Na primeira parte desta série de artigos discutimos a dúvida como elemento que deveria pertencer comumente à ciência e à religião. Mostramos que ela é fundamental para a nossa aproximação da vida simbólica enquanto a certeza nos leva para a dimensão diabólica. No segundo texto falamos sobre como a confusão entre patriotismo e religião pode levar à massificação e consequentemente ao surgimento de movimentos extremistas liderados por pessoas que acreditam serem enviados de Deus (os links para os dois artigos estão listados no final do presente texto). Nesta terceira parte iremos explorar como os sentimentos de medo, ódio e culpa são vividos pelos indivíduos isoladamente e coletivamente quando se tornam parte de um movimento de massa. Falaremos também da importância de darmos atenção a essas emoções mesmo quando não somos integrantes desses movimentos. Como disse muitas vezes Jung, o mal existe na humanidade e somente porque ele também faz parte de cada um de nós é possível identificá-lo e reconhecê-lo.
Como fizemos nos dois artigos anteriores para aprofundar nosso conhecimento acerca da maneira de pensar dos demônios, continuarei explorando as dicas enviadas por um diabo a seu discípulo com o intuito de ajudá-lo a desvirtuar seu paciente, um ser humano comum, do caminho do encontro com Deus. Essas orientações estão reveladas no livro de C.S. Lewis “Cartas de um diabo a seu aprendiz” publicado no ano de 1942.
Fugindo do encontro com a própria sombra, o homem que não mergulha para o conhecimento de si mesmo vive atormentado pelo medo de descobrir em sua constituição profunda tudo aquilo que mais abomina no outro. Isso não passa de um mecanismo de projeção que permite que ele se afaste cada vez mais dos próprios conteúdos inconscientes. Nessa situação e imaginando-se absoluto, o ego cria fantasias de poder cada vez maiores e se eleva à condição de senhor que, em seu mundo hipoteticamente perfeito, teria que responder somente a si mesmo. Esquece que não é divino e que terá que prestar contas para forças arquetípicas muito maiores do que ele. Acreditando ser detentor da verdade e bondade absoluta, a pessoa humana acaba sendo tomada pelo mal que arbitrariamente atribui ao outro. Jung, fazendo uma análise detalhada do movimento nazista e do comportamento de seu líder Adolf Hitler, diz:
“A “semelhança com Deus” não eleva o homem até o divino. Ao contrário, apenas o lança na arrogância e na maldade, produzindo uma máscara humana infernal, insuportável a todo ser humano. O homem se sente atormentado por essa máscara e por isso atormenta os demais. Ele se vê dividido dentro de si mesmo como uma mistura de contradições inexplicáveis.” (C. G. Jung, OC vol. 10/2, p. 439)
A pessoa cindida não consegue lidar com a incerteza e a paradoxalidade de si mesmo e, acreditando ser a personificação do bem, projeta sua sombra e com ela toda a sua maldade para fora de si. Dessa maneira literaliza em ações concretas tudo aquilo que poderia enfrentar simbolicamente. Vive como se fosse seguro e controlado, quando na verdade toda essa gerência, gestão e domínio exagerados não passam de sintomas de um medo pavoroso do desconhecido e incontrolável fenômeno que é a vida. Esse medo rapidamente pode se transformar em um ódio desmedido pelo outro, que passa a representar tudo aquilo que a pessoa não consegue enxergar em si mesma. É nesse momento que os diabinhos podem se intrometer na vida humana utilizando esse sentimento a seu favor. Maldanado, o diabo sênior e tutor, explica para seu sobrinho e aprendiz a importância de direcionar esse sentimento da maneira correta:
“O ódio é algo que temos como manipular. A tensão dos nervos humanos durante ruídos, perigos e fadiga, torna os homens propensos a qualquer tipo de emoção violenta, sendo somente uma questão de canalizar tal suscetibilidade para os lugares certos.” (C.S. Lewis, Cartas de um diabo a seu aprendiz, Carta XXIX)
