Na apresentação da Dança Circular Sagrada (DCS), geralmente, o ‘sagrado’ gera indagações. Há uma certa inquietação referente à palavra ‘sagrado’ ligada à dança. Estaria esta dança ligada a alguma confissão religiosa, a alguma doutrina?
Bernhard Wosien, o fundador da DCS, em 1976, colocou o nome Dança Sagrada – ‘Sacred Dance’ -, o qual já na época, ocasionou um certo estranhamento, mesmo na comunidade de Findhorn (onde o movimento iniciou com a sua vinda).
Anna Barton (2020), dançante moradora da comunidade e primeira pessoa a registrar as danças circulares com a linguagem escrita, explica que muitas pessoas ligaram o termo ‘Sacred’ a uma elite que detinha o segredo (como os padres o faziam) e que o passava para as pessoas mais simples. Ela relata que tentaram mudar o nome em vão, pois este já havia se propagado. Porém, em alguns lugares, principalmente na Grã-Bretanha, começaram a usar Dança Circular e, por fim, o movimento passou a ser nomeado Dança Circular Sagrada.
Serão brevemente expostos nessa explanação para se compreender melhor o termo ‘sagrado’ usado na DCS e o não pertencimento, da mesma, a uma confissão religiosa: o sagrado na perspectiva do fundador da DCS, algumas características da DCS pertinentes ao sagrado e a visão da Psicologia Junguiana sobre o tema abordado.
A dança para Wosien, B. (2006) é um caminho para a totalidade do ser humano, onde corpo e alma se unem.
Através dela os dançarinos se expressam por uma linguagem espírito-corporal, o que faz da dança uma forma de oração humana. Para ele (WOSIEN, B., 2006, p. 27-28): O homem vivencia na dança a transfiguração de sua existência, uma metamorfose transcendente de seu interior, relativa ao ser e também à elevação ao seu eu divino. A dança, como na forma de uma imagem característica e móvel, é o próprio sagrado.
Muitas danças fazem parte da DCS (tradicionais, folclóricas, contemporâneas, …) que, na sua maioria, são dançadas em círculo no qual se coloca um centro de roda. Uma harmonização, geralmente, precede o início da dança com o intuito de trazer a presença do indivíduo e do grupo para o espaço da roda, formando-se um espaço sagrado.
Segundo Renata Ramos (RAMOS, 1998, p. 188):
A forma de círculo com um centro caracteriza um mandala. Este símbolo aparece em várias culturas, apresenta-se de forma espontânea (não racional e sem manifestação de uma vontade) retratando um processo de desenvolvimento da psique.
Jung cita que algumas de suas clientes dançavam mandalas (dança mandálica) ao invés de desenhá-las e sentiam um fascínio, embora desconhecessem seu lado simbólico, e reconheciam que expressavam algo e que atuavam “sobre seu estado anímico subjetivo.” (JUNG, C. G., WILHELM, R., 2013, p. 39).
No entendimento oriental:
A harmonização feita no início da roda de DCS aproxima-se da ideia sobre o círculo, o qual se forma ao redor do centro e estabelece uma área sagrada, para que nela permaneça o que está dentro e o que está fora, nela não interfira. Nas palavras de Jung: Oculta-se neste símbolo uma antiquíssima atuação mágica, cuja origem é o “círculo de proteção”, ou “círculo encantado”, cuja magia foi preservada em numerosos costumes populares (JUNG, C. G., WILHELM, R., 2013, p. 41). A meta evidente da imagem é traçar um “sulcus primigenius“, um sulco mágico em redor do centro, que é o templo ou temenos (área sagrada) da personalidade mais íntima, a fim de evitar uma possível “efluxão”, ou preservá-la, por meios apotropaicos, de uma eventual distração devido a fatores externos.
A circulação (circumambulatio, o “aproximar-se circundando”) não é apenas movimento em círculo, mas também uma delimitação de área sagrada e uma “ideia de fixação e concentração”. A circulação, vista de forma psicológica, proporciona um olhar sobre todos os lados (conscientes e aqueles que estão na sombra) o que gera autoconhecimento, pois possibilita um contato com a unidade. (JUNG, C. G., WILHELM, R., 2013, p.42)
União dos opostos
Para Jung a “união dos opostos num nível mais alto da consciência, […], não é uma questão racional e muito menos uma questão de vontade, mas um processo de desenvolvimento psíquico, que se exprime em símbolos” (JUNG, C. G., WILHELM, R., 2013, p. 38). No momento dessa união dos opostos (luz e sombra) pode-se experienciar o numinoso, pois “se trata de um caso de consciência agudo, intenso e abstrato, de uma consciência “isenta””, onde se pode conscientizar partes da sombra. É um fenômeno espontâneo. (JUNG, C. G., WILHELM, R., 2013, p. 44). Esse processo tem um “valor psíquico avassalador”, pois age como ‘Deus’ para o indivíduo e o mandala é um símbolo que exprime essa atitude “religiosa” (JUNG, 2012c, p. 102).
Religião na sua etimologia deriva do latim religio proveniente de religere e não de religare.
Religere significa “considerar ou observar cuidadosamente”, que confere à religio uma correta base empírica, ou seja, conduzir a vida religiosamente. Diferentemente do patrístico religare (voltar a ligar ou conectar novamente) que remete à credo e imitação, os quais nem sequer substituem a religião (JUNG, 2012a, p.268).
