A arte nos revela. Muito além das questões estéticas, ela evidencia aspectos da consciência e o inconsciente do artista, além do inconsciente coletivo do Espírito da Época.
Ao observarmos com atenção, percebemos que existem inúmeras projeções de animus em diferentes formas de arte. Para conseguirmos apreender as imagens arquetípicas projetadas na arte pelo animus, é importante alinharmos este conceito conforme a Psicologia Analítica.
Animus é um arquétipo cujas raízes se encontram no inconsciente e atua como psicopompo (elo de ligação) com a consciência, onde atua como uma função. O animus é o contraponto masculino do inconsciente que interage de forma complementar na consciência feminina. Importante ressaltar que animus não está vinculado ao sexo e sim à consciência, ou seja, uma consciência identificada com o feminino terá seu contraponto masculino no inconsciente.
No livro Aion – Estudo sobre o simbolismo do si-mesmo, Jung relacionou o Animus ao Logos:
“(…) assim o animus é também um psychopompos, isto é, um intermediário entre a consciência e o inconsciente, e uma personificação do inconsciente. Da mesma forma que a anima se transforma em um Eros da consciência, mediante a integração, assim também o animus se transforma em um Logos; da mesma forma que a anima imprime uma relação e uma polaridade na consciência do homem, assim também o animus confere um caráter meditativo, uma capacidade de reflexão e conhecimento à consciência feminina.” (JUNG, 2018, p.29 §.33 – grifos meus)
Como o animus corresponde ao Logos, ele está ligado a razão, as argumentações, opiniões, julgamentos, ação, etc. É devido ao impulso do animus que a consciência feminina se lança ao mundo, age, conquista, muda, compete, racionaliza.
No livro O Eu e o Inconsciente, Jung faz referência do animus ser um complexo autônomo:
“(…) Habitam uma esfera de penumbra, e dificilmente percebemos que ambos, anima e animus, são complexos autônomos que constituem uma função psicológica do homem e da mulher. Sua autonomia e falta de desenvolvimento usurpa, ou melhor, retém o pleno desabrochar de uma personalidade. Entretanto, já podemos antever a possibilidade de destruir sua personificação, pois conscientizando-os podemos convertê-los em pontes que nos conduzem ao inconsciente.” (JUNG, 2018, p.101, §339 – grifos meus)
Feito este rápido alinhamento conceitual, ao olharmos com atenção, vemos que várias artistas projetaram seu animus em diversas formas de arte como imagem simbólica ou arquetípica.
Por exemplo, neste trecho da música “Agora só falta você”, Rita Lee fez uma projeção de seu animus na forma de versos:
“Um belo dia resolvi mudar
E fazer tudo que eu queria fazer
Me libertei daquela vida vulgar
Que eu levava estando junto a você
Em tudo que eu faço existe um porquê
Eu sei que nasci pra saber, pra saber o quê?”
Agora Só Falta Você – Rita Lee (1975)
Neste recorte, a música fala de uma personagem que se cansou da rotina dos dias, do relacionamento mal resolvido e que resolveu dar uma virada na vida decretando sua independência. Este impulso da mulher de se lançar a ação, a libertação e agindo de forma racional (em tudo que eu faço existe um porquê) são características do animus.
Na música Pagu temos a voz feminina protestando contra a objetificação do corpo da mulher, tão fortemente marcado no espírito da nossa época. É o grito de quem quer ser percebida além da beleza, de alguém que vai pra luta, realiza e se desdobra, uma mulher “mais macho que muito homem”:
“Nem toda feiticeira é corcunda
Nem toda brasileira é bunda
Meu peito não é de silicone
Sou mais macho que muito homem”
Pagu – Rita Lee (2000)
Na literatura, o romance Água Viva de Clarice Lispector, ela fala sobre uma artista plástica que escreve uma carta para um homem que sempre a questiona sobre sua obra. Ela escreve esta carta de forma intensa, catártica, num fluxo de pensamento pungente que, ao ser guiada pela fúria dos impulsos, se desorganiza internamente, questiona, racionaliza, filosofa, características do animus constelado na consciência feminina.
