A série da Amazon, “The Terror – Infamy”, me fascinou pelo seu tema, que aborda um evento pouco comentado da Segunda Guerra Mundial: o confinamento dos imigrantes japoneses e seus descendentes em campos de “internamento” após os ataques japoneses a Pear Harbor, que ocorreram em 8 de dezembro de 1941. O subtítulo, Infamy, vem do discurso do Presidente Franklin Delano Roosevelt feito para a nação americana na data do ataque, no qual ele disse que o dia 8 de dezembro passaria a ser “uma data que viverá na infâmia”.
O termo “internamento” é uma forma camuflada de expressar a realidade, pois foram criados verdadeiros campos de concentração, com total privação de liberdade para aqueles que lá ficaram detidos. Segundo Sandoval (SANDOVAL, 2016), mais de 120 mil pessoas foram aprisionadas nos campos, em cumprimento à Ordem Executiva 9066, ficando detidas no período de1942 a 1945.
O enredo apresentado pela série tem como pano de fundo a história real da comunidade pesqueira de Terminal Island, condado de Los Angeles/California, onde viviam cerca de 3.000 pessoas, imigrantes e descendentes de japoneses provenientes de Wakawama, no Japão. As pessoas deste local permaneceram unidas em uma comunidade fechada, mantendo seu folclore, crenças e seguindo o budismo japonês, como uma forma de manter viva sua cultura. Nesta pequena comunidade havia um conflito entre a geração de imigrantes e a nova geração, aqueles que nasceram nos EUA e que buscavam deixar de lado as crenças e superstições da geração mais velha, adaptando-se à cultura local.
A velha geração cultivava o respeito às figuras tradicionais do folclore japonês, os yûkai, bakemono e yûrei, pouco conhecidas e estudadas no Brasil, exceto pelos fãs de mangás e animes. A presença de um yûrei na comunidade, uma espécie de fantasma vindo de sua terra natal, é a explicação dada pelos imigrantes japoneses da comunidade para os eventos sobrenaturais que se iniciaram a medida em que a tensão da guerra se intensificava e, especialmente, após o bombardeio a Pear Habor. Os personagens foram submetidos a situações de terror psicológico, à medida em que a comunidade foi confinada em campos de concentração, sem que tenham sido dadas explicações além da sua etnia e semelhança com o inimigo, além de terem sido submetidos a interrogatórios intermináveis para tentar identificar a existência de espiões japoneses na comunidade.
O que me fascinou na série foi a forma como esses eventos inexplicáveis, considerados sobrenaturais, foram utilizados pelos produtores como metáforas para demostrar todo o horror a que esta comunidade foi submetida durante o período em que se deu o encarceramento, bem como o embate entre a cultura oriental tradicional e a nova cultura, ocidental, a que a geração nascida fora do solo japonês estava exposta. Esta nova geração, por sua vez, também entrou em choque com a cultura ocidental, que não a reconhecia como fazendo parte da sociedade, em função da xenofobia que existia no país, mesmo antes da guerra. Tratava-se, então, de uma geração sem identidade, pois não se identificava plenamente nem com sua cultural de origem, oriental, tampouco era aceita pela sociedade ocidental.
Utilizar o sobrenatural foi uma forma encontrada pelos produtores para expor o quão intenso e fora do comum foram os eventos ocorridos durante o período de encarceramento. Apesar de estarmos falando da Segunda Grande Guerra, os eventos ocorreram com cidadãos americanos, em solo americano, o que nos remete também a recordar os eventos da história recente, neste mesmo país onde a série é retratada, quando houve a tentativa de construir um muro separando a fronteira com o México, em uma tentativa de deixar muito claro o quanto a presença de imigrantes não era benvinda.
