Este foi o título de um artigo publicado no Jüdische Rundschau, um jornal sionista, na edição de número 62, em 15 de agosto de 1934, de autoria de Gerhard Adler. Pergunta esta que não esteve em voga apenas nos anos 1930, como também em muitas publicações desde então, não sendo diferente nos dias de hoje. O que se pode observar é que a maioria das informações veiculadas tem sido retirada do contexto ou deturpada de acordo com a perspectiva de quem escreve, além do desconhecimento dos conceitos propostos por Jung. Neste sentido, gostaria de completar essas informações utilizando registros oficiais, como o prefácio de Jung do Zentralblatt de dezembro de 1933, cartas e textos de Jung, entre outros. Acredito que uma apresentação dos registros originais poderá, talvez, minimizar o viés da interpretação.
A polêmica com relação ao suposto antissemitismo e simpatia de Jung ao nazismo tem início com uma carta do psiquiatra suíço Gustav Bally ao Neue Zürcher Zeitung, publicada em 27 de fevereiro de 1934, que parece ser a única fonte de todas as publicações posteriores. Disse ele:
De qualquer maneira, como ele [Jung] quer saber a diferença entre a psicologia germânica e a judaica? […] Jung não nos revela por qual método devemos realizar essa distinção, nem que valor específico podemos esperar da consideração da raça em psicologia. […] Quem introduz a questão racial na qualidade de editor de um jornal gleichgeschaltet deve saber que suas palavras se erguem contra o pano de fundo de paixões organizadas que já fornecem o significado contido implicitamente em suas palavras. (apud SHERRY, 2010, p. 118)
Bally está se referindo aqui ao editorial do último número do Zentralblatt, de dezembro de 1933, escrito por Jung que havia assumido a Presidência da Sociedade Médica Geral para Psicoterapia e, portanto, automaticamente se tornado editor chefe do seu jornal. Como isso aconteceu?
Diante do processo de Gleichschaltung, a unificação, a conformação das instituições sociais e culturais aos ditames da política nazista, Ernest Kretschmer renunciou à presidência da Sociedade, em 06 de abril de 1933, que passou para Jung, seu vice-presidente honorário desde 1930, que aceitou a cadeira por insistência de um grupo alemão porque seria um estrangeiro na presidência da organização supra-estatal. Porém, imediatamente após a posse, em junho de 1933, Jung se entregou à redação do estatuto da nova estrutura da Sociedade, que se tornaria Internacional, composta de grupos nacionais da Suécia, Dinamarca, Holanda, Suíça e, logo depois, do Reino Unido, com o objetivo de libertar a Sociedade do domínio alemão e, assim, permitir que seus colegas médicos judeus-alemães pudessem pertencer à Sociedade, seja formando grupos, seja individualmente. Isto porque muitos intelectuais judeus tinham sido eliminados de suas funções, como, por exemplo, Bernard Aschner, exilado em Nova Iorque em 1938 (cf. JUNG, 2002, p. 190), ou Theodore Lessing, assassinado pelos nazistas em 1933 (apud SHERRY, 2010, p. 116). Como Jung mesmo disse em carta de 22 de janeiro de 1934:
Se conseguirmos organizar alguns grupos nacionais em países neutros, isso será um contrapeso para dar ao grupo alemão uma oportunidade ímpar de manter contato com o mundo exterior neste isolamento intelectual que o oprime atualmente. Este contato é imprescindível para o progresso da psicoterapia na Alemanha, pois a Alemanha está agora mais isolada do que esteve durante a guerra mundial. (JUNG, 2001, p. 151)
