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O mito de Hebe e suas reverberações na sociedade contemporânea

Hoje em dia vivemos numa sociedade que cultua a beleza, a juventude e o hedonismo; com isso acabamos nos moldando em torno de ideias que o envelhecer seja algo ruim e depreciativo. Para compreender e tentar ampliar esse tipo de construção social e nos apropriar dos símbolos da mitologia como um dos meios de formar imagens, e assim, conseguir trazer a reflexão condutas atuais que são arquetípicas, tais como a juvenilidade eterna. Logo, o presente artigo visa visitar o Mito de Hebe e desenvolver à luz da psicologia analítica com o enaltecimento da juventude e beleza na sociedade atualmente.

A contemporaneidade nos traz possibilidades incríveis de longevidade a partir da tecnologia e avanço da medicina, hoje podemos viver em situações que há muito pouco tempo atras seriam sentenças de morte. Mas tanta benesse vem junto com um ônus de achar que devemos conservar um padrão estabelecido por algum sintoma social de que aquele modelo é o bom. Isso se dá com a juventude, parece que ser jovem – ou aparentar – é o que se estabeleceu no consenso social como meta para o envelhecer. E hoje temos cirurgias plásticas, técnicas estéticas e cremes milagrosos capazes de oferecer tudo isso e um pouco mais, nada que seja condenável, até se tornar um comportamento gerentofóbico.

A gerentofobia, segundo o site da Academia Brasileira de Letras é por definição: “Medo excessivo de envelhecer ou do processo de envelhecimento; aversão ou desprezo por tudo que se refere à velhice ou pelas pessoas idosas. [De geront(o)- (do grego gérōngérontos ‘velho, ancião’) + -fobia.]”. Pessoas que acabam por tomar esse comportamento patológico se submetem a uma infinidade de procedimentos e sua vida acaba se pautando por esse medo, então se coloca em risco justamente para não lidar com o envelhecimento e o que o envelhecer traz consigo. 

Ainda, sem registro no CID-10 (Classificação Internacional das Doenças), a gerontofobia não é considerada diagnóstico. No entanto, é possível percebê-la na conduta do indivíduo. ‘Chamamos de fobia porque é um medo excessivo e desproporcional ao risco oferecido por tal coisa. No caso, o envelhecimento. Pessoas que discriminam idosos, que estão preocupadas demais com a aparência, adultos que se comportam como jovens são exemplos. É claro que não podemos generalizar, pois um conjunto de fatores é que vai determinar se o que você tem é gerontofobia ou não’, explica Dinah Akerman, psiquiatra pela USP (Universidade de São Paulo) (DINIZ, 2014)

Assim sendo, as pessoas adotam comportamentos e atitudes que não estão de acordo com a idade, isso se dá por uma infantilização e condutas que se mostram ausentes de uma responsabilidade de uma pessoa adulta; obviamente aliada a grande necessidade de aparentar juventude, e aí entram os procedimentos estéticos que acabam por ser excedentes as necessidades e consumam uma desconfiguração das características que personificavam aquele indivíduo. “Uma pesquisa realizada pelo Instituto Qualibest em 2017 revela que 9 em cada 10 brasileiros têm medo de envelhecer.” (ALMEIDA, 2020) Todos os procedimentos seguem uma determinada ordem, e com isso, as pessoas estão ficando com as mesmas facetas. O bonito é se enquadrar nesse padrão estético de boca de uma determinada atriz, olhos da tal modelo, contorno de face de tal estrela do cinema e nisso as pessoas seguem um mesmo padrão igualando assim, um modelo de juventude as pessoas maduras, que não aceitam esse processo de envelhecer que é associado a morte. “Estamos famintos pela perpetuidade de algo que nunca existiu.” (WATTS, Pág 41)

Quando trazemos a análise pelo viés junguiano, podemos associá-los aos mitos, desta forma fica mais palatável a nossa percepção tal fenômeno, pois é uma temática que paira na humanidade desde sempre o que modifica a tônica e como isso se desenvolve é o espírito do tempo – no caso é tudo que envolve o aqui e agora. Os mitos são bastante esclarecedores às temáticas humanas e a essa necessidade de manter a juventude a qualquer custo, como se a aparência fosse capaz de pausar o tempo, temos o mito de Hebe.