Neste fragmento, a personagem se sente tomada por uma volúpia, anseia por pagar o preço da liberdade de sua escolha, e quer mergulhar numa entrega de ser.
“(…) Sou assombrada pelos meus fantasmas, pelo que é mítico e fantástico – a vida é sobrenatural. E eu caminho em corda bamba até o limite de meu sonho. As vísceras torturadas pela voluptuosidade me guiam, fúria dos impulsos. Antes de me organizar tenho que me desorganizar internamente. Para experimentar o primeiro e passageiro estado primário de liberdade. Da liberdade de errar, cair e levantar-me. Mas se eu esperar compreender para aceitar as coisas – nunca o ato de entrega se fará. Tenho que dar o mergulho de uma só vez, mergulho que abrange a compreensão e sobretudo a incompreensão. E quem sou eu para ousar pensar? Devo é entregar-me. Como se faz? Sei porém que só andando que se sabe andar e – milagre – se anda.” Água Viva – Clarice Lispector (1998)
No livro “O Homem e Seus Símbolos”, von Franz diz que quando a mulher está sob o aspecto positivo de seu animus está em comunhão com seu sagrado.
“Como já assinalamos, o lado positivo do animus pode personificar um espírito de iniciativa, coragem, honestidade e, na sua forma mais elevada, de grande profundidade espiritual. Por meio do animus, a mulher pode tornar-se consciente dos processos básicos de desenvolvimento da sua posição objetiva, tanto cultural quanto pessoal, e encontrar, assim, o seu caminho para uma atitude intensamente espiritual em relação à vida.” (von FRANZ, p. 260 – grifos meus)
Em janeiro de 1928, Tarsila do Amaral queria dar um presente de aniversário ao seu marido Oswald de Andrade e pintou o ‘Abaporu’. Ao ver a obra, Oswald ficou impressionado e disse que era o melhor quadro que Tarsila já havia feito. Abaporu significa “homem que come carne humana”, o antropófago. Oswald escreveu o Manifesto Antropofágico e o Abaporu se tornou o símbolo deste movimento artístico, cuja proposta era deglutir e engolir a cultura europeia vigente e transformá-la em algo bem brasileiro. (Fonte: http://tarsiladoamaral.com.br/biografia/)
Abapuru (1928)
Ao pintar este quadro, Tarcila buscou romper com as regras clássicas e antigas da arte europeia para criar um estilo que expressasse nossa “brasilidade”. As cores são saturadas, numa referência as cores da bandeira brasileira (verde, amarela e azul).
Numa livre analogia, os membros grandes podem representar o esforço físico do trabalho braçal, o pé no chão em contato com a terra do povo brasileiro; a cabeça pequena pode simbolizar o pensamento crítico limitado da população daquela época.
O personagem apresenta um semblante triste como um traço da realidade dura e árida do período. O cacto como símbolo de resistência, indica a vegetação das regiões secas do Brasil. O símbolo da força e resistência do cacto em contraponto com a fragilidade e a tristeza do personagem.
Entre eles o sol, pintado como um olho que a tudo observa. Este sol hora fecunda o solo provendo o alimento, hora o fustiga matando a vida. O sol também é símbolo do masculino, do animus, da consciência e, para algumas culturas, o sol é o próprio Deus. 1]
Tarsila ressignificou a arte brasileira com este quadro. Ao pintar Abapuru, ela foi tomada por complexos[2] (inclusive do animus), expressou uma intensa simbologia através da força das imagens e cores, da contestação das formas, e produziu uma das mais importantes obras brasileiras.
Ainda flertando com obras antropofágicas, na obra The Destruction of the Father (1974) a artista plástica Louise Bourgeois nos apresenta a parte interna de uma boca que literalmente mastiga e tritura a figura do pai.
The Destruction of the Father (1974)
Uma rápida pesquisa biográfica: Louise Bourgeois nasceu em 1911 em Paris e recebeu o nome de seu pai (Louis). Sua carreira foi fortemente influenciada por eventos psicológicos traumáticos de sua infância, especialmente pelas tensões causadas pelo fato de que a amante de seu pai (tutora de Louise) residia com a família.