O estatuto foi aprovado no Sétimo Congresso de Psicoterapia em Bad Nauheim, ocorrido entre 10 e 13 de maio de 1934, e Jung ratificado como o presidente da agora Sociedade Internacional Médica Geral para Psicoterapia (Internationale Allgemeine Árztliche Gesellschaft für Psychoterapie), com sede na Suíça. Não confundir, portanto, com a Sociedade Alemã que foi fundada em Berlim, em 15 de setembro de 1933, pelo prof. Matthias Heinrich Göring, médico psiquiatra, primo de Hermann Wilhelm Göring, que seria a seção alemã da Sociedade Internacional. Como na época o líder da Sociedade seria também o editor chefe de sua publicação oficial, está claro que Jung, como presidente da Sociedade Internacional, seria o editor do Zentralblatt, enquanto M.H. Göring seria responsável pela seção alemã. Aconteceu que no último número de 1933, acima citado, logo após o prefácio de Jung, o editor executivo, Dr. Walter Cimbal, desobedecendo às ordens expressas de Jung, imprimiu na sequência o manifesto político do prof. Göring, que deveria ter saído no suplemento especial que circularia apenas na Alemanha. Göring se referia claramente à Sociedade Alemã, não à Sociedade Internacional:
Ela está particularmente preocupada com aqueles médicos que estão dispostos a promover e praticar uma terapêutica psicomédica em termos da visão de mundo Nacional-Socialista [e que] seus membros que estão engajados como escritores ou palestrantes leram de forma consciente e completa o livro básico de Adolf Hitler, Mein Kampf, e que o aceitem como fundamental. Eles desejam participar do trabalho do chanceler do povo, a fim de educar o povo alemão para seu papel heróico e abnegado. (apud SHERRY, 2010, p. 119)
Este incidente acabou vinculando o nome de Jung ao nacional-socialismo, além de uma passagem do prefácio, que foi destacada de seu contexto, e tem sido amplamente citada como sendo a prova do antissemitismo de Jung: “as diferenças que realmente existem entre a psicologia germânica e judaica, e que há muito são conhecidas por todas as pessoas inteligentes, não devem mais ser encobertas …” Foi baseado neste trecho que o Dr. Bally iniciou a polêmica. Vejamos, então, o que disse Jung no prefácio:
A primeira tarefa do Zentralblatt é oferecer uma apreciação imparcial a todas as contribuições objetivas e promover uma visão global que fará maior justiça aos fatos básicos da psique humana do que tem sido até agora. As diferenças que realmente existem entre a psicologia germânica e a judaica, e que há muito são conhecidas por todas as pessoas inteligentes, não devem mais ser encobertas, e isto pode apenas ser benéfico para a ciência. Em psicologia, mais que em qualquer outra ciência, há uma ‘equação pessoal’, que ignorada falsifica os achados teóricos e práticos. Ao mesmo tempo, gostaria de expressamente declarar que isto não implica depreciação da psicologia semítica, assim como não é demérito nenhum para um chinês que se fale da psicologia do homem oriental. […] Psicoterapia, portanto, será obrigada a tomar a totalidade da psique quando construir suas teorias e ampliar sua visão além do meramente patológico e pessoal. (OC 10, § 1014)
Ainda que a ciência da psicoterapia nada tivesse a ver com a política, como disse Jung, o momento em que ele passa a editor do Zentralblatt, coincidentemente, “é marcado por uma confusão de doutrinas e visões” na psicoterapia não diferente do estado da política. Lembremos que nos anos 1920 e 1930 havia muita discussão e diversidade de posições com respeito à psicologia e à psicoterapia.
A resposta de Jung (OC 10, § 1016-1034) ao Dr. Bally foi publicada no mesmo periódico, Neue Zürcher Zeitung, em 13 e 14 de março. Ele inicia dizendo que não iria “discutir suposições com o Dr. Bally, prefiro narrar os fatos”. E segue relatando como chegou à presidência da Sociedade Internacional, e não da Sociedade Alemã, e, portanto, como assumiu a redação do Zentralblatt; e apresenta os motivos que o levaram a fazê-lo:
Deveria eu, com prudente neutralidade, recolher-me à segurança do lado de cá da fronteira e lavar as mãos em inocência, ou deveria eu – como estava bem consciente – arriscar minha pele e me expor aos inevitáveis mal-entendidos aos quais ninguém escapa, quando, movido pela mais alta necessidade, tem que fazer um pacto com os poderes políticos existentes na Alemanha? Deveria eu sacrificar os interesses da ciência, a lealdade aos colegas, a amizade que me prende a alguns médicos alemães e o vínculo vivo com as ciências humanas constituído pela língua comum – sacrificar tudo isto em benefício do conforto egoísta e de minhas opiniões políticas divergentes?