Essa projeção dos sentimentos negativos pode ser amplificada enormemente se o grupo contar com um líder que entende o benefício da aplicação desse método. Dizendo em alto e bom som que aquilo que cada indivíduo tenta afastar de si mesmo pertence ao grupo odiado, atrai para seu exército pessoas que sofrem da mesma deficiência de valores. A vergonha e a culpa que cada um poderia sentir desaparecem na moral distorcida da multidão liderada pelo demônio que se veste de Deus. Jung continua em sua análise:
“A magia de Hitler, por exemplo, consistia em dizer oportunamente o que ninguém queria expressar abertamente, porque o considerava de qualidade duvidosa e inferior (o ressentimento contra judeus, por exemplo). O demônio de Hitler estava no fato de que seu método era de uma eficácia medonha e de que ele mesmo se tornou vítima clara do demônio, que tomou posse total dele.” (C. G. Jung, Cartas vol. 2, pág. 257)
Esse movimento torna-se autossuficiente e sustentado pelo grupo. Sem conseguir exercer seu poder de reflexão, o indivíduo fica aprisionado entre o medo que alimenta o ódio e que por sua vez, volta a alimentar o medo. Qualquer tentativa de libertação dessa situação cai na desgraça por conta da vigilância atenta do coletivo. Isso muitas vezes ameaça a integridade mental e física daquele que, mesmo por um momento, ouse levantar a voz da reflexão. Mesmo quando um dos componentes do grupo consegue dizer algo que vá contra as ideias gerais da massa, esse coitado acaba expulso ou eliminado pelos outros, ou inconscientemente rendido aos sentimentos maldosos da comunidade para não ter que lidar com a própria covardia. O medo de manifestar-se se transforma em ódio e o ciclo vicioso do processo garante a sua continuidade. O diabo Maldanado deseja que seu discípulo explore esse ciclo para levar os humanos cada vez mais para o caminho da danação infernal:
“Mas o ódio pode ser mais bem combinado com o medo. A covardia é a única entre todos os vícios que é puro sofrimento – horrível de antecipar, horrível de sentir, horrível de lembrar; já o ódio tem seus prazeres. Por isso é muitas vezes a compensação com a qual um homem amedrontado recompensa a si mesmo pelas misérias produzidas pelo medo. Quanto mais alguém tem medo, mais irá odiar. E o ódio também é uma grande anestesia para a vergonha. Para provocar uma profunda ferida na caridade do seu paciente, você terá primeiro que derrotar a sua coragem.” (C.S. Lewis, Cartas de um diabo a seu aprendiz, Carta XXIX)
Mais uma vez, como em muitas outras cartas, o anjo mau diz claramente que é preciso fazer com que o homem esteja afastado de seu coração: aquele que não tem coragem não está conectado com seu core. Essa palavra, derivada da expressão latina cor, pode ser traduzida como centro, núcleo, a parte mais interna e fundante na constituição de um corpo. Na linguagem junguiana, estamos nos referindo simbolicamente ao Self. O homem afastado de seu centro tem o egoafastado do Self e isso resulta numa vida sem sentido e significado. Sem conseguir enfrentar o vazio existencial que toma conta do seu ser, esse homem busca preencher falsamente esse buraco tornando-se parte de uma massa e projetando o centro que deveria ser encontrado em si mesmo num líder que incorpore a persona de um messias.
É muito claro na obra de Jung que o fortalecimento da consciência individual é a melhor arma contra qualquer tipo de epidemia psíquica. O indivíduo fortalecido não se perde na massa e por isso é necessário trazer a discussão para dentro de nós. É relativamente fácil falar de maneira acusatória do mal que o outro está claramente infringindo, porém é preciso olhar para a nossa própria sombra e é nesse momento que a situação começa a complicar. Aceitar que o mal também existe em nós não é tarefa fácil e depende diretamente de um fortalecimento do ego. Este precisa ser estruturado – e estruturante – o suficiente para compreender que é menor do que a totalidade psíquica, mas que ainda assim tem papel fundamental na integração dos conteúdos do inconsciente com a consciência. Não pode ser frágil demais e nem identificar-se com o Self , o que o faria acreditar ser o próprio Deus.
