É clássica a frase de Jung, mencionada no volume 7/1 da obra, na qual ele antagoniza amor e poder: “Pela lógica, o contrário do amor é o ódio; o contrário de Eros, Phobos (o medo). Mas, psicologicamente, é a vontade de poder. Onde impera o amor, não existe vontade de poder; e onde o poder tem precedência, aí falta o amor. Um é a sombra do outro” (JUNG, OC 7/1, §78). Desde então, esta frase ainda ressoa um tanto quanto estranha, já que o antagonismo amor-ódio ainda é tido como o naturalmente “correto”, segundo o senso-comum.
A verdade é que esta afirmação de Jung é extremamente complexa, e para compreendê-la precisamos fazer um passeio por alguns fundamentos da psicologia analítica. Primeiramente, o que em geral categorizamos unicamente como “amor”, pode ser divido em quatro tipos de amores: porneia (emocional e egoísta), eros (relacional), philia (fraternal) e ágape (caridoso, altruísta) – vide palestra do VII Congresso Junguiano do IJEP, sobre Eros e Porneia, entre Waldemar Magaldi, Leonardo Torres e eu. Logo, quando Jung antagoniza amor e poder, é quase que um antagonismo entre porneia e ágape, isto é, entre egoísmo e altruísmo. O egoísmo é autoerótico, desejoso de si, e encontra a sua realização na fantasia de poder, enquanto altruísmo é fazer pelo outro.
Para aumentar a confusão, apesar dessas distintas classificações de amor, até antagônicas entre si, popularmente há uma grande confusão também entre o amor e a paixão romântica. Não raro, uma pessoa em estado de apaixonamento imagina-se assim porque “sente muito amor pela outra pessoa”. Psicologicamente isto não é verdade, pois a paixão é um sentimento autoerótico, muito mais próximo ao amor porneia, egoísta, do que ao amor ágape, altruísta, voltado ao outro. Em outras palavras, o apaixonamento é um desejo por si mesmo, porém, projetado em alguém – veremos adiante.
Nunca é demais lembrar que paixão vem do grego páthos [πάθοσ], afecção / doença, e do latim passio (sofrimento passivo). A “paixão de Cristo” é essencialmente o sofrimento de Cristo (em inglês, a palavra grega páthos também é tida como a fonte da palavra inglesa path, que significa caminho). A paixão também é uma força arquetípica, sendo narrada em diversos mitos e contos, por exemplo, as análises psicológicas feitas em We de Johnson (1987) e em Eros e Psiquê de Neumann (2017) – além de clássicos da literatura, tais como Romeu e Julieta de Shakespeare, Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco, e muitos outros.
Por alguma razão, não muito clara, ao longo da história a ideia de paixão foi “glamourizada” como uma coisa boa, como se fosse um “excesso de amor”, ou um “excesso de um sentimento bom”, chegando até a ocupar a lista de valores corporativos: “precisamos ter paixão pela nossa empresa”. Do ponto de vista daquilo que a paixão desperta, é inegável que ela traga emoções muito boas de sentir, especialmente quando é correspondida, entretanto, ela é um aspecto mais iniciático da experiência do amor, que evoca a evolução para os outros amores – algo nem sempre alcançado. Para entender melhor a dinâmica psíquica da paixão, saindo da leitura senso-comum do fenômeno, precisamos buscar alguns conceitos de Carl Gustav Jung, fundador da psicologia analítica.
Uma das descobertas mais relevantes de Jung foram os complexos tonais afetivos, chamados simplesmente complexos. Estes são as estruturas básicas do inconsciente pessoal e são essencialmente agrupamentos de afetos que possuem correspondência entre si, com núcleo arquetípico, portanto, universais e presentes em todos nós. Por serem, a priori, inconscientes, os complexos não necessariamente correspondem às fantasias e vontades do ego, que também é um complexo, mas é dominante, e ocupa o centro da consciência (JUNG, OC 3; OC 8/2; OC 9/2). Muitas vezes um dos complexos do inconsciente pessoal atrai energia psíquica suficiente para romper o limite da consciência e incomodar os desígnios do ego (JUNG, OC 3; OC 8/1). Quando isto acontece, dizemos que há um complexo constelado: “Este termo exprime o fato de que a situação exterior desencadeia um processo psíquico que consiste na aglutinação e na atualização de determinados conteúdos. A expressão “está constelado” indica que o indivíduo adotou uma atitude preparatória e de expectativa, com base na qual reagirá de forma inteiramente definida. A constelação é um processo automático que ninguém pode deter por vontade própria. Esses conteúdos constelados são determinados complexos que possuem energia específica própria” (JUNG, OC 8/2, §198).
