Resumo: Este artigo reflete sobre os significados do símbolo, a função transcendente e os desdobramentos do processo de simbolizar. Discute, à luz da teoria junguiana, um processo que diferencia o ser humano de outras espécies: sua capacidade de simbolizar. Jung diz que o ser humano só se realiza por meio do conhecimento e da aceitação de seu inconsciente e os sonhos e seus símbolos ganham grande destaque nesse processo. Elementos do passado, como também prospecções e germes do futuro podem emergir do inconsciente por meio de símbolos, transcendendo nosso tempo imediato de vida. Ressalta-se que simbolizar é essencial ao processo de individuação, o sentido e o significado da existência humana.
Houve um tempo em que eu não existia como experiência manifesta material e psiquicamente. Haverá um tempo em que novamente, ao menos desse modo, não existirei. E entre esses infinitos tempos, no finito do tempo ao qual terei pertencido: quanta experiência de consciência, de alma terei vivido! E quanto do inconsciente terá se manifestado à consciência provindo desde sob este limiar…?!
Por que posso refletir e falar sobre o tempo em que existo e aqueles nos quais não existo; refletir e falar sobre psique consciente e inconsciente? Posso porque sou um ser humano.
Assumimos nós humanos que só nossa espécie é capaz de criar narrativas que descrevem suas experiências e como elas são vividas em termos de significado, de valor emocional da experiência. Isto é, nós humanos somos capazes de simbolizar, e deste modo, atribuir sentido e significado àquilo que vivemos. O que é simbolizar, à luz da psicologia analítica? O que subjaz na psique à capacidade humana de simbolizar?
Cabe refletir inicialmente sobre o símbolo. Para Jung, símbolo é “a imagem de um conteúdo [psíquico] em sua maior parte transcendente ao consciente” (JUNG, 2013, §114). Mesmo aquilo que nos é familiar na vida diária pode ser um símbolo, desde que “possua conotações especiais além de seu significado evidente e convencional. Implica alguma coisa vaga, desconhecida ou oculta para nós”.
Assim sendo, o aspecto inconsciente de um símbolo nunca será totalmente definido ou explicado.
Muito mais do que existe está fora do alcance da compreensão humana do que dentro dos limites de nossa capacidade de compreensão.
Por esse motivo recorremos aos símbolos e imagens para representar o que não podemos definir ou compreender integralmente. Nossos sonhos são símbolos que produzimos inconsciente e espontaneamente. Por outro lado, nunca conseguimos compreender ou entender algo completamente. Nossos sentidos limitam o que percebemos. Mesmo com a mais avançada das máquinas há limites que o conhecimento consciente não pode transpor. Mesmo nossa percepção sensorial do que chamamos realidade contém aspectos inconscientes.
As sensações uma vez transpostas para a realidade da mente tornam-se acontecimentos psíquicos dos quais não alcançamos a essência última. Mesmo da chamada realidade concreta há aspectos que ignoramos – inclusive por igualmente não conhecermos a natureza última da própria matéria. Há também acontecimentos de que não temos consciência e permanecem abaixo desse limiar. A elaboração psíquica (inconsciente) desses conteúdos pode aparecer como uma espécie de segundo pensamento e pode se manifestar por meio do sonho (Cf. JUNG, 1969, pp.22-4).
Diz Jung:
No entanto, sintomas também podem ter significados simbólicos, ou seja, caracterizarem-se como um modo de expressão do inconsciente (Cf. ibidem, p.26). Embora considere que nossas questões inconscientes se expressam com muito mais frequência nos sonhos, Jung comenta que reações físicas (os sintomas) também são uma das formas pelas quais se manifestam nossos conteúdos inconscientes.
Na psicologia analítica, durante o processo psicoterapêutico o símbolo permite a inserção de significados necessários, mas ainda não possíveis à consciência (Cf. PIERI, 2022, localização 16132, 76%).
Símbolo
Também, o símbolo, para Jung, está associado à expressão simbólica prospectiva, não apenas retrospectiva: “Jung (…) adota o termo ‘símbolo’ para indicar (…) expressões [da psique] que têm finalidades escondidas ou que são emblema de um efetivo trabalho psíquico dirigido para o novo” (PIERI, 2022, localização 16132-40, 76%).
Para a escola de Zurique:
“o valor do símbolo não depende apenas de causas históricas; sua importância maior está no fato de ter um significado para o presente e para o futuro, em seus aspectos psicológicos (…). O símbolo não é apenas sinal de reprimido ou dissimulado, mas é ao mesmo tempo tentativa de compreender e mostrar o caminho do ulterior desenvolvimento psicológico do indivíduo” (PIERI, 2022, localização 16140-6, 76%).
