C. G. Jung relata que quando tinha seis anos de idade sua mãe costumava ler para ele um pequeno livro intitulado Orbis Sensualium Pictus. Esse livro, concebido para crianças, foi publicado em 1658 por Iohanes Amos Comenius, filósofo, teólogo e pedagogo que viveu no séc. XVII na região que hoje corresponde à Republica Checa. Era um homem extremamente preocupado com a maneira como a educação era encarada em sua época e estabeleceu com sua obra muitos princípios que serviram de base para várias das escolas pedagógicas que conhecemos hoje. Acreditava que era preciso implantar inovações nas metodologias de ensino que ajudassem as crianças no seu processo de aprendizado. Alguns exemplos de suas ações para isso foram: adicionar imagens que acompanhavam os textos; usar o teatro e a encenação para educar; lutava pelo ensino prático e sem maus tratos dos alunos; postulava que todos os seres humanos tem um dom inato para o conhecimento e que o saber não deveria ser restrito a uma elite. Comenius defendia também que as mulheres tivessem acesso à educação, o que, obviamente, era negado e visto como absurdo em sua época. Seu livro mais conhecido é a Didáctica Magna, texto fundante do projeto educacional comeniano.
Mas, o que mais interessa para a presente reflexão, é a relação indireta que Jung teve com esse autor através de sua experiência com o Orbis Sensualium Pictus. O livro, concebido para o ensino do latim para crianças, contém imagens e suas respectivas definições nessa língua. A ideia principal era que as imagens ajudassem as crianças a aprender conceitos e descrições de objetos e situações da vida e do mundo, ao mesmo tempo em que aprendiam a língua. Jung ainda adiciona em seu relato que adorava ficar olhando para as imagens enquanto sua mãe explicava o texto que as acompanhavam. Poderíamos ampliar muito o trabalho de Comenius numa comparação com as práticas pedagógicas que vivemos atualmente e com as tentativas absurdas e retrógradas de uma parcela de políticos e da própria população que agem de maneira regredida para retornar à práticas abusivas e violentas de métodos de ensino medievais que não incitam capacidade reflexiva. Porém, nosso objetivo é dar atenção para a importância que as imagens podem ter ganhado na formação de Jung a partir de seu contato com a obra de Comenius.
Muitos autores de diferentes áreas do conhecimento deram atenção para o estudo teórico da imagem, como por exemplo o mitólogo e antropólogo Gilbert Durand que escreveu em uma revista de conteúdo junguiano no ano de 1971: “Cinquenta anos atrás, William James disse que o inconsciente era a maior descoberta do século XX. Agora podemos dizer que os conteúdos do inconsciente (imagens) serão o campo de exploração mais importante para o século XXI.” (Extraído de HILLMAN, 2018, pág. 9) A afirmação de Durand comprova sua intuição acertada quando no momento atual da nossa história como espécie vivemos uma invasão de imagens produzidas artificialmente pela inteligência artificial ou por aplicativos que permitem as pessoas transformarem e criarem visões completamente falsas da realidade concreta. Tudo isso para ser publicado de maneira desmedida nas redes sociais em busca de uma audiência amorfa e desprovida de sentido, assim como as próprias publicações. Estabelecemos uma espécie de cultura do simulacro que se revela no culto à essas imagens produzidas artificialmente. Não é difícil perceber que esse fenômeno se manifesta principalmente nas telas dos aparelhos eletrônicos que utilizamos abusivamente nos dias atuais. Enquanto isso, as imagens internas, de grande potencial simbólico, acabam negadas e esquecidas por essa sociedade que prega a unilateralidade da extroversão, onde o mundo subjetivo é desdenhado como algo sem importância.
Do ponto de vista teórico, mas principalmente na prática clínica psicológica, podemos afirmar que Jung foi um dos primeiros a dar grande importância para o trabalho com a imagem, não só na busca da cura das psicopatologias, mas também como ferramenta para o ser humano buscar sentido e significado em sua vida através do contato com as produções do inconsciente. Muitas vezes falamos sobre os símbolos e a importância que eles possuem na transformação da energia psíquica, porém, não podemos esquecer que eles só podem surgir na forma de imagens. Como disse James Hillman: “Todo processo psíquico é uma imagem, disse Jung. Os símbolos aparecem, só podem aparecer, em imagens e como imagens. Eles são abstrações das imagens (se não o fossem, não poderíamos pesquisá-los em dicionários e livros de referência).” (HILLMAN, 2018, pág. 22)
Segundo Jung a imagem produzida pela psique é uma conjunção energética importante que une a situação da consciência e do inconsciente, por isso ela é carregada de valor simbólico:
A imagem é uma expressão concentrada da situação psíquica como um todo e não simplesmente ou sobretudo dos conteúdos inconscientes. É certamente expressão de conteúdos inconscientes, não de todos os conteúdos em geral, mas apenas os momentaneamente constelados. Esta constelação é o resultado da atividade espontânea do inconsciente, por um lado, e da situação momentânea da consciência, por outro, que sempre estimula a atividade dos materiais subliminares relevantes e inibe os irrelevantes. A imagem é, portanto, expressão da situação momentânea, tanto inconsciente quando consciente. Não se pode, pois, interpretar seu sentido só a partir da consciência ou só do inconsciente, mas apenas a partir da sua relação recíproca. (JUNG, 2013, § 829)
Portanto, podemos dizer que os símbolos são os elementos que formam a imagem. Cada uma dessas partes pode ser ampliada de acordo com seus significados pessoais, culturais e arquetípicos. Jung diz que o símbolo é a melhor expressão possível daquilo que não pode ser descrito em sua totalidade.