Uma vez que seja possível perceber que também temos medo e que ele é importante na medida certa, evitamos que ele seja completamente projetado no outro e que se transforme em ódio. Jung entendeu que toda a maldade surgida durante a segunda guerra mundial só poderia ser um potencial humano, afinal os alemães não vieram de outro planeta. Sobre isso ele diz: “Mas devo dizer em favor de Hitler que ele nos abriu os olhos. Ele abriu inclusive os meus um bocado.” (C. G. Jung, Cartas vol. 2, pág. 28). E um pouco mais a frente no mesmo parágrafo ele explica melhor a ideia de que o que surgiu entre os nazistas poderia surgir em cada um de nós:
“Eu realmente nunca havia pensado que o homem pudesse ser tão absolutamente mau. Pensei que pudesse ser mau, tendo o mau ao menos um certo caráter, mas na Alemanha o mau chegou ao extremo da perversão. Foi uma imundice de maldade, inimaginavelmente pior do que a perversidade normal. Mas como a Alemanha não está na Lua, tirei minhas conclusões com referência no restante da humanidade.” (C.G. Jung, Cartas vol. 2, pág. 28)
O pecado existe em cada um de nós e é inevitável. Precisamos aceitar esse fato para que seja possível entender e buscar valores éticos. O problema e o conflito estão na contradição de se viver entre códigos morais terrivelmente distorcidos e a voz interior da ética que tenta nos levar para o caminho do bem. Hoje encontramos com facilidade grupos onde comportamentos como a exploração predatória dos recursos naturais, o consumo desenfreado de coisas desnecessárias, a violência, o racismo e o preconceito são valores adotados e reforçados. Vivemos diariamente o conflito entre aquilo que é aceito e muitas vezes imposto pela sociedade e cultura e os valores divinos e éticos que insistem incansavelmente na bondade e correção dos nossos comportamentos. Jung diz sobre a ética:
“Ética é aquilo que torna impossível ao ser humano praticar intencionalmente o mal e o força – muitas vezes com pouco êxito – a fazer o bem. Isto significa que ele pode fazer o bem e não pode evitar o mal, ainda que sua ética o leve a testar as forças de sua vontade nesse sentido. Na verdade, ele é a vítima dessas forças. Precisa admitir que não consegue evitar de todo o pecado, mas, por outro lado, tem a esperança de poder fazer o bem. Mas como o mal é inevitável, nunca sairemos completamente do pecado, e isto, é um fato que precisa ser reconhecido.” (C.G. Jung, Cartas vol. 3, pág. 83)
Uma vez que está claro que temos em nós a semente do mal, precisamos perceber como ele surge nas nossas pequenas e grandes ações, sejam elas voltadas para o mundo externo ou interno. A partir de então será possível trabalhar na integração desses aspectos sombrios. Dessa constatação surge também a percepção do fato de que a culpa dos movimentos violentos alheios à nossa vontade também nos pertence, em certa medida. A culpa coletiva é um fato, não uma condenação. Junto com o sentimento de medo e ódio que surgem com o comportamento extremo do outro, surge também uma vergonha coletiva. Podemos pensar em exemplos pequenos, como no caso de um de nossos parentes apoiar abertamente um líder fascista e em como isso nos faz sentir envergonhados por suas ações. Quantas vezes ouvimos alguém dizer que sentiu “vergonha alheia”? Na verdade, é preciso traduzir essa expressão e entender que essa vergonha que sentimos não pertence somente ao outro, mas é também nossa. Não podemos sentir algo que já não exista dentro de nós. Podemos ampliar isso para coisas muito maiores, vamos tomar como exemplo o momento que estamos vivendo agora. Muitas vezes nos envergonhamos perante o resto do mundo com as atitudes tomadas pelo governo do nosso país, mesmo que não o estejamos apoiando e, ao contrário, nos posicionado contra.
“Platão já sabia que a visão do feio provoca o feio na alma. A indignação e a exigência de punição se levantam contra o assassino e isso tanto mais violenta, apaixonada e odiosamente quanto maior ferver a chispa do mal dentro da própria alma. É um fato inegável que o mal alheio rapidamente se transforma no próprio mal, na medida em que acendo o mal da própria alma. O assassinato acontece, em parte, dentro de cada um e todos, em parte, o cometeram. Seduzidos pela fascinação irresistível do mal, todos nós, possibilitamos, em parte, a matança coletiva em nossas mentes e na razão direta de nossa proximidade e percepção. Com isso, estamos irremediavelmente imiscuídos na impureza do mal, qualquer que seja o uso que dele fizermos. Nossa indignação moral cresce em virulência e desejo de vingança quanto mais forte arder em nós a chama do mal.” (C. G. Jung, vol. 10/2, p. 408)
