Quantas vezes a vida não te respondeu na velocidade que você esperava? Quantas vezes a ansiedade bateu à sua porta porque você não conseguiu corresponder à uma expectativa, entregar uma demanda dentro do tempo que te foi exigido e que você concordou que deveria ser feito como se diz popularmente ‘a toque de caixa’?
Apesar do desconforto, é fato que nem sempre vamos conseguir dar conta das várias demandas da vida no prazo que gostaríamos. E, apesar de ser uma realidade muito palpável para todos nós, certamente encontraremos muitos julgamentos diante desses momentos: tanto nosso quanto dos outros. Ninguém quer se deparar com a sensação de impotência diante de uma tarefa.
Esses momentos em que simplesmente não conseguimos agir são muitas vezes julgados como preguiça, procrastinação, despreparo, falta de compromisso, entre tantos outros termos depreciativos. Porém, em alguns casos – e ouso a sugerir que talvez em boa parte deles – não há nada de errado com a pessoa, simplesmente não é hora da ação. Assustador pensar sobre isso num mundo onde nós somos avaliados pelas entregas, onde obtemos reconhecimento se conseguimos entregar além do que foi pedido. Um mundo onde aprendemos que o sucesso virá apenas através de sucessões de momentos de superação. Brincamos de ser super-heróis, queremos nos transformar em super-máquinas até a hora que esse ‘robô’ pedirá uma manutenção – e ficaremos chocados com esta falha no sistema.
Onde foi que nos perdemos de nós mesmos? Onde foi que nos desconectamos dos próprios ritmos da vida? Sabemos que esses ciclos existem, mas não lidamos muito bem com eles. Negamos a ideia de que, mesmo dentro desse ciclo, há uma ordem natural e superior a nós e que nem sempre vai ressoar com o que planejamos. Resistimos à ideia de que mesmo no ciclo há momentos de pausas. No ciclo há momentos de espera, há também surpresas. Mesmo tendo uma ideia de continuidade, os acontecimentos dentro dos ciclos podem não sair como o esperado, mas que no final, sempre corresponderão a uma ordem perfeita, nem sempre perfeita para nós. E assim é a vida. E assim que a alma ganha vida e nós vamos amadurecendo.
Pela própria ideia da enantiodromia – conceito muito trabalhado por Jung – sabemos que não é possível viver apenas dentro de uma única condição, despendendo toda a energia apenas para o mundo exterior, escutando e fortalecendo apenas o ego. Inevitavelmente seremos cobrados para olhar para dentro, a pausar, a reduzir nosso ritmo, a escutar e, em alguns casos, fortalecer também aspectos do nosso inconsciente. Nesta mudança de fluxo da libido, que para a psicologia analítica é energia psíquica, seremos convidados a dialogar com a imagem do Eremita em nós.
A libido não se move apenas para frente e para trás, mas também se move para dentro e para fora. Desta forma, Jung explica:
“Progressão e regressão podem ser relacionadas com a extroversão e a introversão da libido. (…) Progressão é um movimento de vida que camina para frente no sentido do tempo. Este movimento pode dar-se de duas formas diversas, ou de modo extrovertido, quando os objetos, (…)as condições do ambiente, influenciam preponderantemente a progressão, ou introvertidamente quando a progressão deve adequar-se às condições do Eu(…). A regressão também pode dar-se de duas formas, ou como um retrair-se do mundo externo (introversão), ou como um refugiar-se em vivências externas extravagantes (extroversão). (…) Esses dois modos diferentes de reagir, que chamei de extro e introversão, correspondem a dois tipos opostos de atitude.” (O.C 8/1 § 77)
O Eremita é uma imagem que nos chama muita atenção. Um homem de mais idade, simples em suas vestes, que sai para caminhar à noite levando consigo apenas um lampião. (em algumas representações é possível encontrar uma ampulheta no lugar do lampião remetendo ao tempo). Ele se encontra sozinho. Apenas ele e a natureza. Muitos associam esta imagem com o velho sábio ou até mesmo o Guru, mas na verdade, ele é o discípulo. Ele não está pronto, ele ainda não tem todas as respostas, ele é o homem em busca da sua iluminação, da reavaliação de tudo que viveu, da conscientização de todos os aprendizados, responsável pela sua própria trajetória.
