A busca por uma melhor qualidade de vida tem sido uma tendência contemporânea. O ritmo alucinante imposto pelo turbilhão de informações, conectividade e produtividade caracteriza o espírito da época em que vivemos. Mergulhados nesse ritmo de hiperconexão com o mundo externo, internamente nos sentimos desconectados e vazios, condição que gera uma enantiodromia, ou seja, uma força no sentido oposto do movimento consciente, que é justamente essa necessidade de olhar para o mundo interno e se aproximar de si mesmo numa reconexão ao ritmo da alma.
Diante deste fenômeno, podemos perceber o crescimento pela busca do autoconhecimento e pela necessidade de reconexão com o mundo interno, a fim de não viver escravizado pelo espírito da época e encontrar a sua essência para poder viver com sentido e significado.
Na perspectiva da psicologia analítica, a personalidade como um todo é denominada psique, palavra grega que significa originalmente “espírito” ou “alma”.
A psique é constituída de consciente e inconsciente
Podemos dizer de forma resumida que a consciência é a parte da psique conhecida diretamente pelo indivíduo. É aquilo que acreditamos ser. Vale ressaltar que não existe elemento consciente que não se relacione com o ego, gestor da consciência e responsável por todos os esforços de adaptação à realidade. O ego, atua selecionando o material psíquico que acessa a consciência, possibilitando-nos escolher uns e renunciar a outros, e através deste trabalho seletivo e diretivo construímos uma identidade baseada em suas crenças, que na maioria das vezes, visam agradar e ser amado pelo mundo externo.
No entanto, as experiências e características que não são percebidas como importantes pelo ego não desaparecem da psique, pois nada do que foi vivenciado e constitui o indivíduo deixa de existir. Essas experiências ficam armazenadas no que Jung chamou de inconsciente.
Percebemos, assim, que durante o processo de desenvolvimento da personalidade, é natural que algumas características sejam ressaltadas e fiquem no campo da consciência, formando as personas, e outras fiquem inconsciente. Contudo, essa atitude de seleção, quando exercida de forma exagerada, pode desencadear uma divisão interna, através da qual o indivíduo passa a viver conflitos psíquicos, sentindo-se angustiado, vazio e perdido, devido a um esvaziamento que suscita a necessidade de reconhecer e integrar a sua totalidade.
Assim, para que o indivíduo possa experienciar uma vida com sentido e autorrealização é fundamental que os conteúdos inconscientes sejam reconhecidos e integrados à consciência. Condição que possibilita o desenvolvimento das suas potencialidades de acordo com sua essência e não somente passeado no que é considerado importante pelas imposições do espírito da época.
Qual a importância da arteterapia no processo de autoconhecimento?
Por meio da arte é possível acessar emoções e sentimentos que são complexos e confusos para serem expressos de forma intelectual.
A arteterapia utiliza a expressão criativa como ferramenta projetiva que possibilita materializar conteúdos inconscientes conflituosos que afetam o indivíduo, possibilitando aproximá-los da consciência para serem trabalhados durante o processo arteterapêutico.
Na experiência da produção criativa ocorre a relação do homem com o objeto material e, desta relação, algo novo se cria. Ou seja, pela atitude criativa ocorre uma metamorfose que permite dar forma as imagens inconscientes carregadas de emoção. O objeto serve de continente para as projeções inconscientes e o indivíduo, tendo a matéria como espelho, se vê refletido no mais profundo do seu ser.
Desta forma, a expressão criativa pode dar voz e forma as emoções o que permite que elas sejam trabalhadas durante o processo arteterapêutico.
O trabalho com barro é uma das ferramentas arteterapêutica que podem auxiliar o cliente a compreender e reorganizar os seus conflitos e emoções de forma mais lúdica.
O barro como ferramenta arteterapêutica
Para introduzir o barro no processo arteterapêutico é preciso reconhecer as suas propriedades arquetípicas e o potencial transcendente que o seu manuseio proporciona.
Encontramos referências à terra e à água e suas respectivas propriedades arquetípicas, desde o Livro de Gênesis: “E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em seus narizes o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente” (Gn 2:7). Mitologicamente o homem foi criado a partir do barro e na sua morte, volta para suas origens, sendo acolhido por ele.
