imagem: Divulgação | DC Comics
Personagem da história em quadrinhos Sandman, escrita por Neil Gaiman, à luz da psicologia junguiana.
O Coríntio, vestindo sua roupa habitual, calça jeans, camiseta regata branca e seus óculos escuros de lentes redondas, sobe ao palanque para começar seu discurso. Se mostra confiante, vai falar para fãs do seu trabalho.
– Sabem, normalmente eu não falo em público. Mas a oportunidade de falar a todos vocês é muito boa para deixar passar. Porque vocês são pessoas especiais. Pessoas muito especiais. Nós somos os sonhadores americanos, seguimos na rodovia sagrada em direção à sabedoria pavimentada com ouro e sangue. E através dos caminhos nesse país justo, estamos matando pessoas.
A expressão nos rostos das pessoas assistindo a conferência é de excitação, mostram os dentes sorrindo enquanto ouvem as palavras de seu ídolo.
– Nós não fazemos por dinheiro, nós não fazemos por vingança. Nós não matamos pessoas anonimamente, os envenenando ou colocando cacos de vidro em comida de bebês. Nós não atropelamos pessoas nas calçadas. Nós não entramos armados em restaurantes e atiramos para todos os lados até que a polícia estoure nossos cérebros espirrando tudo nas batatas fritas!
O próprio Coríntio agora se mostra empolgado, como se tivesse alcançado o ápice do seu trabalho, recebendo o reconhecimento devido e aguardado por sua obra de mais de quarenta anos.
– Nós não assassinamos por lucro. Nós não matamos para o governo. Nós matamos para matar. Nós somos empresários numa área que está expandindo.
Nesse exato momento o Coríntio vê algo, alguém na verdade. Seu sorriso some do rosto. Ele enxerga, sentado junto com os participantes, Morpheus. O senhor do mundo onírico, Sonho, seu criador.
– Uh…
Ele continua seu discurso, mas sua postura agora é completamente diferente. Não existe mais confiança em sua atitude, seu rosto é de derrota. Continua seu discurso, mas sua voz já não transmite mais poder e sim uma certa raiva.
– Nós somos gladiadores, somos soldados, heróis e reis da noite. Nós somos os que vivem e isso é uma vitória. Nossa vitória. E nossa glória!
Encerra seu discurso com uma expressão de dúvida estampada na face.
(Essa é uma tradução livre da parte textual dos quadrinhos “Sandman” originais em inglês)
O universo mitológico criado por Neil Gaiman em Sandman é de uma riqueza e profundidade fenomenais. É claro que, como fã da série, minha opinião sobre o assunto está completamente contaminada. Mas acredito que mesmo para os que não gostem, ou não se identifiquem com ela, é possível concordar com essa afirmação se olharem com a mente aberta para sua obra.
Dentre os vários personagens de Sandman, um que chama a minha atenção de maneira especial é o Coríntio. Ele aparece, de certa maneira, numa parte bem pequena da história de Sonho. Mas o peso que ele carrega e a profundidade do personagem não podem ser subestimados. A relação dele com Sonho e o papel atribuído a ele por seu criador é de uma importância muito grande não só para os personagens à sua volta, mas para o próprio senhor da terra onírica.
Para mim, como estudante da psicologia analítica de Carl Gustav Jung, é muito clara a atitude de Morpheus quando ele concebe uma entidade que deverá ficar encarregada de fazer algo que ele mesmo não dá conta: assombrar o coração humano. Morpheus está tentando afastar de si tal responsabilidade. O Coríntio é um pesadelo, mas não somente isso. Segundo as palavras do próprio Sonho, ele deveria ser sua maior obra: “você era a minha obra prima, ou assim eu pensava (“You were my masterpiece, or so I thougth.) O Coríntio deveria ser o maior pesadelo já criado pelo senhor dos sonhos. “Um espelho negro feito para refletir tudo aquilo que o ser humano não confronta em si mesmo”, (“A black mirror, made to reflect everything about itself that humanity will not confront”) nas palavras do próprio Morpheus.