Das núpcias legítimas de Zeus e Hera nasceram Hebe, Ilítia e Ares.  O nascimento de Hefesto será tratado à parte, logo após se falar de Ares. Hebe, em grego” Hbh (Hébe), personificação da juventude. Estava encarregada, no Olimpo, da mansão dos deuses: servia o néctar aos imortais, antes do rapto de Ganimedes, preparava o banho de Ares e ajudava Hera a atrelar seu carro divino. Divertia-se dançando com as Musas e as Horas, ao som da lira de Apolo. Quando da apoteose de Héracles e de sua reconciliação com Hera, Hebe se casou com o herói, simbolizando assim o acesso do filho de Alcmena à juventude eterna. (BRANDÃO, pág.39)

Allan Watts no livro A sabedoria da Insegurança no ano de 1951 já falava: “O corpo humano vive porque é um conjunto de movimento, circulação, respiração e digestão. Resistir à mudança, tentar se apegar à vida, é, portanto, como prender a respiração: se você não parar, acaba se matando.” (WATTS, Pág 35) Assim como Hebe as pessoas estão presas a um paradigma de que as coisas estão boas como são e tem que permanecer assim para sempre e acabam não vivendo o aqui e agora, elas vivem a ansiedade de manter o que já não é mais e assim ficam presas ao passado e a idealização do que já foi. E o que já foi no imaginal da pessoa que vive o aqui e agora, nunca mais pode voltar a vir e ser novamente, pois vivemos de fantasias de nós mesmos. Jung já falava:

As fantasias dos adultos, enquanto conscientes, são de uma variedade incrível e assumem formas muito individuais. Por isso é impossível fazer delas uma descrição geral. Outra coisa é a gente entrar no mundo inconsciente de fantasias do adulto por meio da análise. Nesse mundo também é grande a variedade do material fantasioso, mas nem de longe encontramos aquelas muitas peculiaridades individuais como no consciente. Vamos encontrar, sim, material mais típico que, não raro, repete-se de forma semelhante em diversas pessoas. São constantes, por exemplo, ideias que aparecem como variações daquelas encontradas na religião e mitologia. O fato é tão evidente que podemos afirmar ter encontrado nessas fantasias os precursores das ideias mitológicas e religiosas JUNG, 2012a, §341 p.1559

Mas a percepção de que algo vai acabar para o ser humano, assim como o poder de Hebe ao servir ambrosia aos deuses, gera uma ansiedade com o fim, essa sensação de morte parece ser enganada quando perpetuamos alguma situação ou simulamos juventude, como se fossemos capaz de enganar o tempo nos olhando no espelho. Isso é uma ilusão que não permite o processo de vida e morte, para viver, precisamos morrer, não literalmente, mas deixar aspectos que não são mais nossos e não nos pertencem mais no aqui e agora. Aceitar viver e viver com plenitude, precisamos aceitar que o tempo exerce sua atividade e possibilitar esse crescimento interno com toda a bagagem que a vida nos possibilitou com alegrias e tristezas. 

O envelhecer pode ser uma aventura esplendorosa e criadora quando pensamos no real poder de transmutação e possibilidades que já vivenciamos e descobrimos. O voo da borboleta é feito nesse momento, quando já foi maturada a asa, e assim nos é permitido voar. Podemos tomar como exemplo o próprio Carl Gustav Jung que escreve e reescreve sua obra já em idade avançada, e faz com que sua teoria ganhe escopo e ainda mais consistência. “A individuação é exclusivamente adaptação à realidade interna e, por isso, um processo “místico”. A expiação é adaptação ao mundo externo. Ela deve ser oferecida ao meio ambiente, com o pedido de que a aceite.” (JUNG, 2012b, §1.095)

Este presente artigo não é uma condenação aos bens e subterfúgios que a medicina  estética contemporânea podem trazer, mas é um ode ao envelhecer com dignidade e sabedoria entendendo que não podemos ser inimigos do tempo mas, podemos trazer a nossa realidade que este é invencível e que morremos todos os dias. Devemos ser inspirados pelo hoje, a juventude eterna não existe, o eterno não existe. Deixamos passar tanta vida para manter determinados processos que, internamente não são mais coerentes com aquilo que somos no aqui e agora e, não nos permitimos vivenciar as mudanças que vão nos possibilitar voos maiores e melhores. “Passar é viver; permanecer e continuar é morrer.” (WATTS, Pág 34)

Bárbara Pessanha, Membro Analista em formação do IJEP/ RJ

E. Simone D. Magaldi, Membro didáta do IJEP

Referencias

JUNG, Carl Gustav. Freud e a psicanálise. ed. Petrópolis: Vozes, 2012a. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 4). 

JUNG, Carl Gustav. A vida simbólica. ed. Petrópolis: Vozes, 2012b. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 18/1).

ALMEIDA, Romildo, L. Gerontofobia: o terrível medo de envelhecer. Hospital Santa Casa de Misericórdia, 23 jan. 2020. Disponível em: http://www.santacasasorocaba.com.br/gerontofobia-o-terrivel-medo-de-enve…. Acesso em: 14 mar. 2021.

DINIZ, Thais Carvalho. Medo de envelhecer pode ser um problema; entenda a gerontofobiaUol, Universa, São Paulo, 3 out. 2014. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2014/10/03/medo-de-enve…. Acesso em: 14 mar. 2021.

https://www.academia.org.br/nossa-lingua/nova-palavra/gerontofobia. Acesso em: 18 out. 2021.

WATTS, Alan. A sabedoria da insegurança, 2017. Editora, Alaúde Editorial

Bárbara Pessanha

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