Carl Gustav Jung afirmou que arquétipos são marcas ou impressões que envolvem motivos mitológicos, presentes nos contos de fadas, nos mitos, no folclore, nas lendas (Cf. JUNG, 1985, §80). São potencialidades psíquicas herdadas de todos os povos e de todos os tempos, que se manifestam por meio de imagens e são conteúdos que fazem parte do inconsciente coletivo e não podem ser relacionados com o eu de forma perceptível, como ocorre com a consciência. Para melhor entendimento, simbolicamente pode-se comparar o inconsciente com um oceano e a consciência com uma ilha. Desta forma, percebe-se a imensidão de conteúdos que estão imersos no inconsciente.
Os arquétipos do rei e da rainha, de acordo com a psicologia analítica de Carl Jung, representam forças de poder, de liderança, de autoridade afável ou autoritária. São representantes que precisam tomar decisões sábias e estabelecer ordem e justiça onde atuam. O posto do rei ou da rainha indica o grau mais elevado que se pode atingir e a coroação é a sua afirmação. Na vida real, em todas as áreas, também ocorrem coroações de indivíduos que se destacam e que, muitas vezes, são idolatrados.
Surgem as questões: há necessidade de cultuar reis, rainhas ou seres poderosos? Que estrutura psíquica está envolvida nestas projeções? Por quê? Para quê?
Algumas práticas na sociedade envolvem as projeções de rainha e rei, de forma coletiva ou individual. É o caso das músicas, que nas suas letras expressam esse conteúdo e se estendem para as relações afetivas, como a melodia Céu de Santo Amaro, hoje ouvida em muitas celebrações de casamentos, que se originou de uma cantata alemã. Arioso, de Johann Sebastian Bach (1685-1750) inspirou Flávio Venturini:
Os ditos populares também reproduzem a força do reinado: “ela pensa que tem o rei na barriga”, que expressa a necessidade de reverência maior, como nos tempos de monarquia em que a rainha grávida do rei era venerada. Assim como a frase “quem foi rei nunca perde a majestade”, retratando uma posição de poder e prestígio que nunca acaba.
O poder é fascinante para os indivíduos, porém sabe-se que ele é o oposto do amor e da sabedoria.
Rainha é uma palavra que deriva do latim Regina e segundo o minidicionário da língua portuguesa é “mulher do rei; soberana de um reino; a principal, a primeira entre outras; abelha mestra” (BUENO, 2000, p. 649). No sentido figurado é aquela que tem grande poder em relação aos outros. Para a zoologia, é uma fêmea que fertiliza, como abelhas, formigas e térmitas. Em contrapartida, também destroem. As térmitas, também conhecidas como cupins, fazem um grande estrago em madeiras e solos, apesar de terem contribuições significativas na cadeia alimentar. Percebe-se que esse poder é benéfico e ao mesmo tempo ameaçador.
No mundo animal também comparecem outros reinados, que são identificados pela coragem, imponência ou beleza. É o caso do leão, considerado o rei da floresta. Quem não lembra do filme infantil O Rei Leão (1994), da Disney? Ele reproduza história de um filhote de leão influenciado pelo tio, que deixa a sua terra natal por acreditar que causou a morte do pai. Posteriormente, confronta o passado e retorna para a sua casa.
Quantas vezes os seres humanos abandonam a sua essência e os seus sonhos por acreditarem que não são merecedores!
Do mesmo modo, o rei das águas e dos mares é o predador Tubarão-branco, devido ao seu tamanho e força. O rei do rio é o peixe Dourado. O pré-histórico Tiranossauro é considerado o rei dos dinossauros e/ou rei dos lagartos. Na colmeia, a rainha é a Abelha. A Águia, por sua vez, é respeitada como rainha dos céus ou das aves, representando soberania, beleza e imponência, que é o símbolo de Zeus, o mais poderoso dos deuses da mitologia grega. Hera é considerada a rainha dos deuses por ser esposa de Zeus. No mundo vegetal, a mais bela e nobre das árvores floríferas é asiática, chamada de Amherstia nobilis, porém no contexto popular a Rosa é considerada a rainha das flores, a Artemísia a erva mais poderosa da terra e o Ipê é considerada a árvore mais resistente. Na Bíblia Sagrada, a Oliveira é considerada a árvore sagrada.
