Resumo: O mito de Sísifo, numa perspectiva junguiana, pode ilustrar a resistência humana a abrir mão de uma atitude psíquica obsoleta para a descoberta de uma nova e necessária atitude. O escritor franco-argelino, Albert Camus, defende que Sísifo representa o ideal heróico humano em face do absurdo da vida. Por isso, para ele, seria preciso imaginar Sísifo feliz no Tártaro. A partir de dados de um estudo realizado com pessoas bem-sucedidas na meia-idade, mas paradoxal e perturbadoramente infelizes, este pequeno ensaio aborda Sísifo como um complexo afetivo, contrapõe a leitura clássica à de Camus e propõe uma rota de saída do nosso mais íntimo Tártaro, o qual costumamos visitar no meio da vida.
A crise da meia-idade é assunto antigo no meio junguiano.
Foi no meio da vida que Jung produziu o conteúdo d’O Livro Vermelho, lírica nascente do que viria a se tornar boa parte de suas obras completas. No entanto, por muito tempo, o tema parece ter sido negligenciado pelos meios acadêmicos científicos tradicionais. Com o envelhecimento da população mundial, porém, o assunto emerge na academia.
Estudo publicado há três anos pelo National Bureau of Economic Research (NBER) dos Estados Unidos, intitulado The Midlife Crisis, confere um verniz materialista-científico à metanoia, palavra do grego que significa “mudança de mentalidade” e que, no meio junguiano, costuma designar também o drama que muitas pessoas vivem ao chegar ao meio-dia da vida. Realizado por um grupo de economistas, a pesquisa envolveu uma amostra de 500 mil pessoas de países ricos — Áustria, Canadá, Finlândia, França, Holanda, Espanha, Reino Unido e Estados Unidos — e, na visão dos pesquisadores, revelou que a crise da meia-idade não é misticismo.
Segundo o estudo, assinado por Giuntella (et al., 2022, p. 19-20), há “evidências longitudinais de extrema angústia entre adultos de meia-idade [entre quarenta e cinquenta anos] em países ricos”.
O que parece fugir inteiramente à razão dos pesquisadores, segundo os quais, “esses indivíduos estão próximos de seus ganhos máximos ao longo da vida e, em geral, não passaram por nenhuma doença grave”. Ou seja, com grana e, em tese, ainda com vitalidade de sobra, tais “evidências de extrema angústia”, o que inclui depressão extrema, ideações suicidas, suicídio, distúrbios do sono, entre outros, só podem ser, na palavra dos próprios pesquisadores, um “paradoxo pertubador” da “sociedade moderna”.
É possível afirmar que, sob a lente junguiana, não há, no sentido apontado pelo estudo, paradoxo na metanoia, embora haja perturbação de sobra. Mas como pode não ser paradoxal se os caras estão no ápice de suas carreiras, com segurança financeira e são, em grande medida, bem-sucedidos? Por que estariam infelizes, deprimidos e pensando ou cometendo suicídio?
Nossos quereres são menos nossos do que supomos e mudam ao longo da existência.
Como escreveu Jung (2013a, p. 354): “Não podemos viver a tarde de nossas vidas segundo o programa da manhã, porque aquilo que era muito na manhã, será pouco na tarde, e o que era verdadeiro na manhã, será falso no entardecer”. Contudo, numa sociedade que supervaloriza a hiperprodutividade, o vigor, a beleza sensual, o sucesso, a conquista material e a força, é difícil enxergar vida na poesia, na sabedoria, na intuição, é difícil fazer da dor pérola, do sofrimento significado, das rugas troféus, da velhice uma bênção e, da morte, ressurreição — talvez nunca tenha sido fácil. Tem-se assim, então, um mundo de Sísifos.