Apesar da aparência, ele não é frágil. Ele usa da sua experiência de vida para resgatar a prudência. Ele não é aquele que já sabe tudo, mas que por ter vivido tanto, consegue ir mais profundo em si. Ele não é paralisação, apenas sabe que em alguns momentos, é preciso ir mais devagar pois do contrário pode tropeçar, cair, se machucar. Ele sabe. E se não sabe, tem este tempo para aprender.
“A prudência é a consciência constante de estar entre duas escuridões: a escuridão do ponto branco da síntese absoluta em cima, que ofusca e pede preparação lenta e gradual do espírito, a fim de suportar a sua luz sem ficar cego, e a escuridão do ponto negro, do subconsciente em baixo.” (Meditações sobre os 22 arcanos maiores do Tarot, p.229)
Neste momento, somos convocados ao esforço para tirarmos a clareza da escuridão – ficamos frente a frente com o desconhecido e também com o incognoscível a fim de conhecê-los. A descoberta daquilo que nem imaginamos que está tanto no nosso ego quanto na nossa alma. São dois desconhecidos se apresentando para nós.
A qualidade da experiência do Eremita em nós vai depender muito de como encaramos este momento. Ele será precioso se entendermos a grandiosidade da oportunidade deste encontro. Mas será angustiante se olharmos como impedimento, ou resistirmos a tarefa de olhar para dentro. A experiência do Eremita dependerá exclusivamente do olhar de cada um para este chamado.
Se engana quem pensa que a fase do Eremita é uma fase de paralisação. Quando entramos nesta fase, nossos ritmos são alterados. Para percorrer este caminho precisamos de calma, a caminhada tem que ser feita lentamente. Mas não é permito parar. Precisamos de prudência, tiramos as lições de tudo que vivemos. Temos tempo para reorganizar nossos pensamentos, para olhar para nossos sentimentos, apurar nossas percepções e reconectar com nossa intuição. É nesta hora que o mundo exterior se cala para que o mundo interior possa sussurrar seus preciosos ensinamentos. No tempo do Eremita nós precisamos ter a coragem de caminhar na escuridão da nossa alma, usando tudo que aprendemos ao longo das experiências, iluminando caminho que está por vir. Podemos dar conta apenas do próximo passo, devemos resgatar a fé que nossa alma saberá nos guiar. O mundo lá fora é silenciado junto das nossas ansiedades, sem isso, não seria possível encontrar o caminho que nos levará exatamente para o ponto onde devemos estar.
Quando falo sobre o resgate da fé eu não estou falando sobre ausência total de dúvidas, mas a intensidade da confiança que coloca a fé como resultado da união do ser humano entregue no seu Divino interior. Como consta no capítulo 9 do livro Meditações sobre os 22 arcanos maiores do tarô, “a fé que transporta montanhas é, pois, a união completa – ainda que por um instante – do homem com Deus”. (p.220)
“A fé qual ‘nada é impossível’ é o estado da alma no qual ‘Deus age, e a alma também age’. É o estado da alma concentrada na verdade, à qual Deus acrescenta a intensidade da certeza e o poder que tornam os milagres possíveis. Ela é a magia devida a união de dois magos: Deus e o Homem”. (Meditações sobre os 22 arcanos maiores do tarô, p.220)
É uma dança entre ter fé, agir, esperar, olhar para dentro e caminhar. É um processo lindo e muito transformador que nos mostra o quanto, no fundo, temos medo deste encontro que nos faz olhar a fundo para a nossa vida e a enxergar o que não faz sentido, quais caminhos não nos levarão para onde queremos, reconhecer o que está legal, o que precisa ser melhorado, quais lições já podemos transformar em sabedoria. Não aprendemos a conviver com ele no nosso dia a dia reservando um pequeno momento para estarmos a sós com a nossa voz interior. Resistimos à sua visita porque não queremos perder tempo de ação, não aceitamos os momentos de regressão da libido que nos garante saúde, energia para continuarmos caminhando também no mundo exterior. Tentamos enganá-lo e no fundo enganamos a nós mesmos, nos colocando sujeitos à uma paralisação obrigatória através de somatizações e adoecimentos.
