Os contos de fadas são assim.
Uma manhã, a gente acorda
E diz: “era só um conto de fadas…”
E a gente sorri de si mesma.
Mas, no fundo, não estamos sorrindo.
Sabemos muito bem que os contos de fadas
São a única verdade da vida.
Resumo: Este ensaio visa formular ideias e experiências a partir dos contos de fadas que surgem no processo terapêutico, além de aspirar impulsionar terapeutas, analistas e arteterapeutas a ampliar os contos, histórias ou “vestígios” mitológicos dos clientes trazidos a clínica. A busca pelos conteúdos sombrios que emergem a partir da associação com histórias e ‘estórias’ podem nos auxiliar como condutor simbólico para revelar ao cliente mais de si mesmo.
Era uma vez… Era uma vez não respeita Chronos, o grande senhor do tempo cronológico – pelo menos assim me parece.
Os contos trazem o tempo do não tempo, eles trazem o efeito do agora e mesmo que a história tenha sido escutada, ouvida, assistida e elaborada uma vida inteira quando acessamos esse espaço do que uma vez foi, posso assegurar com alguma confiança de o tempo é agora.
Uma vez que, na prática, existem fenômenos da consciência e do inconsciente, o si mesmo como totalidade psíquica tem aspecto consciente e inconsciente. O si mesmo aparece empiricamente em sonhos, mitos e contos de fadas, na figura de “personalidades superiores” como reis, heróis, profetas, salvadores etc., ou na figura de símbolos de totalidade como o círculo, o quadrilátero, a quadratura circuli (quadratura do círculo), a cruz etc. Enquanto representa uma complexio oppositorum, uma união dos opostos, também pode manifestar-se como dualidade unificada, como, por exemplo, no tao, onde concorrem o yang e o yin, como irmãos em litígio, ou como o herói e seu rival (dragão, irmão inimigo, arqui-inimigo, Fausto e Mefisto etc.). Empiricamente, pois, o si mesmo aparece como um jogo de luz e sombra, ainda que seja entendido como totalidade e, por isso, como unidade em que se unem os opostos.
JUNG, 2012. vol.6 §902
Os contos de fadas, estão presentes em diversas culturas ao redor do mundo e em cada lugar ele se adapta para responder e reescrever as necessidades de coletivos e indivíduos, e fazem isso pois carregam uma riqueza simbólica que transcende fronteiras e épocas.
Para Jung, esses contos representam manifestações do inconsciente coletivo, uma camada da psique compartilhada por toda a humanidade e composta por arquétipos que nos afetam de forma laboriosa, é inevitável o afeto, assim como é inevitável para de respirar para se viver. Esses contos, mitos e histórias reveladas de forma ancestral nos apresentam símbolos e contextos que aparecem de forma simbólica nas narrativas, oferecendo um espelho das experiências humanas mais profundas.
Do mesmo modo como as constelações foram projetadas no céu, assim também outras figuras semelhantes foram projetadas nas lendas e nos contos de fadas ou em personagens históricas. Por isso, podemos estudar o inconsciente coletivo de duas maneiras: na mitologia ou na análise do indivíduo. Como não posso colocar este último material ao alcance dos leitores, devo limitar-me à mitologia.
JUNG, 2012. vol.6 §325
C. G. Jung tenta trazer na sua obra a importância do trabalho terapêutico feito a partir de elaborações e ampliações na clínica em cima de determinados temas trazidos pelos clientes pelo método de contação de estórias ou ampliação simbólica de mitos e contos de fadas. Essa condução atinge camadas da psique que não conseguimos acessar de forma livre ou espontânea, mas permite ao indivíduo elaborar questões de valor pessoal que muitas vezes não são perceptíveis pela consciência. Afinal, “todos os contos de fadas tentam descrever apenas um fato psíquico” (Von Franz, p.10) e muitas vezes nos negamos a conscientizar que nos apoiamos em fatores externos para não darmos conta desses fatos internamente.
Maria Louise Von Franz, aprofundou essa compreensão ao analisar os contos de fadas como expressões simbólicas do processo de individuação – o caminho de integração do self.
