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Os exercícios quaresmais como símbolo do processo de individuação

O cerne da fé cristã é o Mistério Pascal de Cristo, sua morte e ressurreição. Na Igreja Católica, toda a liturgia tem como ápice essa celebração. O calendário litúrgico apresenta um tempo especial, chamado Quaresma, que inicia logo após o Carnaval, na Quarta-feira de Cinzas, e termina no Domingo de Ramos, para que os fiéis se preparem para a vivência deste Mistério. É chamado de tempo de conversão, de alinhar a vida ao seguimento de Cristo, ao caminho que ele ensinou, e para isso tradicionalmente são propostos os chamados exercícios quaresmais — jejum, esmola e oração. Qual a simbólica desses exercícios? É possível lê-la a partir do olhar da Psicologia Analítica?

Assim como a Páscoa é o núcleo do Cristianismo, o processo de individuação é o cerne da Psicologia Analítica, da escola iniciada por Carl Gustav Jung. Trata-se, primeiramente, do caminho de desenvolvimento humano, de tornar-se si mesmo, buscando uma inteireza nunca totalmente alcançada, mas tarefa para toda a vida. Como explica Jacobi, “é o paralelo psíquico ao processo de crescimento e de envelhecimento do corpo” (2013, p. 188). Sendo assim, a princípio, trata-se de um potencial de todo ser humano, que acontece de forma espontânea e natural, mesmo sem consciência do processo, desde que não seja impedido por distúrbios (cf. JACOBI, 2013, p. 187). A prática da Psicoterapia vem auxiliar o analisando a trilhar esse caminho e trabalhar as travas, intensificando e conscientizando o processo, através da ampliação de consciência. 

A ampliação de consciência é um sentido comum aos exercícios quaresmais e ao processo de individuação. Na medida em que aqueles buscam resgatar o ser humano dos desvios no caminho, que o desfiguram em sua essência, e colocá-lo na trilha da inteireza revelada na figura de Cristo, em que aspectos eles poderiam ser vistos como símbolo do processo de individuação? É a questão que este artigo pretende desenvolver.

Quaresma e individuação

            A Quaresma é um tempo de 40 dias, simbolizando os 40 anos que o Povo de Israel passou no deserto, atravessando da escravidão do faraó no Egito para o serviço de Deus na Terra Prometida, e os 40 dias que Jesus de Nazaré permaneceu no deserto orando, jejuando e sendo tentado, antes de iniciar sua missão pública. É um número simbólico, tempo necessário a uma mudança de hábitos; ligado, portanto, à conversão. 

Israel constantemente queria voltar atrás e, ao longo da sua história, acabou caindo na dominação de vários povos. A “terra que mana leite e mel”, o espaço de vida e liberdade, ficou como promessa, experimentada em alguns momentos. Jesus vence as tentações; os 40 dias são símbolo de toda uma vida, que muitas vezes poderia ter cedido à escravidão do ter, do prazer, do poder e à autossuficiência, mas escolheu viver para Deus e para os demais e assim exercitar a liberdade — “ninguém me tira a vida, eu a dou livremente” (Jo 10,18) —, chamando em seu seguimento os que têm o mesmo desejo, centrado não numa felicidade egoísta, mas na busca de vida plena para todos — “eu vim para que todos tenham a vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Esse é o programa e a meta, levados até o fim, mesmo quando os poderia ter negado diante da violência e dor extremas que se apresentavam com a morte de cruz.

Jesus, reconhecido pelos que o acolheram como o Messias esperado que libertaria o povo, o Cristo, foi morto como aquele que teria dito “não” a Deus, o “maldito de Deus” (significado da morte na cruz). O “Pai”, ao ressuscitá-lo, confirma-o como o “Filho”, dando o “sim” à sua vida como a realização por excelência da humanidade. Ao dar o seu “Espírito”, Jesus nos faz “filhos no Filho”, capazes, neste mesmo Espírito, de seguir os seus passos no caminho de humanização. É um passo a passo de toda a vida, com seus altos e baixos, daí o sentido dos exercícios quaresmais.

            Para Jung, 40 também é um número marcante. Ele fala da virada para a segunda metade da vida, que se dá por volta dos 40 anos. Em linhas gerais, a primeira metade da vida é dedicada à realização no mundo exterior; a segunda, à descoberta da realidade interior e resposta ao chamado da alma para a realização mais profunda de si mesmo. É um retorno a aspectos até então preteridos ou que permaneceram inconscientes, passando, portanto, pelo confronto com a sombra. O consciente, antes muito centrado no “eu”, vai se tornando “referido interior e exteriormente […] à conjuntura terrena e cósmica do mundo” (JACOBI, 2013, p. 190), o que podemos considerar uma transcendência. Se o processo de individuação acontece na vida toda da pessoa, que vai amadurecendo (ou ao menos seria o natural), a segunda metade da vida é seu momento crucial, uma vez que aqui os papéis de adaptação (personas), coletivos, já estão razoavelmente vivenciados, e desperta cada vez mais a sede da individualidade, de descobrir e vivenciar quem se é, o arranjo singular dos elementos coletivos, próprios a toda a humanidade. 