Sísifo, o mais astuto dos mortais e rei de Corinto, ficou famoso na Grécia Antiga por ultrapassar seus limites humanos ao meter-se num assunto dos deuses. Delatou Zeus em uma de suas luxuriosas incursões entre os humanos e extorquiu o deus-rio Asopo para conseguir uma fonte d’água para a sua cidade. O fim até era nobre, mas os meios eram questionáveis e Zeus, em seu divino orgulho ferido, pediu sua cabeça. Sísifo, porém, se negaria a morrer: primeiro, enganaria Tânatos; depois, Hades.
Por tanta ousadia e desaforo aos deuses, foi condenado ao Tártaro, onde deveria rolar uma enorme e pesada pedra montanha acima, consciente de que jamais seria capaz de levá-la ao topo. A poucos centímetros do cume, inevitavelmente perderia suas forças, sendo obrigado a deixar que a pedra rolasse montanha abaixo. Era, assim, obrigado a voltar ao pé da montanha, pegar a pedra de novo para reiniciar o trabalho sem sentido a que estava eternamente condenado.
Os deuses viraram doenças
Na perspectiva da moral clássica, Sísifo é mais um exemplo do desejo humano de não se curvar diante das forças misteriosas e impiedosas dos deuses — ou da natureza. Extrapolar a própria condição humana e se identificar com as intenções, que, para os gregos, não eram humanas, mas divinas, era o maior dos pecados que um homem poderia cometer: a hýbris. Sísifo não aceitou a sua humana mortalidade e fez “das tripas coração” para não morrer. Assim, acabou condenado a uma imortalidade sem vida no mundo dos mortos.
O espírito dos novos tempos é diferente do da Grécia Antiga. Pensamentos, desejos, sentimentos, sonhos e imaginações, mesmo que não venham das nossas deliberações conscientes, mas a partir de fontes misteriosas que parecem ter autonomia, são tratadas sempre com pronomes possessivos. É tudo “meu” ou “minha”. Com essa mentalidade reinante, o que acontece quando a produção espontânea e inconsciente da psique não está de acordo com a minha vontade consciente? Se tudo em mim sou eu e não há espaço para outros em mim, então, essas imagens só podem ser a prova de que adoeci. Daí vem a famosa máxima de Jung segundo a qual os deuses viraram doenças.
“Os indicadores de extrema angústia” na meia-idade, aos quais alude a pesquisa que inspira este ensaio, são, aos olhos contemporâneos, doenças.
Na visão junguiana, assim como os deuses, as doenças querem revelar algo. Mas o que? Seria a resistência inútil do homem de meia-idade a aceitar a morte de quem ele foi na primeira metade da vida adulta para encontrar a nova versão de si na segunda metade? A hipótese deste ensaio é a de que sim. É interessante, então, imaginar que, na meia-idade, a depressão, por exemplo, cujo significado etimológico é pressão para dentro, possa ser, no plano simbólico, um indesejável mergulho nas regiões mais profundas do Hades de si próprio. As entranhas da terra (ou da alma) são a cova e o útero ao mesmo tempo. É necessário realizar o sacrifício de uma parte de quem éramos para renascermos numa nova perspectiva.
Albert Camus em seu ensaio O Mito de Sísifo, escrito em 1942, quando os gritos da Segunda Grande Guerra soavam em alto e bom som, trouxe uma perspectiva diferente, redentora e heróica de Sísifo, lendo-o como um personagem da resistência humana ao absurdo da existência e da vontade dos deuses, vendo nisso um mérito. Com apenas 28 anos, o escritor franco-argelino, que ganharia o Nobel em 1957, talvez não pudesse aceitar a vontade dos deuses quando ela permitia que os nazistas controlassem Paris e boa parte da Europa. Camus (2021, p. 141) escreve: “Deixo Sísifo na base da montanha! […] Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e ergue as rochas […] A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz”.