Deuses, monstros, fantasmas e demônios povoam o imaginário japonês e os encontramos presentes nos animes, mangás, no teatro, em filmes e na literatura japonesa. Martins, em seu estudo sobre kaidan, gênero literário japonês que trata do estranho e do mistério, coloca que “quando se fala do sobrenatural ligado ao campo semântico do horror, nota-se que estão incluídos neste entender uma ideia de medo, estranheza, dor ou perigo de morte.” (MARTINS, 2014, pag. 20). Essa autora entende que “a temática sobrenatural, desde muito tempo, faz parte da compreensão de mundo dos japoneses.” (idem, pag. 24)
Pires, em sua resenha sobre o livro de Hayao Kawai “A Psique Japonesa: grandes temas dos contos de fadas japoneses”, coloca que “o autor destaca que uma das características do povo japonês é a ausência de uma distinção clara entre os mundos interno e externo, ou seja, entre o consciente e o inconsciente”. Um dos símbolos desta tênue linha divisória seriam “as portas corrediças e a fina porta de papel, símbolos presentes no cotidiano e na cultura oriental que, metaforicamente, apontam para uma maior permeabilidade entre o consciente e o inconsciente.” (PIRES, 2016, págs., 50 e 51).
Von Franz (VON FRANZ, 1990, pag. 4), por sua vez, coloca que “nos mitos, lendas ou qualquer outro material mitológico mais elaborado, atingimos as estruturas básicas da psique humana através de uma exposição do material cultural”. Para Jung (JUNG, 2008, pag. 214), “nos mitos e contos de fada, como no sonho, a alma fala de si mesma e os arquétipos se revelam em sua combinação natural, como “formação, transformação, eterna recriação do sentido”.
Para conhecer um pouco mais sobre o folclore japonês e as questões psicológicas colocadas na série busquei aprofundar meu conhecimento e entender mais sobre as figuras do folclore e o que representam, simbolicamente.
Segundo Ferreira (2014, p. 17), o “racionalismo científico ocidental somente virá a atingir o Japão durante o período Meiji”. Este período compreende os anos entre 1868 a 1912 e é nele que se inicia uma catalogação dos fenômenos irracionais do Japão, com o objetivo de explicá-los cientificamente como crendices ou simples superstições. O filosofo budista e educador Inoue Enryô instituiu o Fushigi Kenkyûkai, Grupo de Estudos dos Mistérios, em 1886. Ainda segundo Ferreira, Inoue Enryô se utilizou do termo yôkai para designar todos os fenômenos sobrenaturais no Japão. Para ele, o termo englobava não só os entes sobrenaturais folclóricos, mas também os yûrei, as ilusões, os sonhos, os eventos paranormais e certos fenômenos naturais. (FERREIRA, 2014, pg.18). Porém, o objetivo desta catalogação era extirpar o que chamavam de “superstição” como algo nocivo ao desenvolvimento industrial do Japão.
Outros pesquisadores, como Yanagita Kunio, viajaram pelas províncias do Japão estudando e coletando narrativas, crenças e tradições, buscando registrá-las antes que desaparecessem frente a modernização que se dava no país (idem, pag, 20). A publicação de seu livro em 1909, Nochi no Karikotoba no Ki (Notas posteriores a respeito das caçadas tradicionais) marca oficialmente o início dos estudos sobre o folclore japonês (Ibidem, pag. 21).
Ferreira (2013, pag. 61), ao falar sobre yukais (monstro estranho), coloca que são “entes sobrenaturais de origem anônima ou ficcional que se tornaram parte do folclore japonês”. E continua afirmando que “em geral eles têm poderes sobrenaturais e que possuem motivações e caráter, os mais variados.” Pode ter como sinônimos os termos obake (aparição), bakemono (coisa que se transforma) ou mononoke (estranheza das coisas). O termo bakemono também pode ser usado como sinônimo de yûrei (fantasma), que é uma “coisa que transforma” que pode ser traduzido como aparição de um espírito que se manifesta neste mundo. O nome é composto por dois kanjis, yu, que significa fraco ou fraca e reique significa espírito ou alma).
