Em seus escritos, C. G. Jung utiliza pouquíssimas vezes a expressão Narcisismo. Deparar com esse dado pareceu, num primeiro momento, surpreendente, dado o fato de que, ao lado de Complexo de Édipo, talvez aquela seja uma das expressões psicanalíticas mais utilizadas pelos estudiosos da obra de Freud.
Assim como, de maneira popular, por meros entusiastas e até mesmo por muitos leigos no assunto. Ao mesmo tempo, isso não deveria ser tão alarmante, afinal, sabemos que, desde o começo de sua carreira, Jung procurou seguir seu próprio caminho.
Mesmo durante o período que estava próximo a Freud, defendia suas próprias ideias e proposições teóricas e práticas.
Independentemente disso tudo, o termo ganhou popularidade e é utilizado pelas mais diversas linhas ou escolas da psicologia, inclusive por terapeutas junguianos.
Não interessa para o presente texto a construção histórica do uso do termo dentro da psicanálise e da psicologia profunda, mas sim o fato de que sua utilização continua presente, retornando sempre de diferentes maneiras através de diversas leituras e análises, sempre mantendo seu núcleo temático original, aquele que revela a dinâmica do mito de Narciso.
Junito de Souza Brandão (2014) nos auxilia na compreensão do que o termo significa quando explica a origem do nome do personagem mítico.
Narcisismo está obviamente conectado com Narciso, palavra que deriva da expressão grega nárkē que significa “entorpecimento, embotamento”.
Dessa raiz etimológica surgiram palavras como narcolepsia, narcose, narcótico, entre outras; todas elas apontando para alguma experiência ou fenômeno de anestesiamento. Por isso o mito aponta metaforicamente para diversas situações da vida humana que revelam – ou escondem – essa dinâmica, sejam elas consideradas patológicas ou não.
Ele pode ser compreendido como imagem arquetípica diretora daqueles que se encontram procurando, de maneira consciente ou inconsciente, estados de estupor, seja através do uso de substâncias ou de quaisquer outros comportamentos que neguem a alteridade.
Talvez possamos resumir o comportamento narcísico como a tentativa de apagamento do outro.
Seja esse outro um habitante do mundo exterior ou do mundo interior, seres do mundo concreto ou personagens do mundo imaginal.
Trazendo a reflexão para um âmbito social, podemos encontrar em publicações científicas os neologismos narcocapitalismo e narcopolítica. O primeiro fala basicamente sobre os sistemas de governo corruptos em que o comércio de drogas ilegais é ponto de apoio econômico do país; o segundo diz respeito à influência que os envolvidos com o tráfico de drogas tem no jogo político, não só como participantes do espetáculo, mas, muitas vezes, como pessoas que influenciam na determinação e na mudança das regras que regem o país.
Narcoestado e Narcocapitalismo
Dessa situação das coisas surge o que alguns estudiosos chamam de Narcoestado. Ampliando esse fenômeno simbolicamente, me parece que o narcocapitalismo e suas ramificações são maiores e dizem ainda mais sobre o estado em que nos encontramos como sociedade, principalmente do ponto de vista psicológico. Nesse sentido, não falam somente sobre o uso de drogas ilícitas, mas de comportamentos diversos que possuem na sua raiz a dinâmica narcísica.
Após a segunda guerra mundial, na década de 1960, o escritor e cineasta Pier Paolo Pasolini (2018) fazia alertas sobre como a massificação industrial capitalista avançava transformando tudo e todos num movimento que buscava homogeneizar a cultura.
Nos anos 1980, o historiador americano Christopher Lasch (1983) falava sobre a cultura do narcisismo que estava sendo construída com base na aparência e no espetáculo, naquilo que o indivíduo aparentava ser, e não em suas atitudes concretas. Ambos autores indicavam em suas análises, mesmo que de maneira indireta, algo que podemos observar com clareza na contemporaneidade.
O narcisismo na sociedade midiática
Byung Chul-Han (2021) explora esse contexto ao mostrar que o narcisismo, visto de maneira individualizada na clínica psicanalítica, vaza para a coletividade de maneira patológica na sociedade midiática. Uma cultura formada por pessoas que buscam o tempo inteiro projeções de si mesmos nas imagens publicadas incessantemente nas redes sociais.
Na minha visão, esses são alguns aspectos da construção histórica do narcocapitalismo que educa a massa ensinando como todos devem se comportar na sociedade da produção e do consumo, antes basicamente de produtos, hoje dos próprios indivíduos.
Na contemporaneidade, a própria pessoa transforma-se em matéria prima e produto de consumo.
Como a cultura é homogeneizada, vende e compra projeções de si mesmo, negando a diversidade e o divertido, acaba aprisionado, portanto, num ciclo narcisista.
Olhando a partir da perspectiva junguiana, uma das leituras que podemos fazer daquilo que muitos chamam de narcisismo está conectado com a dinâmica da inflação do ego. É nesse fenômeno que procuro me debruçar no presente texto.
Como o termo narcisismo continua sendo utilizado, de maneira cada vez mais popular, muitas vezes sendo transformado até mesmo num xingamento, acredito que seja necessário dar atenção, refletir e ampliar o assunto.