Continua comentando a situação das instituições e jornais na Alemanha daquele período, de como tudo pode mudar rapidamente de acordo com a cena política; mostra como a outrora “unificação” da Igreja foi substituída pela do Estado laico, ilustrando com o exemplo de Galileu, e que “protestar é ridículo – como protestar contra uma avalanche? É melhor tomar cuidado.” Ou seja, diante de uma força natural o melhor a fazer é se proteger. O importante, afirma Jung, é que a medicina possa viver, seja ela “alemã” ou “francesa”, pois ela nada tem a ver com política e “pode e deveria ser praticada para o bem da humanidade sofredora sob todos os governos” e que seu objetivo era “colocar uma ciência jovem e insegura em um lugar seguro durante um terremoto […] ao ajudar a reorganizar o movimento psicoterapêutico na Alemanha”. Admite que foi “incauto” ao falar de algo tão sensível naquele momento como a questão judaica e diz:
Quanto à diferença entre a psicologia judaica e “ariana-germânica-cristã-europeia”, é claro que dificilmente pode ser vista nos produtos individuais da ciência como um todo. Mas não estamos tão preocupados com eles como com o fato fundamental de que, em psicologia, o objeto do conhecimento é ao mesmo tempo o órgão do conhecimento, o que não é verdade para nenhuma outra ciência. Portanto, tem-se duvidado com toda a sinceridade se a psicologia é possível como uma ciência. Mantendo essa dúvida, sugeri, anos atrás, que toda teoria psicológica deveria ser criticada em primeiro lugar como uma confissão subjetiva. Pois, se o órgão do conhecimento é seu próprio objeto, temos todas as razões para examinar a natureza desse órgão muito de perto, uma vez que a premissa subjetiva é ao mesmo tempo o objeto de conhecimento que é, portanto, limitado desde o início. Esta premissa subjetiva é idêntica a nossas idiossincrasias psíquicas. A idiossincrasia é condicionada (1) pelo indivíduo, (2) pela família, (3) pela nação, raça, clima, localidade e história.
Isto pode ser mais bem visto num diagrama apresentado por Jung no Seminário sobre Psicologia Analítica de 1925, que seria uma espécie de “geologia” da personalidade:
Jung finaliza sua resposta apontando que “diferenças psicológicas prevalecem entre todas as nações e raças e mesmo entre os habitantes de Zurique, Basileia e Berna”. E que é por isso que ele critica “todo nivelamento psicológico quando reivindica uma validade universal, como por exemplo a psicologia de Freud e Adler. Todo nivelamento produz ódio e rancor nos suprimidos e equivocadamente julgados, ele impede qualquer compreensão humana mais ampla.” E lembra que há muitos anos vem se ocupando com “o problema das diferenças imponderáveis” que, para ele, estão “entre os problemas mais difíceis da psicologia”. Encerra dizendo que quem conhece sua obra deveria saber que há muito tempo ele fala da questão judaica, não agora na “revolução”, pois faz “campanha pela crítica das premissas psicológicas subjetivas desde 1913.” De fato, em uma das nove conferências que Jung apresentou em 1912 na Fordham University (publicadas em 1913), ele enfatiza a necessidade da análise do próprio analista (cf. OC 4, § 447) bem como na conferência apresentada em setembro de 1913, no Congresso de Munique, sobre os tipos psicológicos (cf. OC 6).
