Este trabalho tem o objetivo de refletir sobre as homologias entre o Esclarecimento e a loucura coletiva que nele eclodiu e o atual momento político-social-pandêmico brasileiro. Analisando, principalmente, a possibilidade de estarmos presenciando um contágio psíquico de delírio coletivo em maior e em menor grau.
Dwyer (2018) afirma que, no ano de 1840, quando ocorreu o retorno dos restos mortais de Napoleão à França, cerca de treze ou quatorze indivíduos foram admitidos no mesmo hospital psiquiátrico, em Bicêtre, afirmando ser o próprio “Napoleão”. Evidentemente, cada um deles considerava o outro louco. Este fenômeno, curiosamente, já ocorria antes mesmo da morte de Napoleão Bonaparte: no ano de 1818, há relatos de que pelo menos cinco indivíduos foram admitidos no hospital Charenton acreditando também ser Napoleão. Todos eles comportavam-se como o próprio: de sua famosa postura corporal até seu comportamento social, sendo mais imperial, orgulhoso, arrogante, abrupto, tirânico, caprichoso e colérico. A ilusão não afetou somente homens, segundo os relatos, algumas mulheres também foram afetadas. Todos eles se levavam demasiadamente a sério, davam ordens e exigiam lealdade. Em troca, tratavam os outros com desdém. Autores como Dwyer (2018) e Murrat (2012) discorrem que casos como estes são considerados delírios.
Estes delírios não ocorreram somente com a figura de Napoleão, mas também com outros soberanos. No ano de 1839, um homem denominado Raoul Spifame, advogado no Parlamento de Paris, foi internado no hospital psiquiátrico Bicêtre por acreditar ser o rei Henrique II, da França. Segundo Murrat (2012), os jornais da época relataram que a semelhança fisionômica com o rei era verdadeira, o que levou muitos amigos e colegas a chamarem Spifame de “vossa majestade” ou “vossa excelência”, fazendo ele acreditar piamente que era o próprio soberano. Este caso em especial possui uma peculiaridade que deve ser evidenciada, de acordo com Murrat (2012), em um certo dia, um guarda pendurou um espelho na cela de Spifame, que ao aproximar-se do espelho, reconheceu a própria imagem refletida como a do rei Henrique II e inclinou-se rápida e profundamente em reverência. Para a autora, “Raoul prova simultaneamente que não é louco, já que faz a diferença e dá a prova de que se dissocia do soberano, personagem distinto do advogado encerrado em Bicêtre” e ainda conserva seu racionalismo e cognição (MURRAT, 2012, p.170).
Isso fica evidente quando estudamos Hillman (2012), que vai além da psiquiatria clássica que entende delírio como uma “crença falsa”, o autor aponta que um delírio paranóico, por exemplo, é uma persuasão de sentimento, pela evidência de sentidos, surgindo até uma logicidade incorrigível. O autor ainda discorre que independente do tipo de delírio e de quão longa e tenazmente ele seja mantido, devemos lembrar aquilo que dizem todos os manuais de psiquiatria, que via de regra o comportamento, o intelecto e as emoções de pacientes que disso sofrem estão preservados, de forma que se suas premissas fossem verdadeiras, seu comportamento e seu discurso passariam quase que por normais.
Casos como os citados acima foram tratados isoladamente por psiquiatras, psicólogos e psicanalistas até então. Mas seria de grande valia reconhecer que tipo de fenômeno psíquico coletivo está por trás dos delirantes internados, afinal, é muito provável que o número de indivíduos que deliraram na época foi superior aos registros dos hospitais psiquiátricos. O máximo diagnosticado sobre tais episódios como um único fenômeno foi feito por François Leuret, reconhecendo-os como uma loucura coletiva de monomania de orgulho, devido às circunstâncias político-sociais da revolução francesa, da guilhotina e do Esclarecimento. Murrat (2012), em seu livro, também avança em passos largos demonstrando um imbricamento entre a política e a loucura, mas não satisfaz a perspectiva junguiana, sem a análise de reconhecer os casos como um movimento coletivo e delirante, visto que a autora não apresenta uma compreensão do fenômeno a partir do inconsciente coletivo, o que seria de grande valia. Para adicionar esta concepção, vale lembrar o que Jung (2013) aponta sobre a influencia do inconsciente coletivo na sociedade:
Via de regra, quando o inconsciente coletivo se torna verdadeiramente constelado em grandes grupos sociais, a consequência será uma quebra pública, uma epidemia mental que pode conduzir a revoluções, guerra, ou coisa semelhante. Tais movimentos são tremendamente contagiosos, eu diria inexoravelmente contagiosos, pois, quando o inconsciente coletivo é ativado, ninguém mais é a mesma pessoa (JUNG, 2013, p. 61-62, vol. 18/1).
No tocante, já perseguimos fenômenos semelhantes – no livro “Contágio Psíquico: a loucura das massas e suas reverberações na mídia” relatamos casos de indivíduos que confundiram outrem com o diabo e com bruxas; discorremos sobre episódios delirantes de envenenamentos, OVNIS e órgãos genitais desaparecendo; entre outros.