Com o complexo constelado o ego entra em embate com dinâmicas diferentes das suas dominantes, e esta luta será sentida na consciência por meio dos sintomas, afetos, sentimentos e até comportamentos “anormais” – diferentes dos padrões dominantes. O complexo tem vontades e sentidos próprios, e não possui compromisso com moralidade, com os códigos de conduta, ou com a persona que ocupam a consciência. Dito isto, em termos psíquicos, a paixão, sentimento tão glamourizado, nada mais é do que um complexo constelado. Em outras palavras, o estado de apaixonamento, que é repleto de afetos, intensidades, estranhamentos, euforias, é basicamente a emersão de um complexo do inconsciente para a consciência. Contudo, sem reconhecer conscientemente que a paixão é um sintoma do complexo constelado, justamente pelo fato de no seu mix de emoções existirem algumas que transmitem sentimentos muito positivos, o apaixonado fica num estado de encantamento, entorpecido pela sua própria imagem projetada no outro. Diz Jung: “o apaixonado é possuído pelo seu complexo: todo o seu interesse volta-se para o complexo e as coisas que lhe dizem respeito […]. O que não diz respeito ao complexo é excluído e os demais interesses desaparecem no nada; surge uma atrofia temporária e um esvaziamento da personalidade (JUNG, OC 3, §102).
No processo de apaixonamento, como o indivíduo está possuído por um profundo “compromisso” com o complexo, ele é incapaz de relativizar, de ponderar, de refletir, pois apenas a lógica do complexo é o que vale. Diversas vezes, quando observamos um familiar ou amigo apaixonado, dizemos que “esta pessoa está diferente”. E está mesmo, pois o dominante vigente na consciência é algo alternante entre complexo e ego, e não apenas o ego conhecido de outrora. Apesar dessa chuva de emoções, Robert Johnson (1987), no seu clássico livro We, desconstrói a ilusão ao dizer que o ruim da paixão é que ela acaba. Isso significa que tudo que foi projetado pelo complexo e que levou o sujeito ao estado de apaixonamento, tende a cair, e é nesse momento que é preciso lidar com o outro de maneira autêntica, olhando para ele tal como é, destituído da “embalagem” projetada pelo complexo. É também neste momento que muitos relacionamentos acabam, pois dirá o senso-comum que “o amor acabou”.
No belo artigo Medo de amar do Prof. Dr. Waldemar Magaldi Filho, ele menciona um conto de autoria desconhecida, no qual um sábio diz à um jovem que: “amar é uma decisão, não um sentimento ou um desejo. Amar é dedicação, é atitude. Amar é um verbo e o fruto dessa ação é o próprio amor” (MAGALDI FILHO, 2019). Isso significa que amor e paixão não são as mesmas coisas. Enquanto o primeiro é uma opção, uma escolha, o segundo é um fenômeno autônomo da psique, impetuoso. Contudo, raramente optamos por amar genuinamente, pois preferimos o entorpecimento da paixão, assim como Tristão que se apaixonada por Isolda quando toma uma poção envenenada (JONHSON, 1987), ou como Eros que se apaixona por Psiquê ao se ferir com a própria flecha, provando do próprio veneno (NEUMANN, 2017). Também não nos esqueçamos que a origem das palavras veneno ou envenenamento provém de Vênus, a deusa romana do amor, e a Afrodite da mitologia grega (tida como mãe de Eros em algumas narrativas). Daí a proximidade entre estar apaixonado e estar, metaforicamente, envenenado.
É curioso notar o valor da recompensa emocional na paixão: mesmo que boa parte da experiência do apaixonamento seja ruim, às vezes muito violenta, literalmente, um simples gesto positivo da pessoa que é objeto da projeção é suficientemente forte para despertar a frase, na maioria das vezes ingênua, que diz “agora é diferente, ele/ela mudou”. Diferentemente disso, o que ocorre é que o outro não possui compromisso irrestrito com o conteúdo do complexo projetado que recebe, e naturalmente demonstrará, ao longo do tempo do relacionamento, que de fato é uma pessoa diferente daquela idealizada pelo universo da paixão.
Quando algum gesto de um dos apaixonados corresponde à expectativa do conteúdo projetivo que recebe, o outro vê como positivo, como uma recompensa; já quando ele demonstra as diferenças de sua personalidade versus a projeção que recebe, poderá ouvir que “surpreendente mudou, pois não era assim antes”. Não é que ele “não era assim antes”. Na verdade, durante o apaixonamento, a cegueira da paixãonos impede de olharmos para as pessoas tais como elas são, positiva e negativamente, portanto, à medida que a projeção cai, a percepção da consciência é de que a pessoa mudou, mas isso não é exatamente uma verdade absoluta, pois o que mudou foi o conteúdo projetado, muitas vezes invertido com paixão, tornando-se ódio.
Por ser essencialmente uma relação autoerótica (porneia), a paixão é também um exercício inconsciente de poder. Queremos que o objeto de devoção aja tal e qual os desejos do complexo. Queremos fazer do outro uma cópia de nós mesmos. Queremos possuir o outro, como um produto que pode ser comprado: “Nas relações interpessoais, a maioria dos problemas enfrentados são problemas de porneia, vale dizer, de não aceitação da alteridade: o outro é minha propriedade, minha vida, minha metade, minha posse…” (VIVERET, 2013, p. 39).