Sobre a questão judaica, já em 1918, em “Sobre o inconsciente” (OC 10, § 1-48), apresentando o conceito de inconsciente coletivo, Jung diz que o barbarismo germânico foi dividido pelo cristianismo: a parte mais clara tornou-se apropriada para a cultura e sua porção mais escura foi para as profundezas do inconsciente, onde se juntou aos vestígios da pré-história. E mais adiante alerta: “nós germanos ainda temos dentro de nós um autêntico bárbaro que não está para brincadeiras e cuja manifestação não significa para nós qualquer alívio ou passatempo agradável. Temos que aprender alguma coisa com esta guerra!”. E complementa:
Ao meu ver, este problema não existe para o judeu. Ele já era detentor da cultura antiga e além disso adquiriu a cultura dos povos com os quais conviveu. Por paradoxal que possa soar, ele possui duas culturas. É altamente domesticado, mas prescinde daquela qualidade do ser humano capaz de enraizá-lo na terra, de receber novas forças de baixo, daquela dimensão terrena que os povos germânicos detêm de forma tão radical que chega a ser perigosa. É natural que o europeu ariano não se desse conta disso durante longo tempo, mas talvez comece a percebê-lo agora, durante esta guerra; ou talvez não. O judeu, porém, tem muito pouco disso. Onde será que ele toca a sua terra, deita raízes no seu chão? O mistério da terra não é brincadeira nem paradoxo.
Em 1927, em seu texto sobre os “Efeitos do inconsciente sobre a consciência” (OC 7, § 202-265), Jung chama a atenção para “o perigo de que na análise do inconsciente a psique coletiva e a pessoal se confundam, o que acarretaria consequências desagradáveis”, pois quando ocorre uma identificação com a psique coletiva, o indivíduo “tentará impor aos outros as exigências do seu inconsciente, uma vez que esse tipo de identificação acarreta um sentimento de validez geral (‘semelhança a Deus’)”. Mas isso significa não considerar as diferenças individuais, “sem falar nas de caráter mais geral: as diferenças de raça”. E aqui, Jung acrescenta em nota de rodapé:
É um erro imperdoável considerar válidos para todos os resultados de uma psicologia judia. Ninguém consideraria como obrigatoriamente válida para nós a psicologia chinesa ou hindu. A acusação de antissemitismo que tal crítica acarretou-me é tão descabida como se me tivessem acusado de um preconceito antichinês. Certamente, num estágio anterior e inferior do desenvolvimento psíquico, antes de diferenciar-se as mentalidades ariana, semítica, hamítica e mongólica, todas as raças humanas têm uma psique coletiva comum; porém, ao iniciar-se uma diferenciação racial, aparecem diferenças essenciais na psique coletiva. Por isso é-nos impossível traduzir globalmente o espírito de outras raças para a nossa mentalidade, sem prejudicá-lo de modo evidente; isto, entretanto, não impede que tantos tipos humanos de instintos débeis afetem, por exemplo, a filosofia hindu ou quaisquer outras.
Para aqueles que buscavam provas do antissemitismo de Jung, o artigo do primeiro número do Zentralblatt de 1934 intitulado “A situação atual da psicoterapia” (OC 10, § 333-370) caiu como uma luva, principalmente quando se toma apenas dois parágrafos (353-354), o que foi feito por muitos, ignorando o restante da argumentação e o contexto no qual foi produzido. Vejamos, pois, o que Jung disse efetivamente neste artigo.