Morpheus projetou no Coríntio a responsabilidade de mostrar aos seres humanos seus conteúdos sombrios. Segundo Jung a sombra é um arquétipo, uma possibilidade de imagem herdada por todos os seres humanos. E é na sombra que encontraremos nossos aspectos negados, tudo aquilo que não gostamos sobre nós mesmos, aquilo que preferimos, mesmo que de maneira inconsciente, não entrar em contato, não saber sobre nós mesmos. Os conteúdos que serão escondidos por força do ego dentro dessa sombra irão ser diferentes para cada um de nós.
Para Jung, a sombra “é a parte negativa da personalidade, isto é, a soma das propriedades ocultas e desfavoráveis, das funções mal desenvolvidas e dos conteúdos do inconsciente pessoal” (JUNG, 2007b, p. 58)
Na sombra estão as tendências moralmente repreensíveis que fazem parte de cada um de nós. Porém, nela estão também as possibilidades férteis da psique, nossos instintos, nossas reações, nosso impulso criativo. Ela não pode simplesmente ser deixada de lado.
“…a sombra, porém, é uma parte viva da personalidade e por isso quer comparecer de alguma forma. Não é possível anulá-la argumentando, ou torná-la inofensiva através da racionalização. ” (JUNG, 2008d, p. 31)
Quando Morpheus cria o Coríntio ele tenta jogar para fora de si, num outro ser os seus próprios aspectos sombrios. Sua obra de arte, a maior de todas, é um pesadelo que servirá de espelho e deverá mostrar ao ser humano que ele não é feito somente de coisas consideradas boas e que é importante aceitar e entrar em contato com sua porção considerada má, negativa, negada e escondida. Porém Morpheus não atenta para um detalhe extremamente importante: como ficarão os seus próprios aspectos sombrios? É possível se livrar da própria sombra de alguma maneira? Tenho certeza de que, quando criança, todos nós tentamos alguma vez fugir, correr de nossa própria sombra no chão. É possível fazer isso? O máximo que conseguimos é deformar num grau maior ou menor a sombra que nos segue no chão ou mudar nossa posição relativa a ela. As vezes ela aparece na nossa frente, as vezes do nosso lado, atrás de nós ou ainda logo abaixo dos nossos pés. Mas ela sempre está lá.
A natureza se encarrega de equilibrar as coisas por mais que façamos esforços na direção contrária, e a tentativa de Sonho de se livrar de seus próprios aspectos sombrios obviamente falha. O Coríntio escapa dos domínios do sonhar e se materializa entre nós, humanos. Toma vida própria, como um complexo. Sonho não tem mais controle sobre ele. Ele deixa de ser um pesadelo, deixa de ser somente um sonho ruim e se torna ação, entre nós vira um assassino em série devorador de olhos humanos.
Nossos sonhos têm, entre outras funções, a de equilibrar nossa energia psíquica, eles são compensatórios. No momento em que o Coríntio passa a viver entre nós, ele não tem mais essa função, não equilibra mais a psique de nenhum ser humano e nem de seu senhor, e passa inclusive a matar pessoas reais em nosso mundo se tornando uma espécie de ídolo entre outros assassinos.
É importante olhar nas entrelinhas quando lemos o trabalho de Gaiman. Podemos encontrar num certo momento da história uma cena curiosa, curta, mas que traz elementos importantes sobre o assunto. Um dos assassinos fãs do Coríntio, um homem de nome Nathan, ataca uma menina. Quando está prestes a abusar sexualmente da garota, Morpheus intervém e o coloca para dormir para que ela possa escapar. Enquanto ela foge, Nathan dorme e sonha. Em seu sonho, ele, um homem adulto, age de maneira infantil enquanto brinca com crianças em um campo verde num dia ensolarado. O sol, como num desenho infantil, tem um rosto, boca e olhos, e está feliz, sorrindo. As crianças correm até Nathan e pedem para ele brincar com elas, prometem que nunca irão rir dele, humilhá-lo. Ele se torna amigo das crianças e ainda se desculpa por tê-las machucado. Elas o perdoam e todos brincam juntos. A cena termina com a frase “É o sonho mais maravilhoso que ele já teve”. Sonho não mata Nathan, o abandona dormindo e se retira para cuidar de seus assuntos. Só o que Morpheus pode fazer é dar a Nathan algo com o que sonhar.