Nesse sentido, Pieri (idem) destaca que por essa abordagem do símbolo, “o método da Escola de Zurique não é apenas analítico e causal, mas sintético e prospectivo, reconhecendo o fato de que a mente humana se caracteriza por fines (fins) e por causae (causas)” e remete a Jung (OC VI, 1916-17, §§ 673s.). Destacando que: “o reconhecimento do valor intrínseco de um símbolo leva à verdade construtiva e ajuda-nos a viver; inspira confiança e favorece a possibilidade de desenvolvimento futuro (ibidem, IV, §679). Símbolos espontâneos, autônomos, cuja formação e emergência independem da vontade consciente, antecipam a totalidade na psique – embora a totalidade possa parecer uma noção abstrata (Cf. JUNG, 1990, §296).
O termo simbólico, por sua vez, indica “três coisas diversas” conforme Pieri (2022, localização 16152, 76%). Refere-se (a) ao que se atém ao símbolo; nesse sentido, é equivalente a psíquico. Refere-se (b) ao que tem a natureza de símbolo: o material que aparece na análise como imagens e sonhos e que não tem valor exclusivo de realidade psíquica, mas apresenta também um valor simbólico. Significa também (c) ao que se exprime por meio de símbolos. Pieri remete o leitor a Jung (OC II, 1906, §823).
O termo símbolo refere-se à ação de assimilar.
Deriva do termo grego symbállo que significa “coloco junto” (Cf. PIERI, localização 16235, 77%). “(…) indica uma expressão que é usada no lugar de outra, razão pela qual se fala de ‘função substitutiva’ do símbolo” (ibidem, localização 16243, 77%). No contexto da psicologia profunda, elementos expressos na superfície da psique exprimem elementos de sua profundidade. Abordar e descrever “atividades internas da vida psíquica” requer “contemplar precisas reflexões sobre o símbolo”.
É o símbolo que emerge à consciência no lugar do conteúdo que se encontra na profundidade psíquica (Cf. ibidem, localização 16257, 77%). Na psicanálise freudiana “o sonho de um lado e o sintoma de outro são ‘formações substitutivas’ de elementos psíquicos inconscientes”, isso decorrendo da ativação de mecanismos de censura, adquirindo um caráter de dissimulação e substituição. Na visão freudiana, cabe ao analista interpretar esses símbolos (ibidem, localização 16265s, 77%).
Para Jung nessa acepção seria mais adequado se referir ao signo que ao símbolo, porque seu significado está oculto apenas provisoriamente devido à defesa e à censura e remete a outro elemento psíquico, verificável. Jung indica pelo termo signo “as expressões simbólicas que representam a evidenciação de significados psíquicos já dados e, portanto, em particular a evidenciação das causas, condições ou intenções escondidas” (PIERI, 2022, localização 16132-140, 76%). Um signo seria então, de acordo com Jung um símbolo morto porque já “levou à realização um significado que ainda estava incompleto” (ibidem, localização 16289, 77%).
Por meio do “símbolo vivo” manifestam-se os arquétipos, ou seja, o inconsciente coletivo e eles indicam as etapas do processo sintético-individuativo
O símbolo, nesse sentido, não apenas permite a evolução do humano no plano da consciência como faz a prospecção da possibilidade de síntese entre natureza e cultura – adquirindo um caráter de revelação. Símbolos arquetípicos exprimem temas comuns a toda a espécie humana e, também, temas específicos a uma dimensão sociocultural que estrutura mitos familiares, regionais e nacionais. Com essas considerações foram caracterizadas as funções formadora e transformadora do símbolo (ibidem, 16296s, 77%).
O símbolo vivo
Um “símbolo vivo” é entendido como a síntese tensional de opostos na psique, que ultrapassa os limites do pensamento racional e instrumental (ibidem, localização 16304, 77%). Jung “procura descrever a vida da psique, que parece desdobrar-se e desenvolver-se mediante um inexaurível jogo de opostos, que justamente a assim chamada ‘função simbólica’ é encarregada de ‘manter junto’” (ibidem, localização 16311-18, 77%). De acordo com Jung, o “símbolo vivo” não está presente para substituir outro conteúdo. Há sim, um sentido de alguma coisa se transformar em outra não determinada – e não se caracteriza substituição de uma coisa pela outra.
Desse modo não se esgota o entendimento de um símbolo. Ele não pode ser totalmente decodificável. O que poderia substituir o símbolo ainda não existe. E é a isto que o símbolo se refere (Cf. PIERI, 2022, localização 16318, 77%; o autor remete a JUNG, OC, VI, §905), ao que ainda não existe na consciência, mas que começa a ser nela percebido por meio das imagens que o símbolo contém.