Diante da difícil situação em que se encontrava o exercício profissional da psicoterapia, correndo o risco de ser reprimida pelo governo e subordinada à psiquiatria, o objetivo de Jung ao assumir a presidência da Sociedade Internacional foi assegurar a autonomia da “ainda jovem psicoterapia”. Assim, esse artigo se configura como um convite à discussão diante das “complexidades e perplexidades” com as quais a psicoterapia se defronta e o quanto ela ainda tem que aprender sobre a “psique humana e toda a sua abrangência”. Inicia, então, abordando o fato de que a psicoterapia tinha sido considerada apenas uma técnica e que se assim fosse como se poderia explicar a “multiplicidade de técnicas, de opiniões, de ‘psicologias’ e de premissas filosóficas?” Na psicoterapia não é possível seguir um método, poderíamos dizer “passos”, pois o objeto do método não é um “preparado anatomicamente morto, nem um abscesso ou uma substância química, mas a totalidade de uma pessoa sofredora. O objeto da terapia não é a neurose, mas a pessoa que tem neurose.” Esta pessoa exige, portanto, a “personalidade do médico e não artifícios técnicos”. Por isso a necessidade do autoconhecimento do psicoterapeuta, tanto enfatizado aqui como em outras passagens de sua extensa obra, “uma crítica de suas convicções pessoais, filosóficas e religiosas, tanto quanto um cirurgião está obrigado a uma perfeita assepsia.”
Na sequência, Jung aponta a unilateralidade das teorias de Freud, que se baseia no “princípio do prazer”, e a de Adler, no “princípio da autoafirmação”, classificando-as como “teoria do infantilismo”, pois “explicam a neurose só a partir do ângulo infantil”. Entretanto, segundo Jung, não se pode deixar de considerar também a vontade de adaptação. De qualquer forma, a teoria do infantilismo proporciona tanto ao psicoterapeuta quanto ao analisando uma posição confortável: ao primeiro, garante uma certa “superioridade”, pois “isso é nada mais do que”, e ao segundo, a culpa do que acontece no presente é dos pais e da sua educação.
Ainda que critique a psicanálise, Jung reconhece o valor tanto de Freud quanto de Adler: eles “viram claramente a sombra que acompanha a todos”. Isto se deve, de acordo com Jung, à sua origem judaica. “Por causa de sua cultura que é ao menos duas vezes mais antiga do que a nossa, têm maior consciência das fraquezas humanas e de seus lados sombrios do que nós e, por isso, são bem menos vulneráveis neste sentido.” Jung repete seu argumento de 1918 afirmando que como “membro de uma raça com cultura de aproximadamente três mil anos”, o judeu tem uma consciência mais ampla do que os arianos. Estes, mais jovens, têm em seu inconsciente “forças de expansão e germes criativos de um futuro”, por isso com “maior potencial do que o judaico”. Mas isso é uma vantagem e uma desvantagem, pois os germânicos ainda terão que se confrontar com seu “barbarismo”. É neste sentido que Jung considera um erro da psicoterapia aplicar “indiscriminadamente a cristãos germânicos e eslavos categorias judaicas que nem se aplicam a todos os judeus” e lamenta que seus “alertas tiveram a suspeição, durante décadas, de antissemitismo. Esta suspeita partiu de Freud”. Jung estava preocupado com a emergência de conteúdos inconscientes que já se agitavam naquele momento:
Onde estavam a tensão e o ímpeto inauditos quando ainda não existia o nacional-socialismo? Jaziam escondidos na psique germânica, naquele solo profundo que é bem outra coisa do que o monturo de dejetos infantis não realizáveis e de ressentimentos familiares não resolvidos.
Como já havia dito em 1916: “a psicologia do indivíduo corresponde à psicologia das nações”. E aqui ele volta a afirmar que “um movimento que afeta um povo inteiro também amadureceu em cada indivíduo”. É por isso que ele chama a atenção, neste artigo, para a necessidade da psicoterapia em avaliar o inconsciente, não só o pessoal, mas principalmente o coletivo. Argumento que usará em seu “Wotan” de 1936, no qual discute o quanto este deus, que caracteriza a alma alemã, o povo ariano, ficou em repouso durante algum tempo, ressurgindo das profundezas inconscientes, “inquieto, violento e tempestuoso”, atacando o cristianismo “em todas as frentes”, e que, provavelmente, “o nacional-socialismo não constituirá sua última expressão e poderemos aguardar coisas insuspeitáveis nos próximos anos ou décadas” (OC 10, § 399).
