Desde meu doutorado, tenho pesquisado as histórias de vida como método. Entender a proposta do psiquiatra Carl Gustav Jung (1875-1961) neste contexto foi o principal motivo que me levou a me aprofundar em Psicologia Junguiana, na qual concluí a especialização em 2014 no Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep).
Na época da conclusão do curso, ganhei de natal o famoso livro vermelho de Jung (JUNG, 2010). Confesso que na época o folheei, encantada, mas não me senti apta a digeri-lo comme il faut. Parecia-me que, de Jung, eu ainda não havia compreendido o revealing remark, a observação reveladora como o maior de todos os narradores da The New Yorker, Joseph Mitchell (1908-1996) postulava (MITCHELL, 2003). Não raro, Mitchell levava até três anos para escrever perfis de nova iorquinos para esta revista estadunidense que, desde 1925, se não lançou o perfil (profile) como gênero, reúne até hoje a nata deste gênero jornalístico literário (REMNICK, 2000, tradução nossa). Como disse o cineasta João Moreira Salles, “a ´observação reveladora´é aquela que surge absolutamente singular, dita provavelmente pela primeira vez, para surpresa e alegria do próprio falante. É uma palavra nova e inviolada, trazida à tona pela feliz empatia entre quem fala e quem escuta” (SALLES, 2003, 152).
O que estaria no âmago da vida e obra de Jung? Aliás, ele dizia que não tinha criado uma teoria ou sistema. “Freud tinha uma ´teoria; eu não tenho ´teoria´, mas descrevo fatos. Eu não teorizo sobre o surgimento das neuroses, mas descrevo o que existe nas neuroses; também não tenho uma teoria sobre os sonhos, apenas indico o método que uso e os possíveis resultados (JUNG, 2018, p. 17-18). Assim, em 1º. de julho de 2016, iniciei os atendimentos clínicos, a princípio recebendo em meu consultório os pacientes encaminhados pela Clínica Ijep (https://www.ijep.com.br/index.php?sec=pags&id=232) e, desde então, recebendo cada vez mais analisandas e analisandos.
Mesmo depois de tanto estudar a prática junguiana, e já apoiada pela experiência de meu consultório, eu ainda tinha a inquietação de compreender o que havia movido Jung a trilhar seu caminho. Em 2018, adquiri a trilogia das cartas de C. G. Jung. Comecei a ler o volume 1 meio sem interesse, mas na metade já estava encantada com a escrita informal e erudita de Jung, como ele conseguia abordar temas de grande complexidade de um jeito absolutamente simples, direto, criativo e fluente. Como os diários e as entrevistas em formato pingue-pongue, as cartas nos dão a ilusão de estar ouvindo diretamente o outro.
Na carta à pastora Dorothee Hoch, datada de 28 de maio de 1952, veio o insight. “A suposição de que sou vítima de um complexo pessoal pode ser levantada, quando se sabe que sou filho de pastor (…) É verdade que eu não gostava de teologia, porque ela colocava problemas para meu pai que ele não conseguia resolver e que eu considerava injustificados” (JUNG, 2018, p. 240). Em sua resposta, Jung refutou essa hipótese: “Mas eu tive um bom relacionamento pessoal com meu pai – portanto nenhum complexo do tipo comum” (JUNG, 2018, p. 240). Teria ele, contudo, por meio de seus experimentos e obra, vivido a vida não vivida de seu pai?
Se há algo que podemos dizer com segurança é que a perspectiva junguiana é ancorada no universo cristão. “A ética depende da decisão suprema de uma consciência cristã, e a própria consciência não depende da pessoa apenas, mas igualmente da contrapartida da pessoa, isto é, Deus” (JUNG, 2018, p. 24). Não por acaso, o fenômeno religioso e a representação das imagens de Deus ocupam um lugar central em suas reflexões e, por extensão, nas suas cartas, em particular a partir do lançamento de seu livro Aion, em 1951 (JUNG, 2012a), e, sobretudo, Resposta a Jó,em 1952 (JUNG, 2012b). O interesse específico de Jung estava nas representações primordiais coletivas que estão na base das diversas formas de religião, que ele chama de imagens arquetípicas. Haveria na psique humana uma potencialidade que impulsiona o ser humano a procurar e a se relacionar com o transcendente, seja o nome que se dê para ele/ela, em sua miríade de imagens antropomórficas cujas representações vão mudando de acordo com o tempo, o espaço e a cultura. “O termo ´Deus´ (…) expressa uma imagem ou conceito verbal que sofreu muitas mudanças ao longo de sua história. Em tal caso não temos possibilidade alguma de mostrar, com a mínima parcela de certeza que seja – a não ser a da fé – se tais mudanças se referem apenas às imagens e aos conceitos, ou se atingem o próprio inefável” (JUNG, 2012, § 555). O foco de Jung, portanto, nunca foi de natureza teológica, mas psicológica. Em outras palavras, as máscaras da eternidade, símbolos que nunca serão conhecidos totalmente, como diz o mitólogo estadunidense Joseph Campbell (1904-1987), porque velam o indizível (CAMPBELL, 1992, 2008a, 2008b, 2010).