Mas vamos voltar ao Coríntio. Então ele é um pesadelo que tem bocas no lugar dos olhos. São bocas funcionais, com dentes que mastigam. São olhos que devoram e bocas que enxergam. Ele as usa para devorar os olhos de homens jovens ou adultos e dessa maneira se apropria das memórias deles. Qual a sua intenção quando faz isso? Porque precisa de lembranças de outras pessoas?
Ele não possui lembranças próprias, não possui uma história própria. Busca satisfação na história dos outros, mas ela nunca será real. Morpheus é o culpado por isso, o criou assim, adulto e sem lembranças. O Coríntio nunca teve a chance de se desenvolver completamente, lhe falta algo, e devorando a memória de outros ele busca inconscientemente preencher esse vazio. O Coríntio é só sombra, lhe falta todo o resto.
Quando se materializa em nossa dimensão, no mundo dos despertos, quer aprender mais e mais sobre dor, guerra e morte. Não é possível aprender de verdade no sonhar, no mundo onírico. Lá sua função era compensar, através dos pesadelos, a parte sombria do ser humano. Para ele a dor no sonho não é real, a morte não é real. Ele precisa de mais, ele precisa saber como é a dor e a morte na realidade humana. Não quer ser apenas uma ferramenta de Morpheus, quer ter sua própria existência. Dessa maneira ele foge do sonhar e vem para o nosso mundo onde ele pode aprender tudo isso com os seres humanos.
Depois de muito tempo à solta, causando morte e dor em nosso mundo, finalmente Morpheus o encontra novamente. É preciso encarar a sombra, olhá-la de frente e entender que ela é parte do nosso ser. Sonho diz ao Coríntio o que ele se tornou: apenas um assassino, apenas mais uma coisa que causa medo nas pessoas. Supostamente ele deveria ser mais do que isso, maior do que isso. Nesse momento o Coríntio retira seus óculos, mostra seus olhos-bocas à Morpheus como se o fosse assustar, mas esquece que está frente a frente com seu criador. Ele tenta atacar Morpheus com uma faca, porém Sonho é mais poderoso e sabe que não é preciso lutar com sua sombra. Sabe que o Coríntio é um aspecto seu e assim como o criou pode descria-lo. E assim o faz. Ele simplesmente o desintegra com seu pensar deixando sobrar sobre o pó do que era seu corpo somente o crânio que ainda mantem os dentes do lugar dos olhos.
Porém o senhor dos sonhos sabe que não acabou, termina dizendo enquanto olha diretamente para o crânio, numa cena que lembra Hamlet, de Shakespeare: “a próxima vez que criá-lo, você não será tão falho e fraco, pequeno sonho”. Ou seja, Morpheus sabe que será necessário criar outro, ou melhor que sempre será necessário ter uma sombra para cuidar e enviar os pesadelos ao nosso mundo, para mostrar ao ser humano seus aspectos rejeitados. Acabara de desfazer sua criação, mas já pensava em refazê-la. É preciso ser, e é preciso não ser essa sombra.
O Coríntio, que supostamente era para ser apenas um aspecto de Sonho, controlado por ele, se tornou autônomo, se rebelou, fugiu do sonhar e passou a agir de acordo com sua própria vontade. Assumiu sua forma entre nós como um instinto agressivo polarizado, buscando a morte e a dor para aplacar seu vazio. Descontrolado como um complexo constelado que nos assume e nos transforma em seres diferentes do que estamos acostumados a ser. Se alguma vez esse complexo for uma expressão fiel da nossa própria sombra, teremos aí nossos próprios Coríntios se manifestando através de comportamentos e atitudes violentas e reais.
