Muito se lê, estuda e debate sobre os mitos principalmente gregos. Nós brasileiros os pesquisamos e os utilizamos como referências e objetos de estudo em vários campos do saber.
Porém existe uma espécie de “apagamento” dos mitos indígenas brasileiros, onde grande parte das pessoas os desconhecem. Existe um “excesso de Zeus” e um “esquecimento de Nhanderú”[1].
Jung estudou com profundidade os mitos e sua obra é transpassada por inúmeros relatos de sonhos de pacientes cujos aspectos centrais apresentam figuras mitológicas. Ele apurou que as imagens míticas simbólicas eram provenientes das camadas mais profundas do inconsciente e se manifestam por meio de sonhos, expressões artísticas etc.
Ao longo de suas pesquisas, Jung também constatou que os mitos fazem parte do inconsciente coletivo.
No momento político brasileiro, percebemos um enorme preconceito contra os povos indígenas. Uma rápida pesquisa nos sites de busca mostra uma espécie de necropolítica que trabalha de forma bastante sombria para a destituição dos territórios indígenas, a exploração ilegal das terras e um importante descaso com essa população. O atual presidente em exercício se referiu a eles como “seres humanos como nós” e, num discurso na ONU em 2020, os culpou da devastação ecológica causada pelas queimadas da Amazônia.[2]
De todo passado histórico até os dias atuais, os indígenas pairam sobre a densa nuvem do preconceito e do esquecimento social, ficando à margem das políticas públicas, sendo vistos pela sociedade como “bons selvagens” e por entidades religiosas como “catequisáveis”, num forte desrespeito com as tradições religiosas e seus saberes ancestrais.
Todo este passado sombrio está denegado ao inconsciente coletivo brasileiro.
Boa parte dos analistas junguianos trabalham de forma quase predominante com os mitos gregos. A maioria das escolas formadoras tem um “excesso de Grécia” e uma miopia para os saberes dos ancestrais da nossa terra.
Temos muita Ariel e pouca Yara.
Como os mitos tratam de assuntos arquetípicos, trabalhar com a narrativa dos mitos dos povos originários é um convite para emergir do inconsciente as imagens que nos constituem como brasileiros.
Os mitos indígenas possuem um profundo saber da terra, a interação com a fauna e a flora, o conhecimento da medicina das plantas, os deuses da natureza, tudo numa bonita e poética simbiose com o fluxo da vida, sem a carga de culpa e pecado advindos dos mitos cristãos. É um resgate imagético de pertencimento à grande mãe natureza.
As narrativas indígenas brasileiras poderão nos ajudar na conscientização e no reconhecimento de nossa identidade pessoal e espiritual, a ampliar nossa consciência, a confrontar nossa sombra pessoal e coletiva.
Kaká Werá, escritor, ambientalista e conferencista indígena brasileiro do povo Tapuia, trouxe à reflexão na aula O Poder Sagrado da História que a palavra tupi significa “som de pé”. Para os tupis somos uma “fala andante”. Ao escutar a história de alguém, os pajés aguçam sua escuta para ouvir o nheng da alma. A expressão nheng aproxima-se do termo platônico poiesis, que é o impulso que cria algo através da imaginação e dos sentimentos. Com isso, os pajés percebem as enfermidades, as angústias, as questões que a alma traz.
Como diz lindamente Jung no livro A Natureza da Psique, “a alma é o ponto de partida de todas as experiências humanas, e todos os conhecimentos que adquirimos acabam por levar a ela. A alma é o começo e o fim de qualquer conhecimento” (p. 61, §261).
Os mitos estão no inconsciente coletivo e, consequentemente, na psique de todos os seres humanos. Conforme Jung, o inconsciente coletivo contém componentes de ordem impessoal, coletiva, instintos e arquétipos pois, do mesmo modo que o indivíduo não é apenas um ser singular e separado, mas também um ser social, a psique não é algo isolado e totalmente individual, mas também um fenômeno coletivo.
Como se utilizam de linguagem metafórica, os mitos têm o poder de entrar no mundo dos mistérios que a humanidade não deu conta de decifrar racionalmente. As histórias míticas são prenhes de significados, imagens arquetípicas e simbólicas e refletem frequentemente os problemas e conflitos coletivos.
