Para a psicologia analítica de C. G. Jung a mitologia é de valor inestimável. Por meio dos mitos podemos acessar, ainda que indiretamente, os conteúdos do inconsciente coletivo a fim de entender melhor a condição humana. Na tradição do povo Iorubá, uma forma de apresentar os mitos são os itãs*, relatos míticos, geralmente relacionados aos feitos de um Orixá, que são transmitidos oralmente e servem de fundamento aos cultos iorubanos como o Candomblé Queto. Nesse artigo será apresentado um itã relacionado ao Orixá Oxaguiã para explorar como essa narrativa conversa com as noções junguianas de enantiodromia e função transcendente.
Oxaguiã (Orişà Ogiyán, em Iorubá) é um orixá, uma divindade do povo Iorubá, cultuado tanto na África quanto no Brasil. Na África o centro de seu culto está situado na cidade de Ejigbô, na Nigéria; no Brasil, é cultuado nas casas de Candomblé Queto. É conhecido por vários nomes, como Ajagunā, Orixá Oguiã, Oxalaguiã e Oxaguim. É tido como um Orixá Funfun, ou seja, um Orixá ligado à criação e à cor branca. É uma divindade guerreira, sendo considerado senhor dos contrastes e da instabilidade. Seu nome significa “Orixá comedor de inhame pilado”, comida favorita dessa divindade. São muitos os itãs de Oxaguiã, um de especial interesse que relata o surgimento desse Orixá e está transcrito abaixo como coletado por Reginaldo Prandi em sua obra Mitologia dos Orixás, onde o autor prefere usar o nome Ajagunā:
“Ajagunā ganha uma cabeça nova
Ajagunā nasceu de Obatalá.
Só de Obatalá.
Nasceu num igbim, num caramujo.
Logo que nasceu, Ajagunā se revoltou.
Ajagunā não tinha ori, não tinha cabeça e andava pela vida sem destino certo.
Um dia, quase louco, encontrou Ori na estrada
e Ori fez para Ajagunā uma cabeça branca.
Era de inhame pilado sua cabeça.
Mas a cabeça de inhame esquentava muito
e Ajagunā sofria torturantes dores de cabeça.
De outra feita, lá ia pelas estradas
Ajagunā padecendo de seus males,
quando se encontrou com Icu, a Morte.
lcu se pôs a dançar para Ajagunā e se ofereceu
para dar a ele outro ori.
Oxaguiã, com medo, recusou prontamente,
mas era tão insuportável o calor que ele sentia
que não pôde recusar por muito tempo a oferta.
Icu prometeu-lhe um ori negro.
Icu ofereceu-lhe um ori frio.
Ele aceitou.
A sorte de Ajagunā contudo não mudou.
Era fria e dolorida essa cabeça negra.
Mas pior era o terror que não o abandonava
de sentir-se perseguido por mil sombras.
Eram as sombras da Morte em sua cabeça fria.
Então surgiu Ogum e deu sua espada a Ajagunā.
E com a espada ele afugentou a Morte e as suas sombras.
Ogum fez o que pôde para socorrer o amigo,
com a faca retirando o ori frio grudado no ori quente.
Na operação de Ogum as duas cabeças se fundiram
e o ori de Oxaguiã ficou azulado,
um novo ori nem muito quente, nem muito frio.
Uma cabeça quente não funciona bem.
Uma cabeça fria também não.
Foi o que se aprendeu
com a aventura de Ajagunā.
Finalmente a vida de Ajagunā se normalizou.
Com a ajuda de Ogum, mais uma vez,
o orixá aprendeu todas as artes bélicas
e assim venceu na vida muitas batalhas e guerras.
Hoje o seu nome, como o nome de Ogum,
é relembrado entre os dos mais destemidos generais.
E foi assim que Oxaguiã foi chamado Ajagunā,
título do mais valente entre todos os guerreiros.”
(PRANDI, 2001, p. 491 e 492)
Antes de iniciar a análise desse itã é necessário identificar os personagens dele. Além do próprio Oxaguiã aparecem Obatalá, Ori, Icu e Ogum:
Obatalá é um dos primeiros Orixás, criado diretamente pelo ser supremo, Olodumarê, sendo encarregado da criação e ordenamento do mundo. É tido como o maior de todos os Orixás.
Ori (ou orí) é o termo iorubá para cabeça, mas não simplesmente a cabeça anatômica. Para os iorubanos ori se refere a uma divindade pessoal, única de cada ser humano, que tem relação tanto com à sua natureza quanto a seu destino.
Icu (também grafado Iku ou Ikú) é uma divindade masculina responsável pela morte. Apesar de haver vários orixás que de alguma maneira estão relacionados à questão da morte, o acontecimento da morte é domínio de Icu.
Por fim, Ogum, um orixá muito conhecido no Brasil. É tido como orixá guerreiro, senhor do ferro e dos metais. Ligado à criação de ferramentas tanto para guerra quanto para a agricultura, esse orixá é tido como aquele que abre caminhos.