Assim como um sonho se repete, tentando mostrar algo que precisa ser enxergado pela consciência, a narrativa mitológica irrompe no comportamento coletivo trazendo a oportunidade de encontrarmos pontos cegos que direcionam as nossas ações de maneira inconsciente.
Me parece que é quase ponto pacífico a ideia de que esta inflação do ego está conectada com o desenvolvimento de uma persona de prestígio. Uma máscara social que leva a pessoa a realizações consideradas grandiosas por aqueles tomados pelo espírito da época de maneira unilateral e literal.
Nas palavras de Jung:
“A identificação com o próprio cargo ou título pode ser muito tentadora, mas é o motivo pelo qual tantas pessoas não são mais do que a dignidade a elas concedida pela sociedade. Procuraríamos em vão uma personalidade atrás da casca. Sob o envoltório pomposo encontraríamos um homenzinho deplorável. O cargo, ou qualquer tipo de casca exterior exerce um grande fascínio, porque representa uma fácil compensação das deficiências pessoais.”
JUNG, 2011, p. §230
Não discordo da visão acima. Contudo, em um exercício de ampliação, tento olhar para aquilo que não estamos conseguindo enxergar nessa interpretação. Como o próprio Jung deixa claro, temos que tentar encontrar as lacunas que a própria teoria psicológica deixa quando ficamos aprisionados em conceitos e explicações.
A sombra é um elemento vivo da psique.
A sombra é um elemento vivo da psique e, como tal, não pode ser esgotada. Não podemos partir do pressuposto de que compreendemos completamente o fenômeno, seja ele qual for, exatamente porque, de acordo com o que foi dito anteriormente pelos autores aqui citados, entre muitos outros, pode-se perceber que o mito de Narciso ainda vive entre nós e mantém sua função simbólica que constela aspectos da psique não integrados.
A identificação unilateral do problema que tratamos aqui, ou seja, da inflação e do narcisismo, como sendo resultado do desenvolvimento da persona de prestígio pode ser perigosa quando isso torna-se uma categorização tão patológica quanto a própria inflação.
Como afirma o próprio Jung:
“Se desejarem praticar a psicologia, recomendo-lhes uma frase pronunciada pelo filósofo Multatuli – quer dizer, o seu pseudônimo é Multatuli. Pois este disse um dia: ‘Nada é inteiramente verdadeiro e também isso não é inteiramente verdadeiro’.
Gravem bem isso! Há regras e não há regras. Na psicologia qualquer frase pode ser invertida e continua certa ou será certa apenas quanto invertida, tudo depende das condições que por vezes são inteiramente imponderáveis.”
JUNG, 2014, p. 57
Façamos então uma inversão e, ao invés de procurar o narcisismo na identificação do indivíduo com a persona. Imaginemos que essa identificação pode acontecer no caminho contrário, também levando o ego a acreditar que é maior e mais do que é na realidade, porém a partir de valores que lhe parecem ser contrários ao movimento da massa, mas que no final repetem a mesma dinâmica da cultura narcisista na qual estamos inseridos.
Mais uma vez Jung se revela genial, pois ele mesmo nos dá subsídios para trilhar esse caminho, vamos dar atenção ao seguinte parágrafo:
“Entretanto, a inflação não é provocada apenas por atrações exteriores tais como títulos, cargos, ou outras regalias sociais. Estas constituem os fatores impessoais externos, na sociedade e na consciência coletiva. Mas assim como além do indivíduo há uma sociedade, do mesmo modo além da psique pessoal há uma psique coletiva: o inconsciente coletivo, que encerra, como vimos no exemplo citado, fatores não menos atrativos.
Por conseguinte, do mesmo modo que um homem pode ser fascinado de repente pelo mundo de sua dignidade profissional, outro pode desparecer com a mesma rapidez diante de uma daquelas poderosas imagens que transformam a face do mundo.
Referimo-nos às mágicas ‘représentations collectives’, que estão na base do ‘slogan’ dos americanos, do chavão e, num nível mais alto, da linguagem do poeta e do místico.”
JUNG, 2011, p. §231
Jung nos faz esse alerta em vários momentos de sua obra, ao indicar que o mergulho no mundo interior não pode ser confundido e utilizado como fuga das responsabilidades morais. Responsabilidade essas que, idealmente conectadas com a ética, fazem parte do caminho na direção do processo de individuação.
Nesse sentido, abandonar o mundo exterior, caindo num mecanismo de identificação com as imagens subjetivas é tão patológico quanto o contrário, ou seja, a projeção unilateral da alma nos objetos.
Ainda nas palavras do autor:
“Sempre que a imagem da alma é projetada, surge uma vinculação afetiva absoluta com o objeto. Se não for projetada, cria-se um estado de relativa inadaptação que Freud descreveu em parte como narcisismo.
A projeção da imagem da alma faz com que a gente não se preocupe com os processos internos enquanto o comportamento do objeto coincidir com a imagem da alma. E, assim, o sujeito está em condições de viver sua persona e desenvolvê-la.