Em busca da resposta
Independentemente do contexto histórico, todos trazemos, em si, um complexo de Sísifo, ou seja, uma personalidade autônoma sensível a gatilhos afetivos que nos dispõe a negar e resistir às mortes simbólicas que a vida exige de nós. Na meia-idade, esse complexo tende a se pronunciar, o que é natural, afinal, só desenvolvemos uma nova cosmovisão porque, antes, estivemos envolvidos em outra. Não há como ignorar Sísifo, tampouco se deve, mas ele precisa entender que tão importante quanto saber o que se quer da vida é saber o que a vida quer da gente. Por isso, na meia-idade, é preciso imaginar Sísifo infeliz, disposto a abrir mão da influência que tem sobre nós para nos deixar seguir em frente, o que significa aceitar a morte de uma velha maneira de enxergar o mundo para poder reencontrar a vida em uma nova perspectiva.
É interessante observar, pelo mito, que a resistência à “morte” costuma estar associada à dificuldade de deixar para trás um lugar onde se é rei.
Fica mais difícil, como ocorreu com Sísifo, abrir mão da glória para descobrir uma nova jornada cujo destino é incerto. Pode ser o caso daquele empresário que fez de seu vigor intelectual, disposição física e ambição juvenil uma fonte de riqueza, mas, na virada do sol íntimo, começa a experimentar uma falta de significado existencial no mundo corporativo, o que se expressa, por exemplo, num burnout. Ele não quer deixar de ser quem se esforçou tanto para se tornar. Ao mesmo tempo, no fundo, não vê mais a sua alma se refletir em suas conquistas anteriores.
A primeira metade da vida, como escreveu Jung, segue imperativos bem distintos da segunda. Enquanto a juventude adulta costuma ser marcada pela conquista de um lugar no mundo, um caminhar extrovertido de demarcação de território e conquista de reconhecimento e segurança social, a segunda metade tende a nos levar para dentro, na busca por corresponder a demandas mais éticas que morais, na direção de honrar a nossa criança, a qual não quer outra coisa senão poder ser verdadeira sem deixar de ser amada.
Na segunda metade da vida, seremos obrigados a descobrir que somos mais do que qualquer papel social que cumprimos.
Que todo o poder e segurança alcançados são importantes, mas não conseguem mais conferir sentido à nossa existência. Mas qual então seria o sentido? Cada um haverá de encontrar a resposta em si. Não há mais espaço para reducionismos, é na amplitude da alma e na conciliação de desejos e aspirações conflitantes, o que pressupõe vencer e perder ao mesmo tempo, que nos encontramos individual e coletivamente.
Mais tempo acordados
A maior parte do que escrevo não é mera pesquisa acadêmica. Estou às vésperas de completar quarenta e cinco anos, mas já aos trinta e cinco algo em mim procurava me dizer que eu poderia acabar no Tártaro de mim mesmo, identificado com o meu astuto Sísifo e, como ele, carregando em vão uma pedra montanha acima. É difícil reconhecer que a pedra e a montanha não enchem meu coração, reconhecer que, às vezes, a desistência é a escolha mais nobre e recompensadora. Como jornalista, tive uma longa carreira, mas a partir de dado momento a profissão não mais me nutria a alma.
Pelos cinco primeiros anos dos últimos dez, tentei aplicar, na segunda metade da vida, receita parecida à aplicada na primeira. Minhas expectativas juvenis sempre me prometeram mais do que fui capaz de me dar. Não havia tantas glórias assim a abandonar, havia mais anseios de glórias não alcançadas. Por isso, tinha vontade de ficar e seguir tentando. Eis outra razão pela qual é difícil desistir da pedra e da montanha: a sensação de que, ao fazê-lo, fracassamos. Quanto mais corria na direção das velhas aspirações, porém, colocando-as como a cenoura motivadora, menos vontade de avançar o burro sentia.