Os quatro elementos – terra, ar, água e fogo – presentes em todas as formas de vida também são representados por divindades de poder.
Poseidon é o responsável pelas ondas e correntezas do mar. Hefesto é deus do fogo e da metalurgia. Pegasus, em forma de cavalo alado, é considerado por muitos o rei dos céus. Gaia é a grande mãe terra, com enorme potencialidade geradora. Desde os povos antigos os indivíduos necessitam de poder e os mitos revelam esses aspectos, como a história do mito de Édipo, bem conhecida e que também envolve a história de um rei e uma rainha. Édipoé filho do rei Laio e da rainha Jocasta e ambos cumprem a profecia de que ele matará o próprio pai e irá desposar a mãe.
Geralmente o rei é a figura máxima, porém no jogo de xadrez a peça maior é a rainha – também conhecida como dama – que pode se movimentar sem limites na horizontal e na vertical, enquanto o rei pode se movimentar para onde quiser, mas com o limite de uma casa por lance.
No jogo da vida, tal configuração não é real, embora a dama que é a representação do feminino exerça múltiplas funções. O patriarcado ainda valoriza muito o masculino.
Na história geral muitos reis se destacaram, como o rei Artur e o rei Davi. Outros também tiveram sua importância, como o rei francês Luís XIV, conhecido como o Rei Sol, o maior dos reis absolutistas da França. Ele construiu o luxuoso Palácio de Versalhes, apesar da pobreza existente, porém durante seu reinado surgiu algo muito importante, principalmente para a psicologia analítica junguiana. Charles Perrault, um advogado brilhante que prestou serviços por duas décadas ao Rei Sol, contava histórias que não tinham autores para as damas da corte e as transformou em livro em 1697, surgindo assim os Contos de Fadas.
Mais de um século depois, as histórias contadas para os adultos foram transcritas pelos irmãos Grimm para o mundo infantil e se transformaram em outro livro: Contos da Infância e do Lar.
Os contos de fadas envolvem uma experiência vivida: “Assim como os mitos, os contos de fadas possuem uma linguagem simbólica que possibilita a manifestação da psique. Os contos de fadas envolvem algo já existente no coletivo” (STRIEDER, 2020, p. 149).
Ao mesmo tempo, retratam a cultura do povo, como os dois contos sobre o rei e seus súditos: A Catedral do Rei e O Rei no Banho. Eles envolvem polaridades opostas do rei – a soberba e a humildade – e evidenciam aspectos sombrios e a necessidade de um processo de cura.
Jung, no volume 4 dos Livros Negros, apresenta diálogos que envolvem suas dores da alma que necessitavam de cura: “Quero retornar para minha obra. O que ainda me detém?” (JUNG, 2020, p. 268).
Ele aprofunda suas reflexões com um conto de fadas de um rei que queria ter um filho e que precisava ressignificar a melancolia e o arrependimento. O rei procurou uma mulher sábia que o ajudou e seu desejo se realizou ao seguir as instruções dadas por ela. O filho se tornou adulto e exigiu o seu reino. O rei ficou abalado e decidiu matar o seu filho. Ficou melancólico, arrependeu-se e novamente pediu ajuda da sábia. Desta vez já estava ciente do que aconteceria. Levantou-se do trono, abraçou seu filho e o coroou rei. Jung simbolicamente compreendeu que o velho rei era ele e o filho era sua obra. E concluiu:
“Deixa que tudo cresça, que tudo floresça – uma obra cresce por si mesma.” (JUNG, 2020. p. 272)
No inconsciente coletivo do povo brasileiro histórias de reinados se reproduzem. Tudo começou com os imperadores Dom Pedro I e Dom Pedro II. Não tivemos uma rainha porque a família real já estava no exílio desde 1891 quando o rei faleceu, porém reis e rainhas simbólicos são idolatrados e atravessam a história, em todas as áreas, como o rei Pelé e rainha Marta, que representam o futebol. De modo similar, a rainha Hortênsia do basquete, a Xuxa, considerada por anos a rainha dos baixinhos e o rei Roberto Carlos, cantor romântico que até nossos dias é coroado, entre tantos outros.