Tomados pela raiva, pelo medo e pelo ódio, os injustiçados passam a acreditar que a ação violenta de vingança é justificada em nome do sofrimento que viveram. Aqueles que se posicionam contra e também os que se comportam como meros espectadores descrentes dos valores de grupos extremistas e violentos podem passar pelo mesmo processo. O primeiro grupo literaliza a violência através de atitudes tão radicais quanto as do grupo contra o qual se coloca. Os últimos, sem agir de maneira alguma, acabam direcionando a agressividade mal dirigida para si mesmos. Essa escalada não terá fim sem o desenvolvimento da consciência individual. Como exemplo disso, Jung fala sobre acontecimentos desse gênero que tomaram forma no final da guerra: “Até os gritos aclamando a execução em massa não mais ofendiam os ouvidos dos justos e se considerava uma justiça divina o incêndio de cidades alemãs.” (C.G. Jung, vol. 10/2, p. 409)
Uma vez que tenhamos aceitado que a maldade, o medo, o ódio e a vergonha existem em nós, podemos lidar com a ideia de que a culpa também é coletiva do ponto de vista psíquico. Sobre isso Jung afirma:
“Do ponto de vista jurídico, a culpa só pode ser circunscrita a quem viola o direito; como fenômeno psíquico, porém, ela se estende para além dos limites espaciais e humanos. Um bosque, uma casa, uma família, e até mesmo uma aldeia em que tenha ocorrido um crime sente internamente a culpa psíquica além de ser acusada externamente.” (C.G. Jung, vol. 10/2, p. 403)
A culpa e a vergonha têm papel importante para a reflexão acerca dos comportamentos individuais e coletivos. Mesmo que a violência não seja praticada por nós, ele acende em nós a necessidade de expiação do mal. O problema é que ele continua existindo naqueles considerados justos mesmo depois da punição daqueles apontados como culpados pois é parte constituinte do ser humano. Somente aceitando que a culpa e a vergonha também pertencem a nós é que podemos entrar em contato com nossas próprias sombras. Aquele que nunca sente culpa ou vergonha sofrerá certamente de algum nível de psicopatia ou sociopatia. Encarar a sombra é o único caminho que leva à ampliação de consciência e ao encontro do si mesmo. Jung sempre foi muito enfático nesse sentido: “Não se pode evitar a sombra, a não ser que se fique neurótico; e, enquanto se é neurótico, a sombra é omitida. A sombra é empecilho que nos separa mais eficazmente da voz divina.” (C.G. Jung, Cartas vol.3, pág. 244)
O fascismo é marcado psicologicamente pela pretensão de eliminar no outro as suas próprias falhas. Portanto, se não entramos em contato com os nossos conteúdos mais sombrios e não aceitamos que a semente do mal existe em cada um de nós, continuamos projetando o mal absoluto no outro. Isso pode não ser suficiente para que sejamos consideramos fascistas do ponto de vista político, mas garante que estamos agindo da mesma maneira do ponto de vista psicológico. Cada indivíduo precisa empenhar-se em descobrir maneiras de lidar com o mal que o habita. Uma mudança social depende diretamente da atitude dos indivíduos:
“Na realidade, porém, uma renovação no espírito das nações só poderá ser alcançada por meio da transformação na compreensão do indivíduo. A renovação tem início no indivíduo. Vários teólogos e filantropos, cheios de bons propósitos, pretendem minar o princípio do poder, mas nos outros. Entretanto, o princípio do poder deve ser minado primeiramente dentro da própria pessoa. Apenas assim essa tentativa pode ser digna de crédito.” (P. 459)
De maneira alguma isso significa que não devemos agir em favor do bem! Sempre é preciso agir quando o mau tenta invadir e tomar o controle e o poder. Porém, se não mergulharmos em nossos próprios inconscientes e trabalharmos para a integração dos nossos conteúdos sombrios, teremos garantia de que o padrão de comportamento da massificação em torno de líderes e ideais extremistas irá continuar se repetindo ao longo de nossa história. Portanto, é imprescindível tomar ação contra tudo aquilo que dissemina a segregação, o racismo, a intolerância, a manutenção do patriarcado abusivo e a ditadura, ou seja, o fascismo.
“Assim deve ser, isto é, faz-se necessário que alguém sinta indignação e se torne a espada da justiça do destino: os maus atos deve ser expiados, pois do contrário os maus arruinarão o mundo ou os bons se verão sufocados em sua ira, o que, em todo caso, não trará nada de bom.” (P. 410)
Links para os artigos anteriores:
1a parte:
http://ijep.com.br/artigos/show/mecanismos-diabolicos-para-a-dominacao-mental-ou-os-fundamentos-do-fascismo-1a-parte-a-duvida).
2a parte:
*Jose Luiz Balestrini Junior, membro analista em formação pelo IJEP.
Foto: campo de concentração nazista em Auschwitz
Referências
JUNG, C. G. Cartas, Volume 2, Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 2018
JUNG, C. G. Cartas, Volume 3, Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 2018
JUNG, C. G. Aspectos do drama contemporâneo, O.C. Vol. 10/2, Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 2016
LEWIS, C.S. Cartas de um diabo a seu aprendiz, Rio de Janeiro, Thomas Nelson Brasil, 2017