Várias foram as reações ao texto de Jung, inclusive de judeus, entre eles Erich Neumann e Gerhard Adler que enviaram cartas ao Jüdische Rundschau. Neumann disse:
Jung não nega que os judeus da Bíblia contemplaram e viveram o “aspecto mais amplo da alma humana”, mas seu trabalho com o povo judeu contemporâneo o levou a ver a tendência clara e fatal de reprimir esse aspecto mais amplo. Isso é o que importa hoje. Acreditamos que a psicologia junguiana se tornará decisiva para a tentativa dos judeus de chegarem aos seus fundamentos: especialmente o caráter, por assim dizer, “sionista” de suas descobertas será inovador. Isso é semelhante ao modo como o sionismo inclui o irracional das profundezas primitivas humanas criativas. (apud SHERRY, 2010, p. 127)
E Adler, no artigo com o qual iniciamos, não só enfatiza o sucesso do processo psicoterapêutico que muitos pacientes judeus obtiveram com Jung, como também a importância da psicologia junguiana para a integração dos judeus com sua cultura e seu solo:
Admito que a formulação de Jung aqui é muito concisa e condensada, mas tudo depende do contexto. Mas, além disso, o ônus da prova recai sobre nós para provar o contrário! Onde ele [Jung] ataca os judeus, ele o faz na medida em que são negativos e desenraizados. Ele é antissemita por esse motivo? E esse é o motivo. Especialmente hoje, Jung não permanece em silêncio sobre a questão judaica. Uma pessoa da importância de Jung não se preocupa apenas com a situação neurótica de um único povo, mas com essas pessoas como expoentes de seu tempo que procuram em todos os lugares seus fundamentos e raízes. (ibid)
Importante ressaltar, também, que foi Adler que disse a Jung que “quando um judeu esquece suas raízes, então ele sucumbe duas ou três vezes ao perigo da mecanização e intelectualização” (JUNG, 2001, p. 177). Isso foi lembrado por Jung na carta de junho de 1934, logo após a publicação do seu artigo, na qual ele esclarece a Adler a crítica que faz a Freud:
É pois tipicamente judeu que Freud possa esquecer suas raízes a tal ponto; e tipicamente judeu que os judeus possam esquecer totalmente que são judeus, mesmo sabendo que o são. É isto que preocupa na atitude de Freud, e não só sua cosmovisão materialista e racionalista. […] Quando critico em Freud o aspecto judeu, não critico o judeu, mas a possibilidade condenável do judeu – que aparece também em Freud – de poder negar a sua própria natureza. […] falo no interesse de todos os judeus que gostariam de encontrar o verdadeiro retorno à sua própria natureza.
Quando disse em seu artigo que a suspeita de antissemitismo partiu de Freud, Jung se referia à sua acusação depois da publicação de Metamorfose e símbolos da libido, quando Jung divergiu da psicanálise, apresentando sua própria posição em relação ao conceito de libido e do incesto, o que levou ao rompimento entre os dois. Em 1914, Freud publicou “A história do movimento psicanalítico”, em que escreve que Jung tinha a seu favor dotes excepcionais, as contribuições que já prestara à psicanálise, sua posição independente e a impressão de firme energia que sua personalidade transmitia. Além disso, parecia estar disposto a entrar num bom relacionamento pessoal comigo e, em consideração a mim, a abrir mão de certos preconceitos raciais que alimentara anteriormente. (FREUD, 2006, p. 26)
Essa preocupação com a questão racial, Freud já manifestara em uma carta a Abraham, em maio de 1908, solicitando que ele fosse:
tolerante e não se esqueça de que para você é mais fácil seguir os meus pensamentos do que para Jung, uma vez que, para começar, você é uma pessoa completamente independente, e assim as relações raciais tranzem-no para mais perto da minha constituição intelectual, enquanto ele, pelo fato de ser cristão e filho de um pastor protestante, pode encontrar o seu caminho até mim somente após vencer grandes resistências internas. Eu estava a ponto de dizer que foi somente a aparição dele em cena que removeu da Psicanálise o perigo de tornar-se um fenômeno nacional judaico. (apud JONES, 1975, p. 401)
Para finalizar, gostaria ainda de lembrar dois aspectos importantes. O primeiro é que Jung, mesmo divergindo de muitos pontos da teoria psicanalítica, sempre reconheceu o valor de Freud. Como disse em seu “Seminário sobre Psicologia Analítica”, em 1925: “eu o considero uma figura trágica, porque ele é um grande homem; mas é um fato que ele foge de si mesmo. […] Na verdade, as pessoas criativas geralmente são assim.” (JUNG, 2014, p. 61). E, bem mais tarde, em seu Memórias, Sonhos, Reflexões: “olhando para trás, posso dizer que sou o único que prosseguiu o estudo dos dois problemas que mais interessaram a Freud: o dos ‘resíduos arcaicos’ e o da sexualidade” (JUNG, 1989, p. 150).