Segundo ela, esses contos não são apenas histórias infantis, mas mapas simbólicos que orientam o indivíduo na jornada de autoconhecimento, confrontando aspectos internos como medos, desejos e potencialidades; e mais que isso a analista abre seu livro A interpretação dos contos de fada afirmando de forma objetiva que os contos de fada são “a expressão mais pura e mais simples dos processos psíquicos do inconsciente coletivo” (Von Franz, p.9) e completa que o valor deles dentro de um processo analítico de investigação do inconsciente é tão importante, que ela considera o mais importante.
Nos mitos, lendas ou qualquer outro material mitológico mais elaborado, atingimos as estruturas básicas da psique humana através de uma exposição do material cultural. Mas nos contos de fada existe um material cultural consciente muito menos específico e, subsequentemente, eles espelham mais claramente as estruturas básicas da psique.
VON FRANZ, PÁG.09
Na prática terapêutica, tanto Jung quanto Von Franz utilizavam os contos de fadas como ferramentas de ampliação para a elaboração dos processos individuais dos clientes em seus respectivos processos. Através da análise dos símbolos presentes nas histórias, o cliente pode reconhecer padrões internos, conflitos e potencialidades. Essa abordagem arteterapêutica nos ajuda a acessar uma compreensão mais profunda do inconsciente, promovendo a integração de aspectos reprimidos ou desconhecidos.
“Nos mitos e contos de fada, como no sonho, a alma fala de si mesma e os arquétipos se revelam em sua combinação natural, como “formação, transformação, eterna recriação do sentido eterno””.
(Jung, 2012. vol.9/1 §400)
Na arteterapia, os contos de fadas servem como fonte de inspiração para a criação de imagens que representam os processos internos do indivíduo, e quando falamos imagens, podemos ficar apenas na elaboração verbal, no caso. Imagens dentro do processo arteterapêutico junguiano fala de todo e qualquer aspecto que traga conteúdo para elaboração simbólica na clínica. Mas os contos de fada podem promover mais, pois ao ilustrar ou dramatizar esses contos, o paciente acessa emoções e símbolos que muitas vezes estão além da fala, facilitando a expressão de conteúdos inconscientes e promovendo algumas integrações e percepções que dirigidas pelos afetos das práticas e dos materiais rompem um padrão de controle, ao qual todos somos submetidos, quando nosso complexo do Ego tem a permissão para elaborar.
A arteterapia nos possibilita usar todas as funções e olhar o objeto como um terceiro elemento promovendo uma percepção única e apurada dos elementos trazidos a consciência pelo Self. “Quanto mais diferenciadas e desenvolvidas são as funções do consciente, melhor e mais rica será a interpretação feita, pois, a história será circundada, tanto possível, pelas quatro funções“. (Von Franz, pág.24)
Do mesmo modo como as constelações foram projetadas no céu, assim também outras figuras semelhantes foram projetadas nas lendas e nos contos de fadas ou em personagens históricas. Por isso, podemos estudar o inconsciente coletivo de duas maneiras: na mitologia ou na análise do indivíduo. Como não posso colocar este último material ao alcance dos leitores, devo limitar-me à mitologia.
JUNG, 2012. vol.6 §325
Assim sendo, podemos “contar” com os contos de fadas, sob a perspectiva da psicologia analítica como um recurso extremamente importante e funcional pois são instrumentos poderosos de conexão com o inconsciente coletivo, facilitando o processo de reconhecimento de conteúdos muitas vezes desconhecidos por nós mesmos. Sua virtude está nos acessos simbólico e universal os torna recurso valiosos tanto na prática clínica junguiana quanto na arteterapia com elaboração e aprofundamento da psicologia analítica sobre os conteúdos oriundos das práticas. Com isso, contribuímos para uma compreensão mais profunda de si mesmo e do mundo interior dos nossos clientes/criantes/analisandos.
Não vemos as coisas como são, vemos as coisas como somos.
Anais Nin
Bárbara Pessanha – Membro Analista Didata em formação IJEP
E. Simone Magaldi – Membro Analista Didata IJEP
Referências:
JUNG, Carl Gustav. Tipos Psicológicos. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 6)
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 9/1)
JUNG, Carl Gustav. Aion – Estudo sobre o simbolismo do si mesmo. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 9/2)
VON FRANZ, Marie Louise. A Interpretação dos Contos de Fada. São Paulo. Paulus, 7ª edição, 2008.