Todo produto psíquico que tiver sido por algum momento a melhor expressão possível de um fato até então desconhecido ou apenas relativamente conhecido pode ser considerado um símbolo se aceitarmos que a expressão pretende designar o que é apenas pressentido e não está ainda claramente consciente. (JUNG, 2013, § 908)
Recebi de presente de uma cliente há alguns meses uma edição do livro de Comenius pelo qual fiquei encantado. Fui arrebatado pela ideia de que tinha agora a chance de imaginar como havia sido para um Jung de seis anos de idade olhar para aquelas imagens. Sem muito esforço podemos encontrar semelhanças entre as figuras contidas no livro e as produções do próprio Jung. Obviamente que tudo aquilo que pudermos inferir sobre a influência que elas tiveram na maneira que Jung olhava para o mundo não passam de fantasias nossas, imagens que nós mesmo criamos para tentar explicar o mundo que nos cerca. Ao mesmo tempo, acredito que seja impossível negar que essas imagens, assim como os textos que as acompanham, tiveram um papel primordial no desenvolvimento do pensamento de Jung.
Dentre as mais de 300 imagens que o livro traz, para esse artigo escolhi apenas um exemplo que, na minha opinião, mostra de maneira metafórica uma parte importante daquele que o próprio Jung se tornou como estudioso da psique, dos fenômenos e experiências que permeiam a vida humana. No capítulo 101, intitulado Philosophia – traduzido para o espanhol como “sabiduría”- Comenios escreve: “O físico observa todas as obras de Deus no mundo. O metafísico investiga as causas e efeitos das coisas.” (COMENIUS, 2017, pág. 221) Podemos observar a imagem que acompanha esse texto na Figura 1.
A Figura 2 foi retirada do livro Psicologia e Alquimia e serve para ilustrar, não somente a semelhança entre as imagens apresentadas pelos dois autores, mas também a proximidade das ideias que Jung desenvolveu e disseminou ao longo de sua vida. Essa imagem e texto específicos chamam atenção também para o homem de dupla – talvez seja mais acertado usarmos a expressão múltipla – personalidade que ele próprio percebeu ser através de suas experiências imaginais. Podemos dizer que Jung foi um cientista que elaborou sua teoria através da própria experiência dos fenômenos que descreveu. Ele era, sem sombra de dúvidas, um físico e um metafísico no sentido comeniano descrito acima. Num primeiro momento parecia buscar fora, nas imagens já produzidas em muitos períodos da história e nas mais diferentes culturas aquilo que ainda não estava claro para ele em sua própria psique. Mais tarde, principalmente após seu rompimento com Freud, foi invadido por imagens (de maneira alguma exclusivamente visuais) que o obrigaram a mergulhar em seu próprio mundo interior. Tomado pelas imagens enviadas pelo espírito das profundezas de sua psique, não teve outra alternativa a não ser transformá-las em narrativas (em seus Livros Negros), para mais tarde pintá-las (quando organizou o material para o Livro Vermelho). Durante esse processo, ainda nas décadas de 1910 e 1920, descobriu de maneira natural as mandalas; representações gráficas circulares da totalidade da psique; imagens que descrevem a dinâmica dos conflitos e discordâncias, assim como das alianças e conciliações entre a consciência e o inconsciente.
Na legenda do texto podemos ver a questão religiosa que sempre foi importante para Jung. Os alquimistas precisam da benção divina para empreender sua jornada de conhecimento e descobertas. As imagens do físico e do metafísico existem em cada psique de maneira arquetípica. Cabe a nós, através do exercício do pensamento simbólico; da leitura metafórica da vida e do mundo; das vivências e experiências com as imagens e com a imaginação acessar essas potencialidades. Não foi por acaso que Jung desenvolveu como umas das ferramentas principais no trabalho analítico a técnica que ele denominou como Imaginação Ativa. Imaginemos!
José Balestrini – Analista em Formação pelo IJEP
Analista Didata: Waldemar Magaldi
REFERÊNCIAS
COMENIUS, Iohannes Amos. Orbis Sensualium Pictus. Espanha: Libros del zorro rojo, 2017
HILMMAN, James. Uma investigação sobre a imagem. Petrópolis: Vozes, 2018
JUNG, Carl Gustav. Tipos Psicológicos. 7ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2013