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O herói de mil gols: os sacrifícios (e a húbris) de Edson para eternizar Pelé

O herói de mil gols: os sacrifícios (e a húbris) de Edson para eternizar Pelé

O herói de mil gols: os sacrifícios (e a húbris) de Edson para eternizar Pelé

Genius era o termo usado pelos romanos para designar o chamado da natureza universal (o “espírito”) que anseia se manifestar por meio da vida de um indivíduo. Os gregos diziam daimon. Cada ser humano, segundo essas antigas civilizações, teria o seu próprio “gênio”. Nas palavras do escritor alemão Thomas Mann: “O gênio pode estar encerrado numa noz e, mesmo assim, abarcar a totalidade” (apud HILLMAN, 1997, p. 9). Não é sem referências históricas, mesmo que inconscientes, que se classifica Pelé de gênio: seus feitos com a bola no pé — incluindo mais de mil gols — foram capazes, aos olhos de muitos, de “abarcar a totalidade”.

Minha relação com Pelé me remete à ideia que faço de períodos pré-históricos, quando a memória dos heróis da tribo, guerreiros que asseguravam a sobrevivência, as conquistas e a reputação da coletividade, eram transmitidas à noite, em volta de fogueiras mágicas e de forma oral. Eu era bem pequeno e escutava, encantado, meu pai falar sobre os feitos de Pelé. Quando nasci, Pelé já estava aposentado dos gramados, e eu via Edson, geralmente “à paisana”, desvestido de seu gênio, em comerciais ou programas de TV. Mas, como já vivíamos tempos modernos, meu pai alugou uma fita cassete chamada “Isto é Pelé”, um documentário de 1974, para que eu visse, com meus próprios olhos, as histórias que ele me contava. O futebol de Pelé era mesmo mais que espetacular. Aos meus olhos, era, de fato, numinoso.  

Jung escreveu: “Na análise final, só contamos para alguma coisa por causa do essencial que encarnamos e, se não encarnamos isso, a vida é desperdiçada” (apud HILLMAN, 1997, p. 10). Edson Arantes do Nascimento encarnou o seu gênio, o seu essencial, e foi também capaz de, na medida do possível, proteger-se do peso arquetípico que seu daimon trazia: sempre que podia, reforçava que Edson, embora responsável pelo “nascimento” de Pelé, era um ser distinto do mito que concebeu.

James Hillman, em sua obra, “O Código do Ser”, traz histórias de inúmeras personalidades proeminentes em diversas áreas da atividade humana, como artes, política e esportes, para mostrar que, em grande medida, suas vidas pareciam, desde o ventre materno (quiçá até antes disso), designadas ao caminho que percorreram e às obras que realizaram. A maioria dos casos trata de pessoas que, aparentemente, não tiveram escolha, senão “encarnar o seu essencial”, tamanha a força com a qual ele se lhes impunha.

Para Jung, todavia, tão importante quanto realizar o mito de nossas próprias vidas seria proteger, ao máximo, a consciência da volúpia dos conteúdos inconscientes que alimentam de energia esse daimon a que se refere Hillman. Por isso, tão importante quanto não ignorar e não negar o genius, dando-lhe vazão, seria, na medida do possível, compreendê-lo, em seu aspecto consciente e inconsciente, o que pressupõe, também, reconhecer que ele não é nosso (nós é que somos dele) e que nem tudo nele nos é dado a conhecer. Por isso, para Jung, tão importante quanto viver o essencial, é viver o homem mundano, mais instintivo e menos celestial e o único capaz de manter os pés em terra firme (Cf. JUNG, 1999, §36-38).

Essa não é uma tarefa nada fácil, e Edson não cansava de dizer que só Deus poderia explicar o advento de Pelé e a vida que esse gênio proporcionaria ao menino pobre de Três Corações (MG). O crédito que Edson atribuía a Deus, para explicar Pelé, pode ser entendido, sob a ótica junguiana, como uma medida de higiene psíquica indispensável para que pudesse carregar esse mítico peso nos ombros (Cf. JUNG, 2013, §792-794). Em outras palavras, ao interpretar dessa maneira seu milagre pessoal, Edson assegurava o indispensável quinhão de reconhecimento à própria inconsciência. Não tê-lo feito poderia ser um fardo pesado demais para sua sanidade e as consequências psicológicas poderiam ser trágicas, como atestam a vida de inúmeros outros gênios da humanidade — independentemente da área — que se confundiram com “seus” daemones.