Obviamente essa explicação breve é incapaz de abarcar a complexidade que essas entidades apresentam, mas será suficiente para podermos expandir as questões a que se refere esse itã.
Logo que o itã começa já temos um ponto interessante: Oxaguiã nasce por partenogênese, diretamente de Obatalá. Esse é um nascimento incomum para um Orixá. Geralmente nos itãs os Orixás são descritos como tendo sido criados diretamente por Olodumarê ou sendo filhos de outros dois Orixás. Poderíamos dizer que esse nascimento já dá o tom desse itã: a unilateralidade da consciência.
O lugar de onde Oxaguiã surge é chamado igbim. Trata-se da concha de um caramujo africano, animal ligado a Obatalá, que representa placidez e tranquilidade. Apesar de emergir de algo que representa a tranquilidade, Oxaguiã já nasce revoltado. É já nesse nascimento que se instala o problema central do itã: Oxaguiã não tem ori, não tem cabeça. O que seria, na perspectiva iorubá, nascer sem cabeça? Como dito anteriormente, Ori está ligado tanto ao sagrado quanto ao destino de um indivíduo. É possível entender sua ausência tanto como uma desconexão da dimensão do sagrado, como uma representação de ausência de um propósito na vida. Essa segunda interpretação é reforçada pelo próprio itã, onde a seguir o orixá passa a vagar pelo mundo sem propósito. Poderíamos entender também que nesse momento Oxaguiã é como um bebê, antes do surgimento de uma consciência que direcione as experiências do indivíduo.
Em suas andanças erráticas pelo mundo, Oxaguiã acaba por encontrar Ori. Poderíamos dizer que ele encontra um pedaço de si mesmo, encontrou algo do sagrado em si e um destino, um propósito. Aparentemente o problema que o itã propõe encontra uma resolução: agora Oxaguiã tem cabeça. E não é uma cabeça qualquer, é uma cabeça feita de inhame pilado. Esse detalhe é extremamente significativo, visto que inhame pilado não é só o alimento favorito desse orixá como é o elemento que dá seu nome. Mas isso não resolve a tensão do itã, visto que agora a cabeça torna-se o problema, esquenta muito e dói constantemente. Adquirir um Ori pode ser entendido numa perspectiva junguiana como a emersão do consciente a partir do inconsciente, o nascimento da consciência. E com o surgimento da consciência surge também a unilateralidade desta. E é por esse motivo que Oxaguiã sofre com a cabeça quente, pois nela só há uma possibilidade de ser, a consciência encontra-se fixada, identificada com uma determinada forma de ser no mundo, unilateral.
O calor desse primeiro Ori diz respeito a seu material, inhame pilado. Como já foi dito, é o alimento favorito desse Orixá. Ou seja, sua cabeça está repleta daquilo que ele gosta, daquilo que ele deseja. Há apenas um desejo que o lança no mundo, mas não há nada que contrabalancei essa tendência, e como qualquer unilateralidade exacerbada, acaba por se expressar como sintoma, nesse caso, uma cabeça quente e dolorida. Geralmente associamos a expressão cabeça quente à impulsividade que, invariavelmente gerará problemas, ou metaforicamente, dores de cabeça.
Aparece então Icu, a própria morte, é ele que vai sugerir uma solução ao problema da cabeça quente de Oxaguiã. Icu oferece um segundo ori a Oxaguiã, um Ori negro e frio. Oxaguiã inicialmente recusa, mas o sofrimento que o Ori quente lhe impõe acaba por fazer com que ele aceite o presente de Icu, colocando o novo Ori frio em cima do Ori quente. A consequência é que agora Oxaguiã passa a se sentir perseguido pelas sombras da morte.
O conteúdo que vem da sombra (o ori dado por Icu) é primeiramente negado por ser entendido como uma ameaça, mas a unilateralidade de seu contrário (o ori quente) é tão extremada que eventualmente o conteúdo sombrio assume o controle. Oxaguiã entrou em enantiodromia, ou seja, pendulou para o oposto de sua posição anterior. Antes de cabeça quente, repleta daquilo que ele deseja agora tem de lidar com os aspectos de sua contraparte: fria e assombrada pela morte e suas sombras da qual ele quer a todo custo se ver livre. É fácil perceber a similaridade entre esse itã e a discussão que Jung faz da enantiodromia:
“O velho Heráclito, que era realmente um grande sábio, descobriu a mais fantástica de todas as leis da psicologia: a função reguladora dos contrários. Deu-lhe o nome de enantiodromia (correr em direção contrária), advertindo que um dia tudo reverte em seu contrário.” (JUNG, 2014 p. 83)
“Sempre é preciso haver o alto e o baixo, o quente e o frio etc., para poder realizar-se o processo da compensação, que é a própria energia. Portanto, a tendência a renegar todos os valores anteriores para favorecer o seu contrário é tão exagerada quanto a unilateralidade anterior. Mas, quando se descartam os valores incontestáveis e universalmente reconhecidos, o prejuízo é fatal.” (JUNG, 2014 p. 87)
O Orixá aqui exemplifica claramente esse pendular exagerado que não resolve o problema do indivíduo, apenas troca uma tendência unilateral por outra. E como atesta Jung, o efeito desse pendular é prejudicial, representado no itã por Icu, companhia considerada malfazeja, que passa a acompanhar Oxaguiã com suas sombras.
