De acordo com a simbologia taoísta, o tigre e o dragão são criaturas complementares que refletem os princípios do Tai Ji (a verdade suprema formada pelos opostos complementares Yin e Yang). O tigre é de natureza yin e apresenta um comportamento mais agressivo, territorialista, é um caçador nato. O dragão representa o yang, é símbolo de sabedoria; é forte, astuto e sabe a hora de agir. É um espírito velho e sábio. O tigre contém a semente do dragão dentro de si, assim como o Yin possui a semente do Yang. O dragão também possui um pouco do tigre dentro dele, assim como o Yang possui uma parte Yin.
Podemos usar essa simbologia como metáfora e/ou analogia para diferentes – e talvez infinitas – situações da nossa vida, porém o intuito da presente reflexão é fazer uma breve comparação da teoria do desenvolvimento da personalidade de C. G. Jung, com o simbolismo do tigre e do dragão na cultura chinesa.
Para Jung o ser humano passa por distintas fases durante a vida, e na juventude as ideias, atitudes e convicções que nos acompanham, possibilitam nossa adaptação e integração social de forma bilateral, transformando-nos e, ao mesmo tempo, influenciando o entorno relacional, transformando-o também. Por isso, iremos procurar, muitas vezes, perpetuar durante toda a vida adulta essas atitudes e convicções que foram fixadas, por terem sido importantes na nossa adaptação. Com isso, corremos o risco de nos perder no processo de conquista do espaço social, por esquecermos que, para tal fim, é preciso abdicar das fixações e identificações, outrora aprendidas, que nos mantém unilaterais, negando assim a totalidade do nosso próprio eu. Como diz Jung:
“Quanto mais nos aproximamos do meio da existência e mais conseguimos nos firmar em nossa atitude pessoal e em nossa posição social, mais nos cresce a impressão de havermos descoberto o verdadeiro curso da vida e os verdadeiros princípios e ideais do comportamento. Por isto, é que os consideramos eternamente válidos e transformamos em virtude o propósito de permanecermos imutavelmente presos a eles, esquecendo-nos de que só se alcança o objetivo social com sacrifício da personalidade. São muitos – muitíssimos – os aspectos da vida que poderiam ser igualmente vividos, mas jazem no depósito de velharias, em meio a lembranças recobertas de pó; muitas vezes, no entanto, são brasas que continuam acesas por baixo das cinzas amarelecidas.” (JUNG, 2011, §772)
Em que momento da vida passamos a nos perguntar “o que a vida espera de mim?”. Não existe um momento correto, uma idade específica, como muitas vezes apontou Jung. Isso deve ocorrer mais ou menos na metade da vida, quando deixamos de ser tigres e temos que encontrar o dragão dentro de nós. Até a chegada da metanoia nossa procura é completamente diferente. Nessa primeira metade da vida estamos voltados para fora, para a construção de algo palpável, pela busca da estabilidade financeira, pelo acasalamento, fama, etc. Somos tigres em busca de marcar nosso território. Desvencilhar dessa atitude felina, selvagem, material, requer prontidão e esforço, porque foram essas atitudes que estão fixadas e até reforçadas pelo mundo exterior. Apesar disso, graças a elas conseguimos nos adaptar de maneira razoável até a chegada da metanoia.
Como mestre e aluno de kung fu, ouvi algumas vezes do meu grão mestre a frase “dois grandes tigres não podem ocupar a mesma montanha”. Podemos encarar essa frase de duas maneiras. A maneira materialista e cartesiana de pensar, é excludente, indicando que será preciso acontecer uma batalha entre os dois tigres para que um seja vencedor e tome conta da montanha, ou um deles deverá simplesmente desistir e se retirar, dando assim espaço ao outro, procurar talvez uma montanha para ele próprio. Mas falta imaginação aí! Na história, ou na frase, não há nada que impeça uma transformação grande. Muitas vezes no meu caminho como artista marcial me peguei pensando nessa frase, e só depois que entrei profundamente na obra junguiana, não só estudando, mas principalmente como analista e como analisando, é que pude perceber e entendê-la de maneira um pouco diferente, com imaginação acima de tudo. Disse algumas vezes para meu analista que a obra de Jung me impressiona num aspecto específico: Jung me empresta uma linguagem – conceitos, dinâmica – para que seja possível explicar melhor o que eu aprendi durante anos com a filosofia oriental, principalmente com o taoísmo.
Por isso, a maneira espiritualista e integrativa, nos ensina que o tigre precisa se transformar em dragão, e como tal, ele abandona a montanha, ele não entra em combate direto com o outro tigre, não precisa provar seu valor. Sua busca, neste momento, vai muito além do território e do poder, sua urgência esmaece, porque seus valores ficaram mais espiritualizados e seu ego mais includente. O novo ser, esse dragão, entende que nada é seu e por isso é livre para buscar aquilo que realmente importa. Ainda assim é grande, forte e poderoso. Confiante e seguro, não entra em disputas pífias. É sábio e não se importa em dividir o que aprendeu ao longo da vida com outros. Porém, sabe que foi tigre e que essa fase foi de extrema importância para se tornar dragão. Sabe que existe uma parte tigre dentro dele, e que ela sempre estará lá para ajudar e para lembrá-lo de sua história. O tigre é matéria, o dragão é espírito.