As novelas da televisão também retratam a projeção do poder e da liderança. Como exemplo, a Rainha da Sucata, de Silvio de Abreu, exibida pela Rede Globo em 1990, que mostrou a realidade dos novos ricos e da decadência da elite paulistana. A personagem Maria do Carmo enriqueceu e continuou humilde. Também, O Rei do Gado, telenovela exibida em 1996, escrita por Benedito Ruy Barbosa, retratou as histórias de ódio e amor das famílias descendentes dos Mezenga e dos Berdinazzi, vizinhos que viviam em clima de guerra por questões de demarcação de terra e disputa de reinados. O ibope das novelas atingiu pontos elevados, que pode representar o quanto a sociedade é envolvida em padrões que configuram o poder e a humildade.
Uma outra forma de perceber a presença dos arquétipos do rei e da rainha é pelo que ocorre nos jogos de baralho e de tarô.
De acordo com o site Brasil Escola, nas cartas de baralho os naipes são símbolos que aparecem em forma de espadas, paus, copas e ouro. A dama é a figura de uma rainha, representada com a letra Q (queen no inglês) e vale 12. O rei é representado pela letra K (king no inglês) e vale 13. Queen e King também são palavras utilizadas para nomear produtos, pela sua imponência e sedução.
Da mesma forma, diferentes livros e sites informam que a origem dos naipes foi inspirada em pessoas reais (geralmente personalidades históricas e bíblicas) e foram criados em sua homenagem, como por exemplo a Rainha de Espadas, que nos remete para à deusa grega Atena, assim como o Rei de Ouros representa o imperador Júlio César. As cartas de tarô, por sua vez, com seus arcanos maiores, arcanos menores e os elementos clássicos ouros (terra), espadas (ar), paus (fogo) e copas (água), também traduzem as diretrizes divinas em busca do desconhecido e as projeções inconscientes, por meio de símbolos ancestrais, para se tornarem conscientes.
Até aqui foram abordados aspectos de poder, de nobreza e de liderança, que soam como aspectos positivos. No último livro que Jung escreveu – Mysterium Coniunctionis – 14/2, a meta da união, ele aborda a alquimia filosófica, com abundância de símbolos para explicar o problema central: a unificação e superação de opostos.
A coniunctio é a união dos opostos e sua imagem simbólica é o casamento do sol com a lua, do princípio masculino com o feminino ou do rei com a rainha, que podem ser entendidos como a meta do processo de individuação.
No capítulo Rex e Regina, ele contempla o rei e a rainha não como figuras estáticas, mas seres dotados de corpo, alma e espírito, em processo dinâmico de transformação diante de conflitos vividos e aspectos sombrios, perpassando pelas fases e operações alquímicas, que envolvem os elementos água, terra, ar e fogo. Ainda, em seu livro Jung exemplifica a regeneração do rei com a ampliação da parábola Cantinela. Percebe-se na fala de Jung que, por trás das personas de fortaleza, o rei e a rainha também apresentam aspectos sombrios e conflitantes, permeados de opostos, geralmente voltados para a ética e o etarismo. Eles lidam com o envelhecer, com a perda da capacidade generativa e o medo do caos.
Alguns contos de fadas retratam aspectos sombrios da psique em forma de angústias. O rei doente ou velho, que precisa ser substituído, comparece na história do Gato de Botas dos irmãos Grimm. No conto de fadas O Velho Rink Rank, também dos irmãos Grimm, o rei manda construir uma armadilha contra os pretendentes que querem casar com a sua filha, evitando que o futuro genro tome seu lugar. Neste caso, o apego ao poder é doentio. Jung confirma: “Conforme a declaração da alquimia, o velho rei se transforma em seu atributo animal, isto é, retorna à fonte psíquica de renovação, que é a natureza animal.” (JUNG, 2012, §66)
Vindo ao encontro, Jung teorizou sobre a alquimia e uma das fases é a nigredo, que envolve a decomposição, a morte e o renascimento. “A decadência do rei se deriva de sua imperfeição ou de sua doença” (JUNG, 2012, §131).
Além disso, outros aspectos sombrios podem comparecer em forma de medo do reinado ser destruído, das consequências dos seus comportamentos manipuladores, associados ao autoritarismo. Geralmente os reis e as rainhas são admirados ou considerados tiranos.