Oxaguiã que agora anda pelo mundo com suas duas cabeças, encontra finalmente Ogum. É a partir da intervenção de Ogum que Oxaguiã consegue afastar a influência negativa de Icu de perto de si. Ogum, o Orixá da tecnologia, dos engenhos, do progresso, se coloca em oposição à tendência destrutiva representada por Icu. É ele que dá a espada a Oxaguiã para que ele afugente a morte.
Nesse sentido, Ogum (Orixá das estradas) representa um caminho, a busca de um meio de resolver esse conflito. Os meios oferecidos por Ogum são uma espada para afugentar Icu e uma faca para separar o ori frio do ori quente. Se entendermos essas lâminas como símbolos do aspecto racional do homem vemos que essa racionalidade obtém algum sucesso, pelo menos em afastar a influência nefasta de Icu, mas falha ao tentar resolver o problema da enantiodromia, ao tentar extirpar unilateralmente uma das tendências entendida como a mais problemática.
Quando Ogum tenta separar os dois oris, o que ele consegue é o resultado oposto, acaba por fundir os dois em um ori só. É possível ver uma relação entre esse movimento e a função transcendente como descrita por Jung:
“A resposta, evidentemente, consiste em suprimir a separação vigente entre a consciência e o inconsciente. Não se pode fazer isto, condenando unilateralmente os conteúdos do inconsciente, mas, pelo contrário, reconhecendo a sua importância para a compensação da unilateralidade da consciência e levando em conta esta importância. A tendência do inconsciente e a da consciência são os dois fatores que formam a função transcendente. É chamada transcendente, porque torna possível organicamente a passagem de uma atitude para outra, sem perda do inconsciente. O método construtivo de tratamento pressupõe percepções que estão presentes, pelo menos potencialmente, no paciente, e por isso é possível torná-las conscientes. “ (JUNG, 2013 p. 18)
Podemos dizer que ao tentar separar os dois oris, Ogum acaba por tornar consciente a tensão que existe entre os dois, abrindo caminho para que a função transcendente gere uma síntese desses extremos. Oxaguiã ganha uma cabeça “morna”, ou seja, uma cabeça que tem a síntese de suas tendências, mas vai além delas. Isso fica marcado pela cor que esse novo ori assume. O primeiro ori é branco e o segundo preto não geram um ori cinza, mas sim um ori azul. Podemos nesse caso associar o branco à natureza celestial do orixá, filho do criador Obatalá, e o preto ao mundo terreno e sua condição inescapável (a morte). O novo ori azul pode ser relacionado a Ogum (cuja cor é o azul), orixá que pode ser relacionado ao fazer, ao agir no mundo de maneira a transformá-lo. Ou seja, o Ori de Oxaguiã agora é um ori que pode realizar coisas no mundo com as duas potencialidades que lhe foram legadas, o ori quente e o ori frio, assim como a função transcendente permite ao indivíduo trabalhar com tendências opostas da consciência e do inconsciente quando necessário.
O itã encerra com Oxaguiã tornando-se um grande guerreiro e recebendo por isso novo nome, Ajagunã. Não é mais seu desejo que o nomeia, mas seu fazer, poderíamos dizer que não se identifica mais com sua origem ou seu desejo, mas sim com seu fazer no mundo. É possível imaginar que não seria possível ao orixá conseguir tal feito sem seu ori “morno”. Sem a impulsividade do ori quente não se lançaria em batalha, sem a sombra da morte do ori frio não teria cautela perante os riscos.
Obviamente essa análise é apenas um entendimento possível desse itã, por uma perspectiva junguiana, e não dá conta da importância dessa narrativa para o culto do Candomblé e seus iniciados. Mesmo assim, espera-se que essa reflexão seja uma colaboração tanto para o entendimento dos aspectos psicológicos desse itã quanto para a divulgação da riqueza simbólica que há na mitologia iorubá.
Observação: os Itã é uma narrativa que se refere a um mitologema específico de um ou mais Orixás na mitologia iorubana.
Gabriel Andrade – Analista em Formação pelo IJEP
Analista Didata – Waldemar Magaldi
JUNG, C. G. A Natureza da Psique. 10.ed. Petrópolis, Vozes, 2013
_________. Psicologia do Inconsciente. 24.ed. Petrópolis, Vozes, 2014
KILEURY, O.; OXAGUIÃ, V. O candomblé bem explicado: Nações Bantu, Iorubá e Fon. Rio de Janeiro, Pallas, 2009
PRANDI, R. Mitologia dos Orixás. São Paulo, Companhia das Letras, 2001