Assim, teria a pastora Dorothee Hoch, em 1952, apontado a motivação que teria levado Jung a desenvolver sua obra, que culminaria em Resposta à Jó? Em seu livro de memórias, editado pela analista suíça Aniela Jafé (JUNG; JAFÉ, 1989), Jung conta que em 1887, aos 12 anos, teria tido uma experiência numinosa e começado a sentir dúvidas em tudo o que seu pai dizia. “Suas palavras eram insípidas e vazias, tal como uma história contada por alguém que nela não crê, ou que só a conhece por ouvir dizer. Queria ajudá-lo, mas não sabia como. Uma espécie de pudor impedia que lhe contasse minha própria experiência, ou me imiscuísse em suas preocupações pessoais” (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 50).
Mais tarde, ao redor dos 18 anos, Jung narra que teria tentado por várias vezes conversar com seu pai sobre o assunto, “sempre com a secreta esperança de fazê-lo sentir algo da graça maravilhosamente eficaz e ajudá-lo em seus conflitos de consciência” (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 50). Ele continua: “Infelizmente nossas discussões jamais chegavam a uma solução satisfatória. Elas o irritavam e entristeciam. ‘Pois bem – costumava dizer – você só quer pensar. Mas não é isso que importa; o importante é crer. ‘E eu pensava: não, é preciso experimentar e saber; e acrescentava: ´Dê-me essa fé. Ele se erguia e ao se afastar encolhia os ombros, resignado” (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 50).
Teria Jung, por meio de sua prática, tentado dar uma resposta à inquietação não integrada pelo seu pai, um pastor protestante que paradoxalmente não tinha fé para compartilhar, pregando fazer o que ele mesmo não fazia?
A resposta ao pai talvez esteja expressa na memorável entrevista que Jung concedeu em sua casa em Zurique ao jornalista britânico John Freeman (1915-2014), em 1959. Freeman conduzia uma série chamada Face to Face para a BBC 4. Um ano e meio antes de falecer, ao ser questionado por Freeman se acreditava em Deus, Jung declarou “I don´t need to believe. I know” (FREEMAN, 1959). Em tradução livre: “Eu não preciso acreditar. Eu sei.” Transcender o ego e se render ao self, essa contrapartida do indivíduo que é uma das premissas da análise junguiana, é a prova suprema, por assim dizer, do processo de individuação. Ou como Jung disse, com outras palavras, no terceiro volume das cartas em resposta a um primeiro anista da Northwestern University sobre a “vontade de Deus”: “É o fator que decide em última instância quando tudo está dito e feito. É essencialmente algo que não podemos conhecer de antemão. Só o conhecemos após o fato”. (JUNG, 2018, p. 25). A própria noção de self nasce, em alguma medida, dessa representação divina, a Imago Dei: uma “esfera infinita, cujo centro está em toda parte, e a circunferência em parte nenhuma” (JUNG, 2018b, p. 16).
Jung diz na primeira linha de suas memórias, “Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou” (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 19). Se o que o movia era viver a vida não vivida do pai, justificando por meio da experiência e do saber que não era preciso fé para compreender o mistério supremo da vida, parece por esta afirmação que ele o conseguiu, valendo-se da gnose e do empirismo científico, permitiu que o numinoso, que é simultaneamente tremendo, fascinante e misterioso, estivesse presente constantemente no final da sua existência.
Para mim, a questão não é saber se esse insight que me tomou é verdadeiro do ponto de vista factual ou não. Como Jung também disse na abertura de suas memórias, “essa é a minha aventura, a minha verdade” (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 19). Do ponto de vista simbólico, essa hipótese fez sentido e me ajudou a entender melhor o cerne da busca de minha representação de Jung. Agora, finalmente, posso me aventurar no sagrado livro vermelho. Minha leitura programada para 2019 será o Liber Novus.
Dra. Monica Martinez, analista em formação do IJEP – Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, especialista em Psicologia Junguiana, jornalista e escritora. Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo. E-mail: analisejunguianasp@gmail.com.
Referências
CAMPBELL, J. As máscaras de Deus: mitologia primitiva. São Paulo: Palas Athena, 1992.
CAMPBELL, J. As máscaras de Deus: mitologia ocidental. 2. ed. São Paulo: Palas Athena, 2008a.
CAMPBELL, J. As máscaras de Deus: mitologia oriental. 6. ed. São Paulo: Palas Athena, 2008b.
CAMPBELL, J. As máscaras de Deus: mitologia criativa. São Paulo: Palas Athena, 2010.
FREEMAN, J. Face to face. Switzerland/LondonBBC 4, 1959. Disponível em:
JUNG, C. G. O livro vermelho: Liber Novus. 1. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
JUNG, C. G. Cartas de C. G. Jung: volume III, 1956-1961. 1. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018a.
JUNG, C. G. Cartas de C. G. Jung: volume II, 1946-1955. 1. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018b.
JUNG, C. G.; JAFÉ, A. Memórias, sonhos e reflexões. 11. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
MITCHELL, J. O segredo de Joe Gould. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
REMNICK, D. Life stories: profiles from the New Yorker. New York: Random House, 2000.