O trabalho com o barro é uma oportunidade de resgatar o contato com a natureza e promover o reencontro com nosso mundo e ritmo interno.
O barro é um material vivo e o trabalho com ele, nos coloca em contato com a energia da natureza e dos seus quatro elementos: água, terra, ar e fogo.
Trabalhar com o elemento terra no barro é entrar em contato com nossa terra interna que nos dar consistência e sustentação, permitindo enraizar e obter nutrição.
O elemento água no barro proporciona a flexibilidade e maleabilidade para a modelagem. Nos coloca em contato com nossa água interna, com nossas emoções. É a fluidez da água que ajuda a dar forma as sensações, sentimentos e pensamentos que nos atravessam.
O elemento ar no barro nos coloca em contato com o ar que inspiramos e expiramos. Reflete o que estamos comunicando, ou seja, o que é comunicado através da peça.
O elemento fogo entra em ação quando a peça está pronta para comunicar. É o momento em que ganha consistência. Falamos do fogo alquímico onde a peça é transformada de argila em cerâmica. Ocorre uma mudança na matéria. Esse é um momento de muita emoção, no forno tudo pode acontecer, inclusive a peça rachar ou explodir.
Vivenciar os quatro elementos da natureza no contato com o barro possibilita um encontro com a função criativa. Desde o momento de tocar no barro, sentir a massa, amassar e dialogar com ela, até dar forma as sensações experimentadas, as emoções escondidas e as imagens que nos atravessam.
O trabalho com argila tem uma conotação religiosa no sentido primordial de religação com um espiritual que está na natureza, permitindo a manipulação prazerosa e a possibilidade de expressar suas emoções em consonância com um material dotado de energia própria.
Desta forma, o barro apresenta-se como um objeto transicional entre o terapeuta e o cliente. O que possibilita a expressão tridimensional das emoções de maneira respeitosa e no tempo em que a psique dita.
Neste sentido, Gouvêa elucida que:
Como funciona o uso do barro no setting arteterapêutico?
O barro pode ser utilizado de diversas formas como ferramenta arteterapêutica. A mais frequente se dá em experiências livres, onde o cliente precisa estar à vontade para explorar o material e criar sem nenhum tipo de direcionamento, o que facilita acessar as imagens que estão por trás das emoções, dando-lhes formas e consciência.
O amassar já é em si um ato transformador, conduz a um estado onírico de liberação e faz com que o amassador se confunda com a massa e desperte sentimentos e emoções, como exemplo, podemos observar a reação do cliente que pode ser de mal-estar em lidar com o sujo ou a alegria e leveza de viver essa experiência de liberdade.
Pela construção de máscarasdurante o processo terapêutico surge a possibilidade de um desvelar revelando-se, permitindo materializar o indizível aprisionado na dualidade, dando forma e expressão a personagens que vivem no âmago do ser. Traduzir-se em máscaras é nos revelar por inteiro, vivenciar rostos desconhecidos ou negados que clamam por serem acolhidos e integrados a personalidade.
Modelar sonhos também é uma das possibilidades do uso do barro no setting arteterapêutico, visto que muitas vezes não é suficiente explicar o contexto do sonho. Surgindo a necessidade de esclarecer conteúdos obscuros, imprimindo-lhe uma forma visível.
Jung ressalta que:
As imagens modeladas podem não agradar, podem rachar depois de secas, mas também podem ser remodeladas, e isso é uma metáfora para a possibilidade de recomeçar, ao renascimento que o barro evoca. Assim, através do contato com o barro, aos poucos, o cliente recupera a capacidade de sentir o mundo e a si mesmo. Reconhecendo e integrando aspectos desconhecidos da sua personalidade, desenvolvendo a criatividade e a maleabilidade que permite fluir no mundo com mais qualidade e inteireza.
Caroline Costa – Analista em formação IJEP
Waldemar Magaldi – Membro didata IJEP
Referências:
DINIZ, Lígia. Arte linguagem da alma: arteterapia e psicologia junguiana. Rio de Janeiro: Wak, 2019.
GOUVÊA, Álvaro de Pinheiro. Sol da terra: o uso do barro na psicoterapia. 2. ed. São Paulo: Summus, 2019.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
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