente expostas, como foi no caso em questão.

            Podemos aproveitar o sonho e as associações da sonhadora para exemplificar as três principais funções atribuídas ao sonho por Jung, sendo elas a compensação, a pedagogia e a premonição. Sobre a primeira, Jung diz:

Quanto mais unilateral for a sua atitude consciente e quanto mais ela se afastar das possibilidades vitais ótimas, tanto maior será também a possibilidade de que apareçam sonhos vivos de conteúdos fortemente contrastantes como expressão da autoregulação psicológica do indivíduo. (JUNG, OC 8/2, §487)

            Do ponto de vista compensatório, o sonho diz claramente que minha cliente deveria decidir melhor aqueles que podem ou não influenciar sua vida consciente, no mundo exterior e na sua própria psique pessoal. Se deixasse o demônio entrar no veículo novamente, continuaria na mesma dinâmica de repetição de comportamento que a levava a discutir com a mãe, vivendo momentos de estresse e gastando energia a toa em brigas pífias. A ampliação durante a sessão a levou a pensar em como esse demônio poderia estar agindo em outros aspectos de sua vida, parecia portanto que ele tomava conta do veículo em outras situações onde ela precisaria manter a direção sobre controle. Não podemos confundir aqui a ideia de “manter o controle” com apenas seguir em linha reta; o ego estruturante quando dirige o carro precisa exercer sua habilidade e capacidade de decisão e flexibilidade para fazer as curvas necessárias para não sair da pista.

            A característica pedagógica do sonho cria para o ego uma possibilidade de reflexão sobre suas intenções existenciais negando, confirmando ou modificando a direção atual da consciência. Para ajudar nesse aspecto, vamos ver o que Marie Louise Von Franz tem a dizer a respeito dessa função:

Eles (os sonhos) possuem inteligência superior, uma sabedoria e uma perspicácia que nos orientam. Eles nos mostram em que aspecto estamos enganados e nos alertam a respeito de perigo; predizem eventos futuros; aludem ao sentido mais profundo da nossa vida e nos propiciam insights reveladores. (VON FRANZ, 1996, p. 11) (parênteses meus)

            A função pedagógica da aventura vivida neste sonho pode ser enxergada exatamente na atitude do ego onírico. Por um momento ela hesita, se pergunta se deve deixar aquele demônio entrar ou não no veículo, porém, decide que o melhor é não fazê-lo. O sonho a ensina que nesta situação específica, nesse momento de sua vida, o melhor é deixar esse demônio para trás e continuar seguindo em seu caminho.

            O sonho é uma antecipação inconsciente da realização consciente futura, mas como um plano rascunhado antecipadamente e não como uma profecia infalível. Nesse sentido, sua função premonitória esboça a solução para um conflito, uma espécie de plano que o ego poderá ou não seguir de acordo com sua capacidade de integrar as mensagens enviadas pelo inconsciente. De acordo com Jung:

A função prospectiva é uma antecipação, surgida no inconsciente, de futuras atividades conscientes, uma espécie de exercício preparatório ou um esboço preliminar, um plano traçado antecipadamente. Seria injusto classificá-los de proféticos, pois, no fundo não são mais proféticos do que um prognóstico médico ou meteorológico.” (JUNG, OC 8/2, §493)

            Portanto, não podemos deixar de notar a função premonitória do sonho que, sonhado anteriormente à conversa por telefone com a mãe, anuncia o momento com certa antecedência. Poderia-se argumentar que sendo essa uma situação vivida de maneira repetida pela sonhadora, o sonho não estaria na verdade trazendo nenhuma novidade. Porém, se for necessário procurar por algo novo nesse enredo, encontramos isso no fato de que no sonho ela continua seu caminho, ao invés de permitir que o demônio entre no veículo. Esse fato levanta uma questão diretamente conectada ao paradoxo da função premonitória do sonho: caso ela não tivesse sonhado com o demônio, teria entrado na discussão com a mãe? A atitude madura de perceber que ela continuava lutando contra seus fantasmas internos projetados na pessoa da mãe teria surgido naturalmente sem a ajuda do sonho? Nesse caso o sonho estaria apenas anunciando aquilo que já vinha se estabelecendo em sua psique. Ou será que o sonho realmente trouxe um ensinamento fundamental para a sua mudança de atitude?

            É claro que a imagem desse sonho poderia ser ampliada das mais diferentes maneiras, ganhando ainda mais volume se procurássemos motivos mitológicos em seu enredo, porém, não é essa a intenção desse pequeno artigo. Meu objetivo era apenas exemplificar como o sonho se conecta claramente com a vida consciente e, mesmo sem aprofundamentos teóricos e, principalmente sem interpretações fechadas e reduzidas, pode ajudar o indivíduo a encontrar um caminho de harmonização em sua vida. Atualmente o homem contemporâneo encontra chaves interpretativas com muita facilidade na internet e em dicionários de imagens e símbolos; acredito que o nosso papel como terapeutas, estudiosos e promotores do pensamento junguiano seja o de ensinar o indivíduo que ele não precisa dessas ferramentas, com as quais irá encontrar apenas alívio imediato, porém falso, para as suas angustias existenciais e para o entendimento das mensagens enviadas pelo inconsciente através dos sonhos ou até mesmo de outras maneiras. As respostas para a decodificação das mensagens simbólicas estão escondidas em nossa capacidade de viver o paradoxo e a dúvida que elas trazem, em permitir que elas nos invadam quando for necessário e, através desse contato com as imagens, sejam elas oníricas ou de outra ordem, viver as metáforas que elas propõem e tomar decisões egóicas que levem à realização da totalidade da psique: a consciência e o inconsciente.

Nota: A cliente permitiu que o sonho e os detalhes aqui apresentados fossem utilizados para a divulgação teórica, científica e pedagógica proposta.

José Balestrini – Membro Analista do IJEP; Analista Didata em Formação do IJEP

Analista Didata Responsável – Waldemar Magaldi

Imagem: Francisco de Borja conduz um exorcismo; autor: Fracisco de Goya. Por volta de 1788. Domínio Público.

Referências

JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. 10ª Ed. Petrópolis: Vozes, OC 8/2.

VON FRANZ, Marie-Louise. O caminho dos sonhos. São Paulo: Cultrix, 1996 

José Belestrini – 30/11/2021

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