Dia desses me enviaram uma frase, atribuída de maneira incerta — e provavelmente errada — a Eça de Queiróz, dizendo que não deveríamos ter medo de pensar diferente dos outros. O medo, segundo o autor desconhecido, deveria ser o de pensar igual aos outros e todos estarem errados. Mas onde termina a opinião da maioria e começa a opinião própria?
Acredito que o problema em pensar igual aos outros não seja exatamente a má sorte de se descobrir errado em grupo, mas sim o preço que se paga, em primeiro lugar, para ter a mesma opinião da maioria, quando a própria opinião não é alcançada com uma reflexão crítica e honesta.
Vejamos: já não é novidade que a maioria das pessoas não define o que é correto. A maioria das pessoas define o que é aceito. E é claro que o que é aceito frequentemente é visto, principalmente pelo homem médio, como correto.
Por isso, no decorrer da história, vimos pessoas serem castigadas, mulheres serem queimadas, cientistas serem presos, políticos serem exilados e povos serem dizimados por ter ou parecer ter opiniões conflitantes com a opinião geral ou de quem está no poder.
Uma antiga inscrição no templo de Apolo, em Delfos, dizia “conhece-te a ti mesmo”, que podemos compreender basicamente como um convite para que busquemos conhecimento sobre nós mesmos e, a partir desse conhecimento, busquemos a verdade sobre o mundo.
Torna-te quem tu és
Nietzsche, em sua obra Ecce Homo, revisita o convite do poeta grego Píndaro: “Torna-te quem tu és”, afirmando estar contrapondo a inscrição do templo de Apolo. Aquela, de Delfos, colocaria o conhecer como algo da reflexão interna, do pensamento. Esta reflexão, de Píndaro, se relaciona mais com a experiência prática do indivíduo no mundo.
Nietzsche defende a ideia de que devemos nos apropriar do que somos por meio da ação e não buscar um ideal de “eu” e tentar alcançá-lo. Prática esta que, segundo ele, envolveria moldar-se de maneira desonesta, renunciando a si mesmo para cultivar práticas consideradas “ideais”.
“[…] o conhece-te a ti mesmo seria a fórmula para a destruição, esquecer-se, mal entender-se, empequenecer, estreitar, mediocrizar-se.”
Nietzsche, Ecce Homo
Não pretendo entrar aqui na perigosa intenção de julgar a frase do templo de Apolo, tão profundamente trabalhada pelos antigos filósofos. Muito menos pretendo acender minha arrogância a ponto de condenar uma mente tão grandiosa como a de Nietzsche, pelas provocações que teceu — e que, confesso, me agradam muito.
Para mim, as duas frases, de modos diversos, chegam a uma mesma ideia: é preciso ter autonomia interna perante o mundo. A partir dessa premissa, a questão que tento trazer aqui parece-me mais superficial — ou não: se o que a maioria pensa define o que é aceito — e não o que é certo —, quem molda as próprias opiniões para encaixá-las às da maioria busca, na verdade, aceitação, e não estar honestamente certo. Em suma, será que sacrificar-se — sacrificar a autonomia interna — é um preço válido para ser aceito pela maioria?
E o que exatamente se sacrifica para ser aceito?
“Sermos nós mesmos faz com que acabemos excluídos pelos outros. No entanto, fazer o que os outros querem nos exila de nós mesmos.”
ESTÉS, 2014
O velho Jung, em sua pequena e rica obra Presente e futuro, nos ensina que:
Não há e não pode haver autoconhecimento baseado em pressupostos teóricos, pois o objetivo desse conhecimento é um indivíduo, ou seja, uma exceção e uma irregularidade relativas. Sendo assim, não é o universal e o regular que caracterizam o indivíduo, mas o único.
JUNG, 2013b
Um universo massificado
Além disso, Jung também afirma, na mesma obra, que, em um universo massificado — tomando massificação, nesta reflexão, como um processo de destruição da capacidade de reflexão crítica e consciência individual em nome da adoção de comportamentos e ideias automaticamente aceitas pela coletividade —, “O indivíduo […] possui uma importância mínima. É uma espécie em extinção. Quem ousa afirmar o contrário sofrerá imensos embaraços em sua argumentação”. E, ainda, que “quanto maior a multidão, mais ‘indigno’ o indivíduo […] esmagado pela sensação de sua insignificância e impotência […].”
Com base na análise acima, Jung ainda diz que o juízo individual — ou seja, a capacidade de reflexão crítica — se torna cada vez mais inseguro, fazendo com o que o indivíduo acabe por renunciar ao próprio julgamento.