            Pode-se dizer que essa etapa da vida é o momento favorável para potencializar esse processo, assim como a Quaresma é tida na Igreja Católica como o tempo favorável para a conversão, a mudança de vida, a passagem do “homem velho” para o “homem novo”, expressões, aliás, que Jung tomou ao falar do processo de individuação e escrever sobre o seu próprio caminho.

O retorno à essência que a Quaresma propõe tem a ver com o shalom, a paz no sentido de harmonia das relações em todas as esferas — consigo mesmo, com os outros, com a natureza e com Deus. É nessa direção que apontam os exercícios quaresmais.

Oração

            A espiritualidade e o sentimento religioso são muito importantes na obra de Jung, para quem o fenômeno religioso está intimamente ligado à psique humana. Da mesma forma que se debruçou a estudar símbolos da humanidade que expressavam essa experiência, dedicou obras a dialogar do ponto de vista psicológico com a tradição cristã.

Jung não considera a religião como religare, mas como religère, na concepção de Cícero. O primeiro termo, que significa unir de novo, viria mais da concepção judaico-cristã, que parte de um relacionamento com Deus e a possibilidade de rompê-lo. Jung apresenta a concepção mais antiga — por isso, arquetípica e adequada a uma visão psicológica. Os deuses da Antiguidade “são pessoas mais elevadas e encarnações de forças sempre presentes, cujas vontades e caprichos precisam ser respeitados” (JUNG, 2003, p. 192) O relegere ou religère significa ponderar bem, levar em consideração, observar. “Aqui a religião é uma postura atenta, cuidadosa, precavida, prudente, inteligente e calculista para com os poderes superiores” (p. 192-193). 

Para o pai da Psicologia Analítica, pessoas religiosas, diante do mito crístico, “experimentam […] um relacionamento indispensável do eu-tu” e “se reservam, portanto, um relacionamento pessoal com Cristo” (JUNG, 2003, p. 194). Com o materialismo e o racionalismo, houve uma tentativa de “desmitologização” do mundo. No entanto, experiências numinosas pertencem à natureza da psique, “não importando a que Deus causador sejam atribuídas” (p. 196).

Os mitos descrevem processos e desenvolvimentos psíquicos. […] Se estes arquétipos — conforme denominei os fatos preexistentes e preformadores da psique — forem considerados como simples instintos ou como demônios e deuses, isto em nada altera o fato de sua presença atuante. (JUNG, 2003, p. 196)

O velho mito pode receber interpretações novas, mas traz em si algo de primordial. A experiência religiosa busca exatamente a conexão com este primordial e essencial. “A solidão da experiência religiosa pode ser e será uma fase inevitável de transição para todo aquele que procura a experiência essencial,” (JUNG, 2003, p. 195).

Para o cristão católico, um texto evangélico convidativo aos exercícios quaresmais é Mateus 6, 1-18. Sobre a oração, o evangelista diz: “Quando quiseres orar, entra no teu quarto mais retirado, tranca a tua porta e dirige a tua oração ao teu Pai que está ali, no segredo”. Assim, revela a experiência essencial. “Não multipliqueis palavras […], porque vosso Pai sabe do que precisais, antes que lho peçais”. Se, por um lado, chama a uma confiança que demonstra a relação eu-tu, mais relacionada ao religare e diferente, portanto, da concepção psicológica de Jung, mesmo que alinhada com o que ele diz da experiência primordial, por outro se pode ver o respeito diante do numinoso, a postura atenta e cuidadosa que reconhece o poder superior e a ele se submete (o religère).  

A experiência pessoal de Jung retratada no Livro Vermelho mostra o difícil caminho de dobrar-se diante desse poder superior, a descoberta da sede da alma e do seu chamado e demanda, o reconhecimento por alguém bem-sucedido no mundo da própria pobreza diante da desconhecida interioridade. Nesse caminho, é preciso aprender a reconhecer e lidar com a sombra, primeiros passos no processo de individuação, no qual o ego não domina, mas se coloca a serviço.

Analogamente, o exercício quaresmal da oração passa pelo reconhecimento da própria miséria e de colocar-se diante da misericórdia de Deus, a qual não se merece nem se controla. O orante coloca-se como pedinte confiante, e a gratidão impulsiona ao serviço.

Esmola

Servir ao transcendente (reconhecido como Deus, ou o Self) passa por dedicar-se ao outro. O processo de individuação leva à saída do egocentrismo, pois é exatamente no descentramento de si que se pode descobrir o Si-mesmo. Para Jung, esse processo não tem uma ênfase egoísta ou individualística, porque o ser humano é composto de fatores universais e, por isso, não oposto à coletividade (cf. 2018, §268). Sua singularidade está na combinação única das qualidades universais. Ao realizá-la, caminha-se para a “cooperação viva” daqueles fatores e para uma melhor relação com os demais e todo o ambiente — alter e holospresentes. Na individuação a pessoa vê-se ao mesmo tempo em sua singularidade e como parte da comunidade humana.