Não devemos negar nossa sombra, é preciso entendê-la, dialogar com ela e integrá-la à nossa totalidade. Morpheus tentou fazer exatamente o contrário agindo exatamente como os humanos. Tentou delegar sua sombra à outro, como se não fosse parte sua, e só percebeu seu erro muito mais tarde quando ela não estava mais sob seu controle. Mas ainda assim percebeu seu erro, o reintegrou à si mesmo quando o desmaterializou de nosso mundo. Irá criá-lo novamente, acredita que entendeu onde errou. Mas isso é assunto para outro texto, quando irei tratar do segundo Coríntio.
Deixo para o final o aspecto mais controverso desse personagem, Neil Gaiman afirma em “The Sandman Companion” que o Coríntio é homossexual. Isso talvez fique subentendido na própria história pelo fato dele somente se alimentar de olhos de homens. A minha visão não leva em consideração a sexualidade em si do personagem, mas deixar esse dado de fora seria injusto e deixaria uma análise que já é curta, ainda mais incompleta. No meu ponto de vista, é natural que ele busque satisfazer seu vazio existencial com memórias e lembranças de homens porque ele foi concebido por Morpheus como tal. Como um ser limitado por sua natureza, criado dessa maneira, não busca a possibilidade de apreender o que há na mente de homens e mulheres. O Coríntio é lateralizado, não enxerga a alteridade, para ele só importa o desejo próprio. Seria estranho na verdade se não fosse assim, se seu comportamento não fosse exclusivo. E esse comportamento exclusivo e unilateral não está de maneira alguma atrelado à homossexualidade ou à heterossexualidade, é apenas um aspecto de todo ser humano que muitas e muitas vezes é renegado à sombra. Não podemos esquecer também que na visão de Jung a sombra determina como se dão as relações entre pessoas do mesmo sexo. O Coríntio, sendo apenas sombra, não teria como, e nem porque se relacionar com mulheres.
“… a sombra é responsável pelas relações entre pessoas do mesmo sexo. Estas relações podem ser amistosas ou hostis, dependendo de vir a sombra a ser aceita e incorporada de modo harmonioso à psique, ou rejeitada pelo ego e banida para o inconsciente. Os homens tendem a projetar os impulsos de sua sombra rejeitada em outros homens, de modo que, entre eles, surgem com frequência, sentimentos negativos. O mesmo ocorre com as mulheres. ” (HALL;NORDBY, 1980)
O Coríntio é a sombra rejeitada, expulsa de Morpheus. Não está integrado com seu senhor, portanto age de maneira impulsiva e violenta, matando e devorando olhos e lembranças humanas.
A reflexão que podemos fazer com relação ao comportamento de Morpheus fica muito clara: não é possível se livrar da própria sombra, não é possível negá-la. Tentar transferir a responsabilidade por nossos conteúdos considerados negativos pode parecer uma boa ideia num primeiro momento, mas é preciso saber que esses conteúdos irão voltar de alguma maneira a nos assombrar. E muitas vezes é quando a sombra nos aparece de maneira mais arredia, mais nociva, que precisamos olhá-la de frente e aceitá-la como parte integrante do nosso ser. Somente assim será possível aproveitar o que ela tem a oferecer de bom para a nossa busca infindável pelo equilíbrio.
(As fotos utilizadas para ilustrar o texto fazem parte da obra The Sandman de Neil Gaiman e são propriedade da DC COMICS.)
*Jose Luiz Balestrini Junior, Psicólogo, analista junguiano em formação pelo IJEP, Sifu (mestre) de Kung Fu, e-mail: balestrini@lungfu.com.br
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Referências
Hall, C. S.; Nordby, V. J. (1973) Introdução à psicologia junguiana. São Paulo, Cultrix. (1980)
Jung, C.G. Psicologia do Inconsciente. Petrópolis, Vozes. (2007b)
_________. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. (OC, vol. 16). Petrópolis: Vozes. (2000b)