O problema é que esse padrão não se apresenta exclusivamente nos relacionamentos românticos; ele se repetirá em muitas outras áreas da vida, em que, tomados por uma paixão, almejaremos buscar “tudo para nós”, “do nosso jeito”. Vamos querer que nossos chefes no trabalho “ajam de tal e tal forma”, que nossos pais “sejam desta e daquela maneira” e que nossos amigos “se comportem segundo este modelo”. Exercemos nossa porneia, egoísmo, desejo autoerótico de poder, deliberadamente, seja nos relacionamentos humanos, seja na obsessão pelo dinheiro (que na atualidade se reflete em maior poder), seja na obsessão pela “persona perfeita” (haja visto a enxurrada de procedimentos estéticos buscados pelas pessoas, e que poucas vezes se refletem em mudanças interiores), seja no exercício do poder em si (líderes empresariais, religiosos e políticos, que agem apenas a favor de si ou para manter seu séquito). Todos que estão em porneia, em relacionamentos autoeróticos, “envenenados” pelo poder, desconsideram o outro e, consequentemente, o arquétipo da totalidade, que é o Self [si-mesmo], a imago Dei em nós.
Voltando ao início de nosso texto, quando Jung afirma que o amor faz oposição ao poder, é dizer o mesmo que o excesso de si mesmo [ego] sem hífen, é a negação do si-mesmo [Self], com hífen. Neste sentido, o ódio, faz oposição ao desejo, ainda que no ódio haja o desejo de destruição do odiado; é uma projeção sombria da vontade de “possuir” um alguém que por qualquer razão não corresponde às fantasias projetivas da paixão, de ser dominado, de ser subjugado ao poder autoerótico do outro, passando, portanto, a “merecer” o ódio, ou a destruição.
O estado de apaixonamento é natural do processo de amadurecimento do ego e, naturalmente, a maioria de nós estará exposto a ele em algum(uns) momento(s) na vida – especialmente na juventude, mas não apenas –, pois como toda constelação de complexos, a paixão não é uma escolha, é um acontecimento: são os complexos que nos tem e não nós que os temos. Também lembremos que se apaixonar é gostoso (e às vezes sofrível), e precisamos viver de alguma forma esta experiência. Por outro lado, precisamos ampliar a consciência e saber que a paixão anda lado a lado com o poder, e que o fato dela aparecer em nossa vida é justamente para nos dar a chance de reconhecer conscientemente o desejo de poder que nos habita, para criarmos novos sentidos e significados para as nossas relações, construindo e optando por outras formas de amor, mais horizontais e altruístas, mas sem o abandono de si, e sem desconsiderar o Self. No fim, o caminhar deveria ser no sentido da Harmonia, que na mitologia grega era a filha de Afrodite (deusa do amor) com Ares (deus da guerra, que também evoca a ideia de poder ou soberania).
Se poder e amor são opostos, significa que um não existe sem o outro, e por isso relembremos da frase de Jesus quando tentado pelo diabo no deserto: “Tornou o diabo a levá-lo para um monte muito alto. E mostrou-lhe todos os reinos do mundo com o seu esplendor e disse-lhe ‘Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares’. Aí Jesus lhe disse: ‘Vai-te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás e a Ele só prestarás culto’ (Mt, 4, 8-10). Dito de outra forma, e lendo esta passagem simbolicamente, Jesus não nega o convite do diabo de possuir todos os reinos, de exercer seu “poder”, mas também não aceita, pois é como se ele dissesse “que eu use este desejo por poder que você insufla em mim, como caminho para eu doar amor”.
Rafael Rodrigues de Souza – Analista Didata em formação
Analista Didata – Waldemar Magaldi Filho
Referências:
JOHNSON, Robert. We: a chave da psicologia do amor romântico. São Paulo: Mercuryo, 1987.
JUNG, Carl Gustav. Psicogênese das doenças mentais [OC 3]. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente [OC 7/1]. 24. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
JUNG, Carl Gustav. A energia psíquica [OC 8/1]. 8ª ed. Corrigida. Petrópolis: Vozes, 2002.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique [OC 8/2]. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. Aion – estudo sobre o simbolismo do si-mesmo [OC 9/2]. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
NEUMANN, Erich. Eros e Psiquê: amor, alma e individuação no desenvolvimento do feminino. 2ª ed. São Paulo: Cultrix, 2017.
MAGALDI FILHO, Waldemar. Medo de amar. IJEP, set. 2019. Disponível em: https://www.ijep.com.br/artigos/show/medo-de-amar. Acesso em: 03/06/2022.
VIVERET, Patrick. O que faremos com a nossa vida? In: MORIN, Edgar; VIVERET, Patrick (Orgs.) Como viver em tempo de crise? [recurso eletrônico]. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013. p. 18-41