Em sua dinâmica, o “símbolo vivo” reativa o processo do conhecimento – até que se formule novos conhecimentos, situação em que o símbolo terá se esgotado e será morto, será um signo. De acordo com Pieri, essa característica do símbolo encarna a natureza projetiva da psique por meio da qual ocorre a ação de significar – ou “colocar em ação os significados (…) o aceno a algo que ainda não existe, ou (…) a algo que existe apenas em potência”. Caso fosse reduzido a um significado circunscrito, o símbolo perderia “sua ação dirigida a suscitar significados” (ibidem, localização 16324-30, 77%). O símbolo vivo está associado à função transcendente, trata-se de uma atividade designativa.
Em seu significado latino de ultrapassagem, superação e travessia, o “símbolo vivo” age através dos signos.
Para tanto necessita de um contexto antinômico (Cf. PIERI, 2022, localização 16380, 77%). Assim, uma outra característica do “símbolo vivo” e transformador pode ser descrita como sua capacidade de “decompor” algo do todo e trazê-lo ou aproximá-lo ao nível da percepção da consciência humana. É como se o símbolo fosse um tradutor ou transdutor de conteúdos amplos para o nível do captador discriminativo da consciência. Esta por unilateral e focada, gera pares antinômicos.
Desse modo, também, por meio da função transcendente, o símbolo vivo compõe os elementos polares das antinomias em unidades não sintéticas. Por essas características, podemos compreender que o lado inconsciente da psique seja chamado de psique criativa. Esta “vive essencialmente de contínuas tentativas – arriscadas e jamais garantidas – de ‘compor’ e colocar juntos, os ‘opostos’ que a consciência, no seu próprio fazer diferenciador, produz”.
A psique criativa proporciona “uma composição dos opostos” não sua síntese (ibidem, localização 16343, 77%). Não há a produção de um elemento síntese, as duas partes componentes permanecem distintas. Supera-se a oposição originária, vivida como um conflito. Trata-se de fato de uma tensão criativa e transformadora. (Cf. ibidem, localização 16350, 77%). Para Jung, portanto, depende da atitude da consciência que observa se alguma coisa é símbolo ou não (PIERI, 2022 remete a JUNG, OC VI, §907).
A consciência desempenha papel de grande importância nesse processo.
Apesar de frágil e facilmente danificável, a consciência, esta aquisição muito recente da natureza e ainda em estágio “experimental” (Cf. JUNG, 1969, p.24), é indispensável à função transcendente. De acordo com Jung, os opostos se mantêm conscientemente em oposição, devendo haver o testemunhar do EU nesse processo (PIERI, 2022 remete o leitor a JUNG, OC VI, §912-33). Nessa atividade de compor opostos, temos que:
(…) a assim chamada “imaginação inconsciente” pode – durante os sonhos – produzir (por si) elementos de são dotados (em si) de particulares capacidades compositivas de elementos (que em si) são opostos. Mas, esses elementos, para se tornar símbolos na acepção geral de ocasião transformadora, necessitam do envolvimento da consciência e do Eu. Ou seja, o modo simbólico pressupõe inevitável relação da consciência do sujeito com tais elementos. Enquanto elementos em si, eles permaneceriam apenas “símbolos mortos”, ou seja, sinais ou produtos de significações já dadas, e tais permaneceriam tanto a consciência como o mesmo Eu (enquanto complexos de pensamentos já formulados) (PIERI, 2022, localização 16356-62, 77%).
No símbolo estão presentes, portanto, e em necessária interação, a psique consciente, o conteúdo da psique inconsciente e a interpretação psicológica ou atividade psíquica.
Deste modo não há como se decidir racionalmente a interpretar simbolicamente (Cf. ibidem, localização 16362, 77%). Pode-se optar, entretanto, pela ampliação decorrente de um olhar poético, metafórico (Cf. obra de James Hillman).
Em síntese, no símbolo, conhecimento objetivo e subjetivo caracterizam-se em uma série de opostos polares, produzidos por um processo de simbolização que os transcende (Cf. PIERI, 2022, localização 16374, 77%). É interessante ler essa frase pensando em psique objetiva e psique subjetiva, as dimensões tanto coletiva como pessoal da psique, também. Para os deuses ganharem forma precisam de um mortal – para se realizar no nível do singular – os níveis universal e singular precisam um do outro.
Simbolizar é encontrar uma narrativa que a consciência aceite para atribuir sentido e significado a algum fato ou experiência. É olhar a experiência através do arquétipo, da imagem. A consciência em si é um processo momentâneo de adaptação (Cf. JUNG, 1986, §132) e a psique, além de ser mais ampla que sua dimensão consciente, não é uma estrutura homogênea. Há nela vários grupos de fatos psíquicos, não apenas aqueles percebidos ou engendrados pela consciência (Cf. JUNG, 1986, §286). No entanto, a consciência de modo algum é dispensável.