A submissão autoconquistada de Edson

Paulo Roberto Falcão, jogador brasileiro de futebol de renome internacional, certa vez, disse que o atleta morria em duas oportunidades: na aposentadoria e na morte de fato. O estudo da psicologia analítica nos obriga a concordar com Falcão e acrescentar, à sua reflexão, que não apenas os atletas, mas todos os seres humanos morrem mais de uma vez ao longo de suas vidas. Ao menos, assim deveria ser. Afinal, se não fôssemos capazes de diversas mortes e renascimentos em vida, como seria possível suportar as mudanças que o tempo e as experiências nos impõem? Por isso, é perfeitamente possível dizer que se morre simbolicamente, como no caso de uma aposentadoria, mais de uma vez ao longo da existência e que essas mortes são as grandes responsáveis pela continuidade renovada da vida.

Joseph Campbell atesta essa tese: “Apenas o nascimento pode conquistar a morte — nascimento não da coisa antiga, mas de algo novo”  (CAMPBELL, 2007, p. 26). Não é sem sentido que Edson tem Nascimento no nome. Para que Pelé seguisse vivo, mesmo após a aposentadoria, como porta-voz do legado de seu daimon, Edson precisou se sacrificar (e renascer) inúmeras vezes. O texto de Campbell segue assim, confirmando o que escrevemos: “Dentro do espírito e do organismo social deve haver — se pretendemos obter uma longa sobrevivência — uma contínua ‘recorrência de nascimento’ [palingenesia] destinada a anular as recorrências ininterruptas da morte”. 

O autor de “O Herói de Mil Faces”, contudo, vai além: “… o trabalho de Nêmesis [deusa grega do equilíbrio, que castiga os excessos] — caso não nos regeneremos — se realiza por intermédio das próprias vitórias que obtemos: a maldição irrompe da casca de nossa própria virtude” (CAMPBELL, 2007, p. 26).  É o êxito que nos leva aos excessos e à queda. 

Para Campbell, “o herói é o homem da submissão autoconquistada”. Submissão ao que? À morte. Só a submissão à morte nos permite nascer de novo, renovados em humildade, e é preciso ser um herói para confiar no renascimento e se entregar, humildemente, ao “fim”.

Edson teve uma longa vida, o que significa dizer que ele sobreviveu inúmeras vezes às vitórias e conquistas a que foi designado por seu gênio. Se sobreviveu, foi porque soube morrer para poder nascer de novo, ao menos algumas vezes. Contudo, apesar dos méritos psicológicos que inferimos até aqui, é possível supor, naturalmente, que Edson nem sempre foi capaz de tal submissão. Suas “falhas” são o que nos permitem diferenciá-lo mais claramente de seu mito e aproximá-lo do homem comum, sobretudo quando esse se perde de seu lado mundano e se envaidece do próprio daimon. Essas falhas também constituem a exceção que confirma a regra; são a sombra do herói, a húbris (insolência aos deuses) que o torna mortal — e todos, sem exceção, morreremos para esta vida.

Mas o leito de morte também pode ser uma sala de aula ou o cenário de uma jornada heroica. O câncer de cólon de Edson, descoberto pouco mais de um ano antes de seu falecimento, mas com o qual convivia há mais tempo, seguramente, pode ter sido um adversário indispensável ao seu desenvolvimento pessoal. Em termos junguianos, pode ter sido indispensável em seu processo de individuação — quem sabe? Ao chamar, a seu leito de morte, seus netos Octávio e Gabriel, filhos de Sandra, a quem rejeitou publicamente, e lhes pedir perdão, Edson possivelmente completou sua última e heroica jornada nesta vida, conquistando a derradeira submissão e, por que não, coroando a eternidade de seu gênio, de seu mito: Pelé. 

A quem essa reflexão sobre o significado para a vida de Edson Arantes do Nascimento possa ter soado exagerada ou generosa demais, deixo as palavras de Jung, registradas ainda nas primeiras linhas de sua autobiografia: “O que se é, mediante uma intuição interior, e o que o homem parece ser sub specie aeternitatis só pode ser expresso através de um mito” (JUNG, 2021, p. 25).

Wagner Hilário – Membro Analista em Formação 

E. Simone Magaldi — Membro Didata

Bibliografia

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Pensamento, 2007

HILLMAN, James. O Código do Ser — uma busca do caráter da vocação pessoal. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.

JUNG, C. G. A natureza da psique. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

_________. Memórias, Sonhos e Reflexões. 35ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2021.

_________. Psicologia do Inconsciente. 12ª ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

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