A afirmação do autor de que “ninguém é mais a mesma pessoa” deve ser ressaltada. Isto é, quando o movimento provém do inconsciente coletivo e de suas imagens arquetípicas, nem o rei, nem o padre, nem o filósofo, nem o carrasco, nem o cidadão são os mesmos, todos estão contagiados pelo o que emerge da coletividade. Isso leva-nos a crer que os prisioneiros de Bicêtre e Chareton são uma pequena parte do movimento coletivo ocorrido na época. Ou seja, na perspectiva junguiana, cai por terra a defesa de que casos como os supracitados são extremos e não deveriam ser comparados a líderes políticos ou uma população que aparentemente possui uma mínima lucidez. Se o próprio Spifame manteve sua lucidez, como reconhecer que a sociedade francesa da época ou até mesmo a atualidade está realmente lúcida? Hillman (2012) aponta que o delírio não pode ser determinado por critérios sociais, já que os próprios critérios sociais podem ser/estardelirantes. Para corroborar, Jung (2013b, p. 286-287) afirma que o estado de extremo de desequilíbrio mental é uma oportunidade de vislumbrar certos “fenômenos psíquicos com clareza quase exagerada”; e também, de reconhecer “fenômenos que muitas vezes são percebidos apenas de maneira obscura dentro dos limites normais. O estado anormal funciona às vezes como lente de aumento”.
Simbólica e enantiodromicamente, podemos compreender que a época das Luzes, buscando a lucidez total, fez muitos indivíduos perderem literal e metaforicamente a cabeça, transformando tudo na mais crassa barbárie. Murrat (2012) aponta que ao passo que muitos da aristocracia eram condenados à “viúva”, outros eram trancafiados nos hospitais psiquiátricos, que cresceram de maneira vertiginosa nesta época. A autora ainda afirma que, nas execuções, os cidadãos espectadores tinham rompantes de contágios psíquicos acreditando que a cabeça separada do corpo ainda piscava os olhos. E, os estudiosos, em nome da ética e da moral, afirmavam veementemente que a guilhotina era a melhor maneira de executar alguém.
Não seria estranho depreender que toda época foi atingida pelo delírio coletivo das Luzes e das Sombras em maior ou menor grau, seja acreditando ser Napoleão, seja acreditando ser igualitário, fraternal e liberal com a guilhotina debaixo do braço. Esqueceram-se do inconsciente coletivo e de suas sombras em prol de uma lucidez delirante.
Outra sociedade que parece ter esquecido de sua sombra é aquela em que o “cidadão de bem” faz parte; aquela que elegeu o atual presidente brasileiro; aquela que acredita fielmente que a arma e a cloroquina vão salvar a todos na terra plana. Curiosamente, avessa a Adorno e Horkheimer, críticos do Esclarecimento, mas a favor das ideias do pseudo-filósofo Olavo de Carvalho e das Fake News. Estes vão às ruas pedir atos inconstitucionais; clamar pela morte e matar líderes da esquerda; e ainda, acreditam piamente que Deus é um apoiador desse movimento.
Não somente o presidente, mas parte da população parece estar delirante. Não seria incorreto afirmar que estamos vivendo uma reedição da monomania orgulhosa, ou seja, do comportamento napoleônico imperial, orgulhoso, arrogante, abrupto, tirânico, caprichoso e colérico. Ainda podemos somar a propagação do mal, a barbárie e o movimento genocida que deixou morrer mais de 550 mil brasileiros por COVID-19 até então.
Parece que o delírio coletivo é um grande viabilizador da propagação e da banalização do mal. Aqui não devemos polarizar a atual mentalidade coletiva brasileira entre delírio e mal, pois, os dois agem de mãos dadas. Acompanhar a CPI da COVID-19 revela isso. Faz-nos, a cada momento, questionar como é possível ser capaz de corroborar e intermediar possíveis tentativas de corrupção sabendo que parte da população brasileira, se não morre pela pandemia, morre pela fome? Como é possível considerar que a propina é de mais valia do que as sepulturas já cavadas no país? Como é possível colaborar com um Ministro que já proclamou que prefere o saco preto à vacina?
Não devemos também e nem queremos excluir a responsabilidade dos envolvidos com a corrupção, mas compreender que em suas perspectivas, tanto o presidente quanto seus apoiadores parecem delirar coletivamente, crendo que estão cumprindo seus trabalhos, automaticamente maléficos, assim como a guilhotina o fez.
Como defender-se deste movimento contagioso? Talvez não seja possível e já estamos delirando juntos. Mas, Edgar Morin, em entrevista, recentemente, trouxe-nos temperança: com frequência, é preciso ser um desviante minoritário para estar no real. Embora, aparentemente, nele não haja nenhuma perspectiva, nenhuma possibilidade, nenhuma salvação, a realidade não está paralisada para sempre, ela tem seu mistério e sua incerteza. O importante é não aceitar o fato consumado.
Leonardo Torres – Analista em Formação pelo IJEP
Analista ditataresponsável: Waldemar Magaldi
REFERÊNCIAS:
Dwyer, Philip. Napoleon: Passion, Death and Resurrection, 1815-1849. Lodres: Bloomsbury, 2018.
Jung, Carl Gustav. A Vida Simbólica: escritos diversos. Petrópolis: Vozes, 2013.
Jung, Carl Gustav. Tipos Psicológicos. Petrópolis, 2013b.
Hillman, J. Paranoia. Petrópolis: Vozes, 2012.
Morin, Edgar. Entrevista. http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/610964-cem-anos-de-morin-filosofo-da-complexidade
Murrat, Laure. O Homem que se achava napoleão: por uma história política da loucura. São Paulo: Três Estrelas, 2012.