De acordo com Jung:
Na concepção de Jung, claramente o inconsciente não é apenas um depósito do passado.
Também está pleno de germes de ideias e de situações psíquicas futuras. Do mesmo modo, podem emergir do inconsciente pensamentos totalmente novos, ideias criadoras que nunca foram conscientes – esse emergir de material psíquico totalmente novo acontece de modo particularmente significativo no simbolismo dos sonhos (Cf. JUNG, 1969, pp. 37-8). Deste modo, para Jung, o inconsciente contém tanto o passado quanto o futuro. Jung assume que o ser humano só se realiza por meio do conhecimento e da aceitação de seu inconsciente e os sonhos e seus símbolos ganham grande destaque nesse processo (Cf. JUNG, 1969).
O autor também ressalta que o humano contemporâneo, apesar de seus valores que prezam controle, organização, eficiência, eficácia, continua sendo muito literalmente possuído por forças que vão muito além de sua capacidade de controle imediato. Ignorar suas mensagens termina nos lançando em rotas alternativas de inquietudes e apreensões, consumos químicos diversos e neuroses.
Inconsciência
Jung comenta que podemos ser dominados e perturbados por nossos humores, ou tornarmo-nos insensatos e esquecer fatos importantes para nós ou para outrem, sendo raro um controle efetivo de si mesmo. Somos bastante inconscientes do que fazemos e podemos sofrer diferentes formas de dissociação (até mesmo em momentos de concentração) e mesmo perder nossa identidade. Dissociações podem ocorrer de maneira espontânea, sem percebermos ou consentirmos, e até contra nossas intenções. Jung assume que a consciência humana ainda não alcançou um grau de continuidade que possa considerar razoável, permanecendo vulnerável e susceptível à fragmentação (Cf. JUNG, 1969, pp.24-5).
Apesar disso, nossa tão frágil consciência é essencial ao nosso desenvolvimento psíquico.
Emerge e se desenvolve como parte desse nosso desenvolvimento. O controle total das emoções pela consciência também não parece ser desejável. Comenta Jung que este despojaria radicalmente os relacionamentos humanos de sua variedade, colorido e calor (ibidem). Fato é, entretanto, que muitas vezes os complexos nos controlam, atuam em nós. Com relação aos complexos (de tonalidade afetiva), Jung chega a afirmar que são constituídos por “temas emocionais reprimidos capazes de provocar distúrbios psicológicos permanentes, ou mesmo, em alguns casos, sintomas de neurose” (JUNG, 1969, p.28). Também podem ser entendidos como “pontos sensíveis da psique que reagem mais rapidamente aos estímulos ou perturbações externas” (idem).
Do exposto e refletido acima, podemos entender que, à luz da psicologia analítica, simbolizar é um modo humano de conhecer aquilo que ainda não se manifestou à nossa consciência e que provém da totalidade, do não polarizado. É o modo humano de trazer da totalidade suas manifestações para a consciência.
O ser humano realiza em imagens as projeções psíquicas sobre conteúdos provenientes de fora de nossa consciência e que estimulam a psique a operar, a interagir.
Estes estímulos podem se originar tanto de nosso interior, percebidos como estados mentais, ideias, memórias, invasões, como do que percebemos como proveniente do exterior, qual seja, aquilo que estimula nossos sentidos. Também, tanto elementos do passado como prospecções e germes do futuro podem emergir do inconsciente por meio de símbolos, transcendendo nosso tempo imediato de vida.
O trabalho de psicoterapia propicia à consciência conhecer à psique em maior profundidade. Estar uma alma humana diante de outra alma humana, em escuta qualificada, potencializa a transformação de consciência e a individuação da psique inconsciente: a realização do coletivo na experiência singular de uma psique subjetiva – o que se constitui, tanto quanto conseguimos perceber, no supremo sentido e no significado da existência humana, na colheita dos frutos do processo de simbolizar.
Silvia Maria Guerra Molina – Membro Analista IJEP
Maria Cristina Mariante Guarnieri – Membro Didata IJEP
Bibliografia:
JUNG, C.G. (org.), M.-L. von Franz, J.L. Henderson, J.Jacobi, A. Jaffé O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1969, 316p.
______ A natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 1986, 402p. (OC, XI/5).
______ Aion – estudos sobre o simbolismo do si mesmo. Petrópolis: Vozes, 1990, 317p. (OC, IX/2).
______ Símbolos da transformação. Petrópolis: Vozes, 2013, 653 p. (OC, V).
PIERI, P.F. (dir.) Dicionário Junguiano. São Paulo: Paulus, 2022 (ebook).
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