Como foi mencionado, o rei e a rainha também apresentam aspectos sombrios e se renovam, mesmo exercendo a liderança, a soberania, o controle, a ordem, a aparência e as responsabilidades, que soam para os súditos como como aspectos louváveis. A dignidade e o poder também exigem sacrifícios e até o pavão renova anualmente sua plumagem. O poder é sedutor e contagioso, pois traz na sua essência as sensações de controle, estabilidade e domínio do ambiente, porém onde há excesso de controle, há marcas das vivências de descontrole, insubordinação e desorientação. Ao mesmo tempo, a sede de poder revela marcas psíquicas de dependência, submissão e obediência.
Após percorrer pelos diferentes reinados, pode-se dizer que no nível da consciência o poder fascina, pois alimenta o ego, que tem uma tendência de se tornar unilateral. O Self é o centro regulador da psique e muitas vezes é associado a imagens que representam o poder, como reis e rainhas, por proporcionarem bem estar. Neste sentido, é importante promover a flexibilização das polaridades opostas para ocorrer a cura, que não é a ausência de conflitos, mas a nova forma de lidarmos com as diferentes situações.
A psicoterapia auxilia o processo de trazer os conteúdos do inconsciente para a consciência e Jung sabiamente o descreveu:
É um caminho que requer estabelecer a harmonização entre a ordem e o caos.
Reinar exige habilidades de dominar, de dirigir, de mandar e envolve conhecimentos sobre ordenar e exercer poder, influência e domínio. Na falta destas habilidades, idolatram-se nos reis, nas rainhas e em outros indivíduos que possuem tais atributos. Ou seja, psiquicamente comparece o desejo de ter o controle e exercer a liderança. Vale lembrar que por trás de um excesso sempre existe uma falta. No caso, pode-se dizer que o excesso da valorização do poder e do controle comparece em indivíduos que vivenciaram ou vivenciam a falta de recursos, de ordem ou mesmo de harmonia.
Para finalizar minhas ampliações sobre a temática de como ressignificar práticas que exaltam arquétipos do rei e da rainha, com fixação em padrões unilaterais, faço uso das reflexões de Jung para sugerir uma saída criativa:
É preciso reconhecê-las como parte da psique e investir energia psíquica para ressignificá-las, harmonizando luzes e sombras a partir do autoconhecimento. E como afirma Jung: “Onde há vontade, também existe caminho” (JUNG, 2012, § 187).
É no coletivo que temos a tendência de buscar o fortalecimento, mas o processo é sempre individual!
Claci Maria Strieder – Membro Analista IJEP
Waldemar Magaldi Filho – Analista Didata IJEP
Referências:
ABREU, S.Rainha da sucata.TV Globo, Rio de Janeiro, 1990.
BARBOSA, B.R. O rei do gado. TV Globo, Rio de Janeiro, 1996.
BECHSTEIN, L. O livro de contos de fadas da Alemanha. Tradução Cassius Pereira Ramos. Brasília, DF: Teixeira Digital, 2022.
BUENO, S. Silveira Bueno: minidicionário da língua portuguesa. Ed. ver. e atual. São Paulo: FTD, 2000.
DANTAS, T. Baralho; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/curiosidades/baralho.htm. Acesso em 10 de agosto de 2024.
DISNEY, W. O Rei Leão, Estados Unidos da América, 1994.
GRIMM, I. Contos da infância e do lar. Trad. introd. e notas de Teresa Aica Bairos; coord. cient. Francisco Vaz da Silva. – 1ª ed. – Lisboa: Temas e Debates, 2013.
JUNG, C.G. Fundamentos da psicologia analítica. Petrópolis: Vozes, 1985.
__________ Mysterium coniunctionis: pesquisas sobre a separação e a composição dos opostos psíquicos na alquimia. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
__________ Os livros negros, 1913-1932: cadernos de transformação. Edição: Sonu Shamdasani; tradução: Markus A. Hediger; revisão da tradução: Dr. Walter Boechat. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020.
STRIEDER, C.M. Portais da alma: a psicologia analítica e as conexões criativas e integradoras da natureza psíquica. Curitiba: Appris, 2022.
VENTURINI, F. Céu de Santo Amaro. Álbum Porque não tínhamos bicicleta. Compositor: JS Bach/Adaptação e arranjo Flávio Venturini. Gravadora Trilhos.Arte, Rio de Janeiro, RJ, 2003.
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