Gostando ou não, este encontro é inevitável – é ele que nos mantém saudáveis em nossa caminhada. Por que resistimos tanto a ter este encontro, mesmo sabendo que não conseguiremos escapar dele? Talvez seja porque não sabemos o que nos espera; talvez porque exija de nós uma postura tão na contramão da loucura em que vivemos; talvez porque somos atormentados pela ideia de termos que passar por tudo isso cara a cara com a solidão.
Não há nada que alguém possa fazer, ninguém poderá sentir, pensar, se confrontar por nós. É um caminho onde ninguém pode andar por nós. É cada um na sua própria jornada, aprendendo a respeitar o próprio ritmo, na sua própria companhia.
Conforme vamos criando intimidade com esses períodos, ressignificamos a sensação de solidão necessária e passamos a confiar nos belos momentos de solitude – não devemos temer a nossa própria companhia pois nós nunca estaremos sozinhos nesta jornada. Não deveria existir sofrimento em silenciar as vozes externas para verdadeiramente nos escutarmos.
Quando o Eremita nos resgata, voltamos a entender a importância dos ciclos; começamos a enxergar que as coisas só acontecem porque respeitam uma ordem, e quase nunca temos controle sobre isso. Percebemos que cada área da nossa vida se encontra em um ponto diferente deste ciclo e compreendemos onde estamos e para onde queremos ir. Quando aceitamos Cronos em sua magnitude e resgatamos a fé na nossa própria caminhada podemos nos colocar à disposição para receber as bênçãos do seu filho Kairós. Abrimos as portas para os acontecimentos que podem verdadeiramente nos transformar. Abrimos espaço para o momento exato, o momento oportuno das grandes viradas, dos acontecimentos significativos, para as grandes transformações. Ligando os pontos desses pequenos e grandiosos momentos vamos compreendendo os mistérios da vida. Vamos amadurecendo no tempo simbólico das coisas.
São nos momentos de regressão da energia psíquica que o Eremita nos chama para caminhar. São nesses momentos que prestamos contas da nossa própria vida e reavaliamos se o que vivemos está de acordo com o que sentimos, com o que nossa alma nos pede. Sem isso não temos equilíbrio. Sem isso, não conseguimos despertar.
Tão prejudicial quanto evitar este encontro é não querer sair dele. Ele é profundo e é transformador porque envolve uma ação. Não é para ficar estagnado. Assim como não se constroem casas em cima de pontes nós não devemos viver isolados nem paralisados no nosso mundo interior. Aceitar que isso também faz parte do ciclo natural e saudável da vida é a nossa tarefa.
Devemos respeitar mais esses momentos de pausa – que na verdade gosto de chamá-los de espera ativa. Reduzimos a velocidade para conseguirmos captar mais os detalhes, mas seguimos caminhando. Não podemos deixar que a conduta moderna de alta performance nos paralise ou nos enfraqueçam pelo leviano julgamento desses momentos em que nossa libido está sendo empregada em outras tarefas.
Jung reforça a importância de se lançar para esta tarefa do mundo interior para a nossa própria evolução mas isso não pode ser encaixado como uma tarefa que dá para mensurar e agilizar por pura necessidade de não sair do controle. Pior ainda, não se pode ter garantias de resultados como se fosse possível prever e controlar essa caminhada e suas transformações. Somos tão vaidosos em nosso pequeno mundo ilusório que brincamos de deuses: nos sentimos fascinados por este outro universo em nós (o inconsciente) e ao mesmo tempo queremos controlá-lo, queremos que ele trabalhe para nós, no nosso tempo e do nosso jeito. Até este encontro está sendo desrespeitado pela nossa loucura atual.
Que o Eremita nos encontre e nos ensine a ter mais equilíbrio em nosso agir, sentir, planejar e viver. E que Kairós nos surpreenda toda vez que nos lançarmos com fé nos ciclos da vida.
Marcella Helena Ferreira – Membro Analista em formação do IJEP
Maria Cristina Guarnieri – Analista Didata do IJEP
REFERÊNCIAS:
JUNG, Carl Gustav, A energia psíquica, v.8/1 – Petrópolis: Vozes, 2013
MEDITAÇÕES sobre os 22 arcanos maiores do tarô – São Paulo: Paulus, 1989