Para Jung o fenômeno religioso é genuíno (JUNG, 2013a), é uma “atitude do espírito humano” (JUNG, 2012c, p. 20). Ele não se refere ao termo “religião” como uma profissão de fé religiosa ou confissão religiosa. Ele coloca que “o termo “religião” designa a atitude particular de uma consciência transformada pela experiência do numinoso.” (JUNG, 2012c, p. 20-21)
O numinoso é algo totalmente diferente e radical.
Rudolf Otto descreve o sagrado como um mysterium tremendum (um poder esmagador) e um mysterium fascinans (uma expansão da perfeita plenitude do ser) onde essas experiências são descritas como “numinosas (do latim numen, “deus”), porque elas são provocadas pela revelação de um aspecto do poder divino” (apud ILIADE, M., 1992). Numinoso, portanto, são experiências do sagrado, uma revelação do poder de Deus. Segundo Jung (2012b, p.146), Deus são todas as grandes emoções que ocorrem na psique e que subjugam a vontade consciente, apoderando-se do controle do indivíduo.
O sagrado é “uma realidade inteiramente diferente das realidades “naturais”, que a linguagem não consegue exprimir por ultrapassar a experiência natural humana (ILIADE, M. 1992, p. 12). Segundo Magaldi, W. (2009, p. 97), “o sagrado expressa a idéia e a imagem do Self, sendo essa idéia e imagem semelhantes à idéia e à imagem de Deus. Com isso, o sagrado é a manifestação de Deus para a consciência humana.” O “Si-mesmo”, Self, representa “a totalidade do homem, a soma de seus aspectos, abarcando o consciente e o inconsciente.” (JUNG, 2012c, p. 104).
O mandala é um símbolo do numinoso e representa o Self (JUNG, 2013b, p. 485-486), a alma do mundo. (JUNG, 2012c, p. 114-115)
Essa experiência numinosa pode ser vivenciada diretamente (como ocorre em alguns místicos e em certas doenças mentais), mas na sua grande maioria se utiliza dos símbolos. O símbolo mandálico é uma das formas em que esses aspectos podem ser apresentados para o consciente. Eles podem aproximar a conexão do consciente com o inconsciente (JUNG, C. G., WILHELM, R., 2013).
Segundo Jung a experiência numinosa capaz de ser vivenciada pelo símbolo pode proporcionar uma organização interna:
Como visito, Bernhard Wosien (2006) coloca a dança como um caminho para a totalidade do ser humano e a reconhece como uma oração. Ana Paula Maluf descreve que a dança é uma oração e abre ao ser humano a possibilidade de unir corpo e alma ao Todo (Self), é um momento de experiência de plenitude:
Conforme o texto acima, foi visto que na harmonização da DCS constitui-se um espaço apropriado para se acolher uma experiência de plenitude, cria-se um espaço para se orar dançando, forma-se uma área sagrada. Através da atuação do símbolo do mandala (roda de DCS) possibilita-se a união dos opostos (luz e sombra) podendo-se chegar a uma unidade, ampliando a consciência. A DCS nos possibilita vivenciar a experiência de plenitude, o numinoso, o sagrado, experienciar a relação consigo, com o outro e com o Todo.
Podemos dizer, portanto, que a Dança Circular Sagrada sob a luz da Psicologia Junguiana é religiosa e não pertence a nenhuma doutrina ou confissão de fé. Ela é sagrada, pois pode abarcar experiências numinosas onde pode ser vivenciada a totalidade do homem, que une o corpo e a alma ao Self. A DCS pode ser considerada uma oração espírito-corporal, onde corpo e alma se unem ao Todo (ao Self, à alma do mundo).
Elfriede Walzberg – Analista em Formação IJEP
Ajax Salvador – Analista Didata IJEP
Referências:
BARTON, A. (2020). Sacred Dance Film Anna Barton. In: Peter Vallance Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=N3lkpf3RzgA Acesso em: 18 julho 2024.
ILIADE, M. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
JUNG, C. G. Briefe – Dritter Band: 1956 – 1961. Ostfildern, DE: Patmos Verlag, 2012 a.
_________Escritos Diversos. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012 b.
__________Psicologia e religião. 11.ed. Petrópolis: Vozes, 2012 c.
__________O desenvolvimento da personalidade. 14.ed. Petrópolis: Vozes, 2013a.
__________Tipos psicológicos. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2013b.
JUNG, C. G., WILHELM, R. O segredo da flor de ouro: um livro de vida chinês. 15 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
MAGALDI FILHO, W. Dinheiro, saúde e sagrado: interfaces culturais, econômicas e religiosas à luz da psicologia analítica, 2.ed., São Paulo: Eleva Cultural, 2009.
MALUF, A. P. Z. Luz e sombra na dança. In: MAGALDI, W. (Org.), Fundamentos da Psicologia Analítica. São Paulo: Empresa Editora e Livraria Virtual Eleva Cultural, 2022, p. 615-625.
RAMOS, R. (Org.). Danças Circulares Sagradas: uma proposta de educação e cura. São Paulo: TRIOM: Faculdade Anhembi Morumbi, 1998.
WOSIEN, B. Dança: um caminho para a totalidade. 2.ed. São Paulo: TRIOM, 2006