Se a imagem da alma não for projetada, surge, com o tempo, uma diferenciação mórbida na relação com o inconsciente. O sujeito é inundado cada vez mais pelos conteúdos inconscientes que, devido à falta de relação com o objeto, não consegue valorizar e nem empregar de outra maneira qualquer.
É natural que esses conteúdos prejudiquem em muito a relação com o objeto. Essas duas atitudes são casos extremos entre os quais estão as atitudes normais.”
JUNG, 2013, p. §889-890
Na contemporaneidade impera o que podemos chamar de neoliberalismo digital, que empurra a pessoa para a massificação através da dissimulação da individualidade.
Na realidade, o que se encontra é o individualismo puro na produção e consumo de si mesmo, através das imagens predominantemente visuais publicadas nas redes sociais.
Narciso encontra aqui um caminho para se manifestar através da inflação pregada e reforçada de maneira coletiva pela própria sociedade midiatizada. Por exemplo, nos dias de hoje, parece que todos gostariam de ser identificados como heróis e – apesar dessa jornada poder ser interpretada como o caminho que o ego deve fazer de maneira repetida na criação da consciência – o ego não é o arquétipo em si e deveria compreender que a jornada é arquetípica, mas ele mesmo está subordinado à totalidade e sofre a jornada porque ela lhe é imposta pelo Self e não o contrário.
Nas palavras de Jung:
“O herói é o ator da transformação de Deus no homem; corresponde àquilo que denominei de “personalidade mana”. Esta exerce grande fascínio sobre o consciente: o eu facilmente cede à tentação de identificar-se com o herói, o que acarreta uma inflação psíquica com todas as suas consequências”
JUNG, 2018, §612
Nesse sentido, a busca desesperada do indivíduo contemporâneo pela identificação com imagens heróicas que possam gerar visualizações e curtidas não passa de mais uma tentativa de preencher o vazio existencial causado pelo distanciamento do ego de seu papel de direito nos dramas humano e divino.
Sintomas narcísicos
Um dos sintomas desse narcisismo dissimulado é a proliferação de práticas dentro do campo da própria psicologia que não passam de esquemas criados para levar o indivíduo a mais tentativas de se livrar da própria psique.
Ao invés de trabalhar para compreender as projeções que faz no mundo externo, foge para dentro da sua subjetividade ficando identificado com conteúdos do inconsciente coletivo, o que também não resolve o problema; a complexidade das relações com o mundo exterior é refletida no mundo interior e/ou vice-versa.
Byung Chul-Han diz:
“O homo psychologicus narcísico está aprisionado em si, em sua interioridade complicada. Sua pobreza de mundo lhe deixa apenas girar em torno de si mesmo” (HAN, 2021, p. 41).
Na sociedade midiática o mundo vira pano de fundo para publicações que fazem a manutenção da inflação do ego, é relegado sempre para o segundo plano servindo para que a composição da imagem faça com que o indivíduo se sobressaia.
Essas imagens são produzidas para dar destaque ao prestígio da persona ou para a tentativa de mostrar o ato pseudo-heroico do ego que enfrenta seu mundo interior e encontra respostas e soluções para si e para os outros nos conteúdos subjetivos; aqui, o narcisismo fica disfarçado de autoconhecimento.
De um lado temos indivíduos que trabalham, constroem, produzem e consomem em nome do dinheiro, do acúmulo de bens e propriedades e do reconhecimento social.
Do outro encontramos aqueles identificados com o misticismo; acreditam que o desapego é a solução e alimentam a ilusão de possuir todas as chaves e explicações necessárias para encontrar paz e realização interior através da poesia, da arte e de outros conceitos que não abarcam verdadeiramente a experiência numinosa.
Ambos aprisionados em seus respectivos narcisismos, cegos para o verdadeiro chamado da alma que clama pela vida simbólica unificadora.
IMAGEM: Echo and Narcissus, John Waterhouse, 1903. Domínio Público. Disponível em: https://www.wikiart.org/en/john-william-waterhouse/echo-and-narcissus-1903
Referências:
BRANDÃO, J. D. S. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis, RJ: Vozes, 1, 2014.
HAN, B.-C. O desaparecimento dos rituais: uma topologia do presente. Editora Vozes, 2021. 6557133330.
JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Editora Vozes Limitada, 2011. 8532641113.
JUNG, C. G. Tipos psicológicos. Tipos psicológicos, p. 1-633, 2013.
JUNG, C. G. Sobre Sonhos e Transformações. : Petrópolis: Vozes 2014.
JUNG, C. G. Símbolos da transformação vol. 5. Editora Vozes Limitada, 2018. 853265844X.
LASCH, C. A cultura do narcisismo. : Rio de Janeiro: Imago.(Original publicado em 1979) 1983.
PASOLINI, P. P. Il fascismo degli antifascisti. Garzanti, 2018. 8811603692.
José Luiz Balestrini Junior – Analista Didata em Formação IJEP
Waldemar Magaldi – Analista Didata e Coordenador IJEP
Acesse nosso site: https://www.ijep.com.br/