A solidariedade com a comunidade humana é exatamente o significado do exercício quaresmal da esmola. Apesar do nome remeter a dar o que sobra, não é disso que se trata, mas da atitude de quem reconhece no outro um irmão e percebe a desigualdade como questionamento à própria fé. “Enquanto tiver uma pessoa passando fome no mundo, nossas eucaristias continuarão incompletas” (ARRUPE apud PULIER; SOUSA, 2011, p. 201). Interpelado, o fiel reconhece a necessidade de conversão e busca diminuir a distância através de gestos de transformação pessoal e social das relações.

Não se trata apenas de partilhar bens materiais, mesmo que isso seja fundamental diante das necessidades concretas e urgentes dos famintos e desabrigados. Somado à assistência, é dar de si mesmo, do próprio tempo, da atenção e escuta do outro, de opções ecológicas, políticas e sociais que incluem os marginalizados. A oração, vista anteriormente, concretiza-se na vida solidária. “Dai-nos olhos para ver as necessidades e os sofrimentos dos nossos irmãos e irmãs; inspirai-nos palavras e ações para confortar os desanimados e oprimidos; fazei que […] nos empenhemos lealmente no serviço a eles” (Oração Eucarística VI-D).

A Campanha da Fraternidade, realizada a cada ano pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, traz temáticas relativas à realidade social, incentivando os cristãos católicos a gestos concretos de solidariedade com os excluídos. É o outro no caminho que representa o chamado de Cristo, identificado com ele: 

Eu tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; eu era estrangeiro e me acolhestes; estava nu, e me vestistes; doente, e me visitastes; na prisão, e viestes a mim. […] Todas as vezes que o fizestes a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes. (Mt 25,35-36.40)

A alteridade faz parte do processo de individuação, tanto no reconhecimento dos “outros” em nós como, a partir daí, no respeito dos outros que se apresentam diante de nós e tanto nos revelam quem somos.

Jejum

A harmonia das relações, para onde apontam os exercícios quaresmais, também passa pela relação consigo mesmo e com o kosmos — na visão cristã, com toda a criação. O jejum trabalha nessas vertentes, e é interessante perceber como estão ligadas (o mais interior e o mais exterior), bem consoante com as polaridades, tão caras a Jung. Mudar maus hábitos e liberar-se de pequenos vícios faz bem não somente a si, mas ao planeta.

Estudiosos de todo o mundo há tempos alertam sobre a exaustão da Terra diante da degradação, desmatamento, gases tóxicos lançados na atmosfera e excesso de lixo, decorrentes da extrema ganância, que faz buscar o lucro imediato e a qualquer custo, e do consumismo, que fomenta a cultura do descarte e da obsolescência. Não adianta apenas culpar as grandes empresas e os governos se cada um não assumir sua parcela em tudo isso e mudar as próprias atitudes da direção da destruição para o sentido da vida.

O autêntico significado do jejum parte dessa reflexão. Cada pessoa é convidada a reconhecer os próprios excessos, que a tiram do eixo e não fazem bem ao redor, e a privar-se deles (por um tempo ou definitivamente) até que a própria atitude seja transformada. Não se trata, portanto, da tradição de deixar de comer carne, mas o leque se amplia, podendo ser, por exemplo, renunciar a: compras variadas; TV e outros entretenimentos; pornografia; bebida; cigarro; doces; fofoca; redes sociais; uso do cartão de crédito etc.

Do ponto de vista da Psicologia Analítica, o processo de individuação, através do autoconhecimento, amplia a consciência, libertando pouco a pouco do mundo reduzido e dos interesses mesquinhos. Estar preso nos diversos papéis sociais, nas personas, é que leva à necessidade de lustrar a imagem e para isso comprar e descartar. A essência precisa de muito pouco, pois se percebe partícipe do todo. Por isso Jung fala da realização do Si-mesmo numa descoberta da singularidade, que é vinculação a tudo o que existe.

[…] vai emergindo uma consciência livre do mundo mesquinho,  susceptível e pessoal do eu, aberta para a livre participação  de um mundo mais amplo de interesses objetivos. […] tornar-se-á uma função de relação […], colocando o indivíduo numa comunhão incondicional, obrigatória e indissolúvel com o mundo (JUNG, 2018, §275).

É exatamente neste sentido que caminha o exercício quaresmal do jejum.

            Jejum, esmola e oração, portanto, vividos com sentido e significado, são um meio que contribui no caminho do processo de individuação.

Tania Pulier – Membro analista em formação pelo IJEP

Referências

A BÍBLIA. Tradução Ecumênica. São Paulo: Loyola, 2002.

JACOBI, Jolande. A Psicologia de C. G. Jung: uma introdução às obras completas. São Paulo: Vozes, 2013.

JUNG, Carl Gustav. Cartas, v. 3. São Paulo: Vozes, 2003.

___. O eu e o inconsciente. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 2018.

PULIER, Tania F.; SOUSA, Sandra R. Creio na Alegria: caminho da fé cristã nos passos do Credo, v. 2. São Paulo: Paulus, 2011.

Tania Pulier 

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