Portanto, fazer associações em torno de uma narrativa mítica significa mergulhá-la no inconsciente deixando que venha à tona as emoções, imagens, afetos ou símbolos oriundos ao tema apresentado.
Como os mitos participam da psique do indivíduo, as histórias míticas, ao serem aprofundadas e elaboradas, podem elucidar conflitos internos, trazer à tona complexos, conteúdos inconscientes, e abrir a possibilidade para atribuir um novo olhar e significado na vida.
Nise da Silveira vai além e diz que os mitos são fenômenos psíquicos que revelam a própria natureza da psique (1981, p.128-129).
Psique é a palavra com origem no grego psykhé, usada para descrever a alma ou espírito.
Como um entrelaçamento poético, a mitologia contida no inconsciente coletivo mistura-se em nosso inconsciente pessoal compondo o tecido da alma.
Sendo assim, será que a mitologia dos nossos povos originários ajudariam a cerzir nossa tão esgarçada alma brasileira?
Como os símbolos chegam onde as palavras não acessam e transcendem a racionalidade, eles ajudam a irromper o nheng. A compreensão e ampliação das imagens arquetípicas contidas na mitologia podem ajudar no processo de nosso autoconhecimento, na sensação de pertencimento, no resgate de nossa identidade ancestral.
Daniel Munduruku, escritor, professor e conferencista indígena, nos traz a reflexão que “para os indígenas, um sonho contado é um sonho para todos. O sonho não é só individual mas da tribo, pois os sonhos são a alma do mundo.”
Essa reflexão muito se assemelha aos dizeres de Joseph Campbell em O Poder do Mito ao trazer que “os mitos são os sonhos do mundo, os sonhos arquetípicos que lidam com os magnos problemas humanos”.
Sendo assim podemos pensar que, ao sonhar os sonhos do mundo também sonhamos os sonhos dos nossos ancestrais indígenas. Mas, como somos desassociados daqueles saberes, ao trabalharmos as narrativas míticas indígenas, também poderemos resgatar os conhecimentos esquecidos da nossa história primeva tais como: os animais como espíritos da floresta; as histórias míticas dos alimentos oriundos da terra; a espiritualidade dos nossos deuses arcaicos (sol, lua, rios, etc); a proeza dos guerreiros indígenas; o conhecimento das plantas medicinais pelos xamãs; o viver em prol da coletividade; as vivências e provações do amor; a naturalidade do corpo; o envelhecimento como processo natural; etc.
E fica aqui a provocação de que se, ao resgatarmos a mitologia indígena, também resgataríamos uma parte esquecida e renegada na nossa alma brasileira pois, ao nos aproximarmos dos saberes dos povos originários, estaríamos também nos aproximando da nossa própria história varrida ao inconsciente coletivo.
Precisamos nos reapropriar de nossa cultura ancestral indígena, pesquisar sobre nossa história sem distorções românticas, a ler as mitologias dos nossos povos originários, investigar os saberes ancestrais da nossa terra, ouvir com alma os conselhos de Nhanderú.
Talvez o caminho para a cura do nosso inconsciente cultural também passe pelo reconhecimento dos símbolos, mitos e tradições dos nossos povos originários.
Daniela Euzebio – Membro Analista em formação pelo IJEP – SP
E. Simone Magaldi – Analista Didata
REFERÊNCIAS
CAMPBELL, Joseph; MOYERS, Bill. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena Editora, 1990
JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 1986 (Obras completas de C.G.Jung, v. 8/2).
JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2016 (Obras completas de C.G.Jung, v. 9/1).
MUNDURUKU, Daniel. Contos Indígenas Brasileiros. São Paulo: Global Editora, 2015.
SILVEIRA, Nise da. Jung – Vida e Obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981
WERÁ, Kaka. O Poder Sagrado da História. Aula ministrada via YouTube, canal Kaká Werá: acessado em 23 de agosto de 2021.
[1] Guarani: Deus verdadeiro
[2] Fonte: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/09/22/em-video-gravado-bolsonaro-faz-discurso-na-abertura-da-assembleia-da-onu.ghtml