“Para o jovem constitui quase um pecado ou, pelo menos, um perigo ocupar-se demasiado consigo próprio, mas para o homem que envelhece é um dever e uma necessidade dedicar atenção séria ao seu próprio si-mesmo.” (JUNG, 2011, §785)
Essa frase de Jung descreve com clareza o equilíbrio de ações pregada também pela filosofia taoista. Para o jovem, o que importa é ser tigre, mas isso não quer dizer que a semente do dragão não esteja presente em sua essência. Enquanto busca estabelecer-se como indivíduo na sociedade, por vez ou outra, deverá olhar para si mesmo, mas não de forma exagerada, não é hora ainda. Para o velho sábio, que aceitou e vivenciou a metanoia, o que importa é ser dragão. Já cumpriu sua jornada como tigre, agora é chegada a hora de olhar para si com seriedade, porém sem deixar de agir no mundo exterior dividindo o que aprendeu durante sua vida. O ancião é tão importante para a cultura quanto o jovem.
“Nas tribos primitivas observamos, por exemplo, que os anciões quase sempre são guardiões dos mistérios e das leis, e é através destas, sobretudo, que se exprime a herança cultural da tribo. E como se passam as coisas entre nós, sob este aspecto? Onde está a sabedoria de nossos anciãos? Onde estão os seus segredos e suas visões? Quase sempre a maioria dos nossos anciãos quer competir com os jovens.” (JUNG, 2011, §788)
E somado à essa disputa sem sentido, os jovens de hoje não dão mais a importância devida à sabedoria espiritual dos mais velhos. Temos mais um círculo vicioso do qual teremos muita dificuldade para escapar: os jovens acreditam que os velhos não sabem de nada, estão ultrapassados, não tem mais nada a oferecer. Os velhos, que não despertaram o sábio, disputam espaço com os jovens na sociedade sendo dominados pelo arquétipo do puer/puella, ao invés de encontrar o velho sábio ou a grande mãe dentro de si. Reforçam assim a ideia de que não podem oferecer sabedoria espiritual (nem eles mesmos a encontraram). Provavelmente, por terem sido jovens igualmente unilateralizados e medrosos diante da desconstrução e dominação do tigre, impossibilitando que o dragão interior se manifeste em sua consciência.
Quantas chances a vida irá nos dar de aceitar e abraçar essa transformação? A vida irá insistir inúmeras vezes para que sigamos o caminho do dragão? Ou uma vez que decidimos ficar presos na forma de tigre, estaremos fadados à disputar territórios pelo resto de nossas vidas?
A logomarca abaixo é da escola de kung fu que eu represento, não só simboliza o Tai Ji Tu (representação gráfica da verdade suprema), mas também esse momento da minha autotransformação. Acredito não ser mais um tigre tentando provar meu valor, porém ainda não sou dragão, tenho que procurar por ele, entendê-lo, me tornar seu amigo e integrá-lo ao meu ser. Meu analista, comparando essa logomarca com uma mandala, me perguntou em uma das sessões o motivo dela não estar fechada? Porque o dragão ainda não estava integrado? Demorei alguns meses, mas acho que encontrei uma das possíveis respostas. Eu ainda não sou dragão, mas estou em busca dele. A logo representa então esse momento de transição e me foi dada de presente, não só pelo meu inconsciente, mas pela conversa entre o meu consciente/inconsciente com o consciente/inconsciente do artista que a fez para mim.
Todo momento de transição é duro, cruel e doloroso. Não sou tigre, não sou dragão, mas ainda assim sou os dois. A vida é dinâmica, e respondendo às perguntas do parágrafo anterior, eu acredito que temos infinitas chances de mudar e de nos transformar. A condição de tigre, assim como a condição de dragão, não é eterna.
Me parece que a sociedade e a cultura em que estamos inseridos irá tentar com todas as forças nos empurrar de volta à condição de tigres. Nossas próprias inseguranças e questionamentos dirão que o caminho mais fácil e mais cômodo será esquecer essa ideia de procurar pelo dragão e os tesouros que ele guarda. Porém, cabe a nós não desistir, e continuar nessa busca espiral pelo encontro com o si mesmo.
Referência
Jung, C.G. A Natureza da Psique – A dinâmica do inconsciente. Obras Completas Vol 8/2. Petrópolis, Vozes. (2011)
*Jose Luiz Balestrini Junior, psicólogo, analista junguiano em formação pelo IJEP e Sifu (mestre) de Kung Fu, e-mail: balestrini@lungfu.com.br
Atende e dá aulas na Zona Sul de São Paulo.
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Consultório: (11) 98207-7766