James Hillman (2001, p. 12) escreve que a crise da meia-idade: “refere-se menos ao fato de ser velho demais do que ser jovem demais […] não se refere à falta de capacidade, mas à falta de ilusão […] aos quarenta anos não temos oitenta, e temos muito mais ‘tempo acordados’ pela frente do que no nosso passado”. O que eu precisava aceitar, então, era a morte, a morte das ilusões juvenis que tinham inspirado a minha jornada até ali. É difícil sepultar as ilusões quando ainda as vemos como sonhos. Eu precisava encontrar, no Hades do meu íntimo, um novo sentido, algo que me permitisse unir o ordinário e o extraordinário da vida. Assim, cheguei à clínica junguiana.
Não foi um movimento racional: minha alma e meu corpo exigiram, apesar de toda a minha resistência egóica.
Quando falo em corpo, não é força de expressão, porque, até que se prove o contrário, nada nos permite supor que seja possível uma vida animada sem que haja um corpo. Por isso, toda mudança psíquica tem reverberações físicas e toda mudança física reverbera na psique.
Tanto é que estudo recente da Universidade Monash revela mudanças significativas no cérebro humano entre os quarenta e cinquenta anos, como atesta o texto de Valencia (BBC News Brasil, 2024): “’É como se, antes dos 40, os circuitos passassem pelas unidades do cérebro conectados a redes muito sofisticadas’, indica a neurocientista [Sharna Jamadar]. ‘Depois dos 40, o que observamos é que os circuitos se conectam com todos os circuitos, quase sem discriminação’“.
Neumann (Cf. 2024, p.340) defende que a integração de aspectos da totalidade psíquica, nessa etapa da vida, despertam crises existenciais marcadas por fortes emoções, as quais, a depender do caso, podem colocar o ego em risco, como atesta a angústia extrema que tende a marcar essa época da vida. Arrisco dizer, portanto, que as evidências fisiológicas trazidas pelos pesquisadores da Universidade Monash se somam às comportamentais quando se trata da metanoia da meia-idade, reforçando assim a maneira pela qual a psicologia analítica enxerga o desenvolvimento da personalidade humana.
Com tudo isso, é possível dizer que as transformações psicossomáticas da meia-idade teriam a finalidade de desvendar um novo horizonte, o qual talvez só sejamos capazes de enxergar quando dispostos a morrer para velhos padrões, para sonhos caducos e para expectativas de grandeza egóicas. Um novo horizonte, sem a ilusão das certezas, sisudas ou polianas, cheio de dúvidas e com a possibilidade de inúmeras respostas, todas certas e erradas, a depender do contexto e da finalidade. Um novo horizonte em que não é preciso erguer, em vão, a pedra ao topo da montanha, porque a imortalidade não é o propósito, o propósito é apenas viver quantas vidas forem necessárias neste mesmo sopro de existência.
Wagner H P Borges — Membro Analista em Formação pelo IJEP
Dra. E. Simone Magaldi — Membro Didata pelo IJEP
Bibliografia:
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. 22ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2021.
GIUNTELLA, Osea; MCMANUS, Sally; MUJCIC, Redzo; OSWALD, Andrew J.; POWDTHAVEE, Nattavudh; TOHAMY, Ahmed. The Midlife Crisis. NBER, 2022. Disponível em: https://www.nber.org/papers/w30442#fromrss. Acesso em: 17 de agosto de 2022.
HILLMAN, James. A força do caráter: e a poética de uma vida longa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
HOLLIS, James. A passagem do meio — da miséria ao significado da meia-idade. São Paulo: Paulus, 1995.
_________. A natureza da psique. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013a.
_________. O desenvolvimento da personalidade. 14ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013c.
NEUMANN, Erich. História das origens da consciência — Uma jornada arquetípica, mítica e psicológica sobre o desenvolvimento da personalidade humana. 2ª Ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2024.
VALENCIA, Alejandro M. Como o cérebro humano se ‘reconfigura’ a partir dos 40 anos (e o que fazer para mantê-lo saudável). BBC News Brasil, 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51z402jjz4o. Acesso em: 24 de agosto de 2024.