Sua arte é conhecida pelo conteúdo altamente pessoal, o desejo inconsciente, a sexualidade, os traumas infantis.
A Destruição do Pai (1974) representa uma mesa de jantar em família. Como uma declaração visceral de intenção, a obra revela um desejo arcaico e primitivo em mastigar e deglutir o pai.
Numa livre analogia, ela expõe seu complexo paterno, expressando seu desejo infantil, arcaico e primitivo na obra. A massa do pai está exposta numa língua-altar e não sabemos se ele será engolido ou cuspido. O pai triturado possui partes repulsivas a serem expelidas. Mas será que não existe uma parte do pai a ser digerida, até mesmo digna de ser apreciada?
No livro O Eu e o Inconsciente, Jung fala sobre a possessão do animus/anima:
“Mas quando os conteúdos do inconsciente, isto é, as próprias fantasias não são “realizadas”, dão origem a uma atividade negativa e à personificação; em outras palavras, o animus e a anima tornam-se autônomos. Ocorrem nessa eventualidade anormalidades psíquicas, estados de possessão de diversos graus, que vão desde os estados de ânimo e “ideias” até as psicoses. Todos esses estados se caracterizam por um fator desconhecido, por algo que toma posse da psique num grau maior ou menor, prolongando sua existência nociva ou repugnante contra todos os esforços de compreensão, razão e energia e proclamando desse modo o poder do inconsciente sobre a consciência: o poder soberano da possessão. Nestes casos, a parte possuída desenvolve em geral uma psicologia de animus ou anima.” (JUNG, 2018, p.115 §.370 – grifos meus)
A Destruição do Pai (1974) é um exemplo de uma mistura da possessão do animus negativo com o complexo paterno também negativo que permeia o inconsciente da artista.
Esta é uma mínima amostra de artistas que projetaram seu animus na arte. Tantas mulheres como Bibi Ferreira, Hilda Hist, Leila Diniz (modelo a desafiar a sociedade mostrando a barriga de grávida na praia), Ruth de Souza (1ª atriz negra brasileira), Antonieta de Barros (1ª parlamentar negra no Brasil), Chiquinha Gonzaga (1ª mulher a reger orquestra no Brasil), Coco Chanel (estilista), tantas mulheres famosas e anônimas, revolucionaram costumes e o status quo de uma época impulsionadas também pelo animus.
Mas fica uma reflexão: precisamos tomar cuidado para não supervalorizar a masculinização da mulher (o animus exacerbado). Pois, ao reprimirmos a sensibilidade do feminino, despertamos um forte desejo de controle do pensamento sombrio masculino. É preciso trabalhar os aspectos sombrios, reaver o equilíbrio da alma feminina neste mundo patriarcal, fortemente masculino, aproximar-se do Self. É de suma importância nos olharmos simbolicamente, resgatar e respeitar os valores da alma, pois o caminho para a Individuação também está na busca deste difícil equilíbrio em aprender a lidar com a tensão entre os opostos.
Por isso, a mulher precisa se conhecer, voltar a acolher o lado feminino da alma, entender, aprender e ressignificar seu animus nesta jornada inesgotável rumo a Individuação.
Daniela Euzebio, Membro analista em formação pelo IJEP.
Referências:
JUNG, Carl Gustav. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2016d (Obras completas de C.G.Jung, v. 7/2).
JUNG, Carl Gustav. Aion – Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 2013 (Obras completas de C.G.Jung, v. 9/2).
JUNG, Carl Gustav. O Espírito na arte e na ciência. Petrópolis: Vozes, 1985 (Obras completas de C.G.Jung, v. 15).
JUNG, Carl Gustav. O Homem e seus Símbolos, 2016. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2016
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio Editora (2019)
LISPECTOR, Clarice; Água Viva – Clarice Lispector (1998). Rio de Janeiro: Editora Rocco (1998)
[1] Dicionário de Símbolos – Jean Chevalier e Alain Gheerbrant – p. 836
[2]JUNG, Carl Gustav. O Espírito na arte e na ciência. Petrópolis: Vozes, 1985