O segundo aspecto se refere à opinião amplamente difundida de que Jung é discípulo de Freud. Quando os dois se encontraram, em 1907, Jung já tinha alguns conhecimentos bem fundamentados em relação à psique humana. Em suas Conferências no Clube Zofíngia (1896-1898), quando ainda era um estudante de medicina, podemos verificar a consistência de suas primeiras ideias sobre a alma humana e seu pensamento posterior, ideias apenas esboçadas, mas que fundamentaram seu ulterior modelo de estrutura e dinâmica psíquicas. Seus estudos sobre a aplicação do teste de associação de palavras e a teoria dos complexos, no início de sua carreira, foram considerados pelo consagrado psiquiatra Adolf Meyer como “a melhor contribuição feita à psicopatologia no último ano [1905]”. E foi exatamente o fato de que na teoria psicanalítica havia uma “evidência de repressões que eu podia encontrar em meus experimentos de associações” (JUNG, 2014, p. 54) que os aproximou. Contudo, sua atitude científica, de um pensador, de um crítico, que busca a compreensão do mundo de seu tempo e, portanto, do homem que nele habita, não permitiu que Jung se satisfizesse com uma psicologia personalista, um referencial bio-causal como única alternativa para se entender as vicissitudes da condição humana. Publicou seu Metamorfose e Símbolos da Libido, em 1912, que marcou o fim da amizade entre eles. Contudo, acredito, Jung foi fiel a si mesmo, concretizou o que havia antecipado em 1898, na sua quarta conferência em Zofíngia:
Um homem pode sobreviver a todos os seus amigos e parentes, enterrar aqueles que ele mais ama levar uma existência solitária como um estrangeiro numa época estranha; mas não pode sobreviver a si mesmo e aos fatores internos de sua vida, e não pode enterrá-los, pois eles são seu verdadeiro eu e, assim, são inalienáveis.
Se essas brevíssimas considerações sobre esse tema tão amplo, que perpassa a história da psicologia profunda, despertaram em você, leitor, uma vontade de pesquisar e ler mais sobre o tema, atingi meu objetivo.
Lilian Wurzba – Analista Didata do IJEP
Lilian Wurzba – 17/04/2022
REFERÊNCIAS:
FREUD, Sigmund. “A história do movimento psicanalítico”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006, v. XIV.
JONES, Ernest. Vida e obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
JUNG, Carl Gustav. Civilization in transition. 2.ed. London; New York: Routledge, 1970. [citado como OC 10]
______ The Zofingia Lectures. Princeton: Princeton University Press, 1983.
_____ Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
______Freud e a Psicanálise. Petrópolis: Vozes, 1990. [citado como OC 4]
______Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991. [citado como OC 6]
______O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1994. [citado como OC 7]
______ Cartas 1906-1945. Petrópolis: Vozes, 2001.
______ Cartas 1946-1955. Petrópolis: Vozes, 2002.
______ Seminário sobre Psicologia Analítica. Petropólis: Vozes, 2014.