Podemos compreender que, a partir dessa renúncia do próprio juízo, o indivíduo passar a confiar, sem refletir, no julgamento do que é definido pela maioria ou por quem está no poder formal ou no poder reconhecido pelo indivíduo — o Estado, um partido político, um clube ou uma associação, uma organização religiosa, etc.
O homem comum, que é predominantemente o homem da massa, em princípio não toma consciência de nada nem precisa fazê-lo, porque, na sua opinião, o único que pode realmente cometer faltas é o grande anônimo, convencionalmente conhecido como “Estado” ou “Sociedade”.
Mas aquele que tem consciência de que algo depende de sua pessoa, ou pelo menos deveria depender, sente-se responsável por sua própria constituição psíquica, e tanto mais fortemente, quanto mais claramente se dá conta de como deveria ser, para se tornar mais saudável, mais estável e mais eficiente.
Mas a partir do momento em que se achar a caminho da assimilação do inconsciente, pode ficar certo de que não escapará a nenhuma dificuldade que é uma componente imprescindível de sua natureza. O homem da massa, pelo contrário, tem o privilégio de nunca ser culpado das grandes catástrofes políticas e sociais em que o mundo inteiro se acha mergulhado.
JUNG, 2013a
Parece óbvio que uma sociedade massificada combate exatamente a autonomia interna, a consciência e a atividade reflexiva individual que tanto buscamos na análise junguiana. Portanto, as ideias massificadas roubam do indivíduo a possibilidade de atravessar o esforço e o sofrimento necessários para que se alcance a própria essência.
E, sem a busca pela própria essência, ao meu ver, esse indivíduo está condenado a se desconectar do seu próprio processo de desenvolvimento, que exige uma organização interna única. E, ainda, a ser sugado de maneira violenta pela massa coletiva, para que assuma em si os moldes — ideias, ética, julgamentos — aceitos por determinada coletividade.
“Somente aquele que se encontra tão organizado em sua individualidade quanto a massa pode opor-lhe resistência” – JUNG, 2013b
Caso contrário, o indivíduo acabará por sacrificar sua própria essência para conseguir assumir a unilateralidade predominante no grupo do qual deseja sentir-se parte. Assim sendo, cito, por exemplo, do partidário que evitará refletir sobre as ideias indigestas do partido ou político que defende.
O religioso fiel reprimirá em si os impulsos humanos condenados pelo líder de sua congregação e ignorará as “falhas” desse líder, não interessa quantas provas tenha delas. O cientista baseado em evidências negará suas experiências numinosas.
O analista junguiano não dará voz interna a uma crítica em relação a alguma antiga opinião de Carl Gustav Jung. Na realidade, mesmo que lhe pareça clara em si a reprovação da opinião — a mesma coisa com freudianos, lacanianos, gestaltistas, etc. E por aí vai… E, ao fazer isso, esse indivíduo também sacrificará a totalidade de si — que inclui todos os opostos e não se forma na unilateralidade — e, com isso, se afastará de sua jornada de individuação.
Afinal… Ser aceito pelas pessoas realmente é algo importante, de certa maneira. Talvez sentir pertencimento seja algo necessário em algum nível. Apesar disso, na clínica podemos facilmente notar que pessoas que conseguiram ser muito aceitas pela coletividade ou por grupos específicos que acha importante não necessariamente sentem-se bem consigo mesmas.
E isso talvez aconteça exatamente porque receber algo do externo não modifica o interno.
Como o próprio Jung afirma, “a comunidade não é capaz de transformar interiormente o indivíduo” (JUNG, 2013b).
O externo, segundo ele, não tem condições de oferecer aquilo que o homem só pode adquirir com o próprio esforço e desenvolvimento interno. Nesse contexto, por exemplo, a pessoa que é amada não será capaz de sentir amor se não amar a si mesma antes.
E a pessoa aceita por um grupo provavelmente não sentirá, ou não sustentará um pertencimento se não aprender a aceitar-se como realmente é em sua totalidade. Principalmente se essa aceitação externa for construída a partir da repressão de partes importantes de si e do sacrifício da própria essência.
E, digo mais, talvez, ao aprender a se aceitar em sua totalidade, mesmo contradizendo o que a massa defende, o indivíduo se torne capaz de alcançar autonomia a ponto de não se importar tanto pela não aceitação de si por algum grupo específico.
Leandro Scapellato: Membro Analista em Formação IJEP
Waldemar Magaldi: Analista Didata e Coordenador IJEP
Referências:
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da Mulher Selvagem. 1ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2013a.
JUNG, Carl Gustav. Presente e futuro. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2013b.
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