Ferreira cita também o trabalho de Mizuki Shigeru, famoso manga-ka, escritor e ilustrador de mangás, que classifica o yôkai em quatro categorias (idem, pag. 19):
1) Yûrei, que são as aparições (hitodama, bôrei, shiryô, onryô de pessoas) que se manifestam neste mundo,
2) Kaijú, yôkai de animais, insetos etc. que possuem misteriosos poderes mágicos,
3) Henge, seres que podem se transformar em outras coisas, diferentes,
4) Chôshizen, fenômenos misteriosos e inescrutáveis
Na série aqui referida, os eventos sobrenaturais são causados por um yûrei, o fantasma de uma mulher que, seja através da sua aparição ou da possessão de outros personagens, trouxe a morte ao campo de concentração. Trata-se de um yúrei, uma mulher jovem e muito bonita, Yuko, mãe solteira, que se suicidou depois da morte de seu filho ainda bebê.
Podemos entender esta figura folclórica, representada por um espírito, como uma metáfora dos acontecimentos reais que se passam na série, como uma leitura psicológica dos acontecimentos. Um espírito, algo que não pertencia aquele grupo, que vinha de um outro mundo e nem sempre podia ser visto por todos, retirava a vida desta comunidade, trazia a dor. Pode ser entendida também como uma expressão de toda a raiva que a comunidade sentia por aqueles que os encarceravam e retiraram sua dignidade enquanto seres humanos, simplesmente por terem vindo de “um outro mundo”, de um país do outro lado do oceano.
Jung, em sua obra “Os arquétipos e o inconsciente coletivo” (JUNG, 2008, pag. 206), ao falar sobre o espírito, compreendido por ele como atitude, coloca-o como “um complexo funcional, que originalmente era sentido, em nível primitivo, como uma presença invisível”. Complementa dizendo que:
A alma ou espírito dos falecidos é o mesmo que a atividade psíquica dos vivos; é sua continuação. A ideia de que a psique é um espírito está implícita nisso. Quando algo de psíquico ocorre no indivíduo e este sente que o fenômeno lhe pertence, trata-se de seu próprio espírito. No entanto, se algo de psíquico lhe ocorre como algo estranho, trata-se de um outro espírito que talvez possa causar-lhe uma possessão. No primeiro caso, o espírito corresponde à atitude subjetiva, no último, à opinião pública, ao espírito da época ou à disposição originária ainda não humana, antropoide, que também chamamos inconsciente. (idem, pags. 206 e 207)
O fantasma, yûrei, representado por Yuko, resume em uma frase o embate psíquico vivido por esta comunidade, em um diálogo com o personagem principal, Chester: “Você é duas pessoas. Luz e escuridão. Vida e morte. Você vive em dois mundos, mas não está encontra o lar em nenhum deles. Você é um pardal no ninho de uma andorinha”.
Leila Cristina Montanha – Analista Junguiana em formação no IJEP
Referências
FERREIRA, Claudio Augusto. Personagens folclóricas, deuses, fantasmas e Histórias Extraordinárias de Yotsuya Tôkaitô: o sobrenatural na cultura japonesa. Dissertação(mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008
MARTINS, Nívea Oura. Kaidan – Narrativas do Sobrenatural. Um estudo a partir da obra Kwaidan de Lafcadio Hearn.2012.147f.Dissertação(mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
PIRES, Ludmila da Silva – A psique japonesa – grandes temas dos contos de fadas japoneses. Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 2016. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-08252016000200006&lng=pt&nrm=i&tlng=pt]
VON FRANZ, Marie – Louise. A interpretação dos contos de fadas. ed. Paulus. São Paulo, 1990 3ª edição.
THE TERROR, INFAMY (2ª temporada). Direção: David Kajganich, Soo Hugh. Produtores: Alexander Woo e Max Borenstein. Estados Unidos: AMC, 2019. STREAMING.