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Persona e sombra nas releituras cinematográficas dos contos de fadas

Como podemos perceber através dos conceitos de persona e sombra, alguns aspectos ficam na luz, outros no escuro.  Portanto nunca um indivíduo poderá ter todos seus aspectos, sejam bons ou maus, iluminados.  Então podemos entender que enquanto uma pessoa aparenta fragilidade, delicadeza, fraqueza, dependência, estão guardados em sua sombra todos esses opostos.  Sendo assim existe uma pessoa forte e independente escondida e que não pode se mostrar.

Existirá sempre esse conflito entre os opostos, é um processo de enantiodromia, enquanto um aspecto está na persona seu oposto estará na sombra.  Jung fala que o processo de individuação acontece num movimento circunvoluntório, portanto podemos entender que hora o que está na sombra vai irromper e aparecer na superfície, fazendo com que o que estava na superfície mergulhe na sombra.

Da mesma forma com que isso acontece com o indivíduo, acontece com a psique coletiva, portanto uma sociedade vive aspectos em sua persona que mais tarde por ter sua energia psíquica esgotada mergulhará na sombra permitindo que irrompa o seu contrário dotado de energia.

De acordo com Von-Franz os contos de fada têm uma linguagem simbólica e esses símbolos vão se atualizando e sendo renovados através dos tempos.  Apesar de ter uma linguagem arquetípica os contos sofrem interferências da sociedade, e muitas vezes eles vão sofrendo alterações que de certa forma podem alterar sua mensagem primeira, mas respondem aos anseios daquela sociedade.

O cinema traz uma série de adaptações de contos de fadas que fazem muito sucesso tanto entre crianças como adultos.  Podemos entender esse sucesso pelo fato de que os filmes são uma maneira mais acessível ao conteúdo dos contos. O apelo midiático leva centenas de pessoas, tanto adultos como crianças, aos cinemas e assim esses conteúdos vão se perpetuando.  Para Von-Franz mesmo as releituras de contos de fadas através das animações, mantém seu conteúdo arquetípico por isso conseguimos atingir o objetivo tanto lendo um conto como assistindo as releituras e adaptações feitas para o cinema.

O cinema, hoje, não tem só um sentido comercial, mas também passou a ser visto como um instrumento de possibilidades variadas. Em um filme além da apresentação dos elementos audiovisuais, é representado não só um dado momento histórico, mas também como o ser humano vive, pensa e se relaciona.  É preciso dissecar os significados ocultos, porém presentes. Um filme se constitui numa fonte alternativa para se compreender a realidade histórica e social, pois ao apresentar as particularidades da vida real, permite observarmos as ações dos homens no seu cotidiano, possibilitando uma apreensão palpável dos comportamentos humanos. Qualquer gênero de filme pode se transformar num instrumento de análise da realidade, porque o filme propicia a reflexão sobre fatos e acontecimentos, a partir do contato com as imagens, estimulando a capacidade de análise. De acordo com Von Franz hoje em dia, ao abordar vários desses fatos psicológicos essenciais, o cinema substitui a narração de mitos e contos de fadas, tornando-se sua versão moderna.  Os filmes que se referem ao mundo interior – como é o caso dos contos de fadas – atraem público, porque precisamos de mitos para ter uma orientação, um certo mapeamento do mundo dos sonhos ou do inconsciente. 

Num estudo feito sobre as princesas Disney, percorreu-se a história de várias princesas e pode-se constatar que as características destas foram mudando com o passar dos anos para acompanhar uma mudança no momento histórico da época em que esses contos eram adaptados para o público. A Disney, em suas adaptações cinematográficas, foi seguindo a tendência mercadológica e foi modificando a figura da princesa.

O que podemos perceber é uma mudança de direção na preferência dos contos e de suas releituras e adaptações cinematográficas.  Filmes em que antes a princesa era tida como ¨passiva¨ deixam um pouco o cenário do cinema para dar espaço a princesas mais ¨ativas¨, que não ficam à espera de um príncipe que as venha  salvar. A princípio isso parece novidade, no entanto ao estudarmos os contos de fadas percebemos que esses dois modelos de princesas sempre existiram, mas o momento histórico fez com que a princesa mais delicada e frágil aparecesse mais e estivesse em evidência e isso se dá muito por conta do momento histórico em que os contos se tornaram populares. O patriarcado estava se instalando, houve então uma repressão da energia feminina e atitudes tidas como masculinas, como agressividade passaram a estar em evidência. As princesas então passaram a guardar as características da energia feminina, como a paciência, a espera e a valorização do amor, pois nesses contos de fadas as princesas sempre casam com seus príncipes e vivem felizes para sempre.

Com o avanço da sociedade e todas as discussões a respeito de igualdade entre gêneros começou a acontecer um movimento de retomada dessa energia feminina e as mulheres começaram a reivindicar atitudes mais ¨independentes¨, entre elas não esperar de forma passiva que um homem resolva seus problemas. As conquistas tecnológicas e científicas nos levam a um questionamento de valores, costumes patriarcais, buscando alteridade e um equilíbrio entre homens e mulheres, onde as diferenças são acalentadas e não excluídas.

O cinema levou as telas adaptações como A Bela Adormecida, Cinderela, entre outras num momento histórico em que essas princesas guardavam atitudes que vinham ao encontro da necessidade de uma época. Adaptações que levavam as pessoas ao cinema para assistir a esse modelo de princesa, mas com a discussão sobre igualdade e valoração da mulher o cinema percebeu uma mudança na preferência do público, uma nova maneira de ver a mulher. Mais para o final do século XX há uma mudança, uma busca por autoconhecimento, reflexão e uma nova identidade que abarque os potenciais femininos até então adormecidos. Estamos caminhando para uma readaptação psíquica que aparece no comportamento das pessoas. Sendo assim, o cinema tratou de acompanhar essa tendência e deu espaço para adaptações de contos de fadas com características de um feminino independente, que vai à luta e resolve suas questões sozinha sem esperar pelo príncipe encantado.

Na verdade, esses dois modelos de princesas sempre existiram, mas como já foi explicado anteriormente, para um aspecto estar na luz outro deverá estar na sombra.  Isso nos leva a refletir que um modelo de princesa é a sombra do outro e quando um está em evidência tomando lugar na persona outro estará no inconsciente confinado a sombra.  Quando um estará em evidência e o outro não, dependerá do momento histórico.  No início das adaptações cinematográficas eram as figuras mais delicadas e frágeis que estavam em evidência, para suprir uma necessidade da época; agora a necessidade pede que as princesas que fiquem em evidência sejam as mais valentes, corajosas e independentes.

A própria Disney em seu site oficial separa as princesas em duas características: princesas clássicas e princesas rebeldes.  As clássicas seriam Branca de Neve (1937), Cinderela (1950), Bela adormecida (1959), entre outras; já entre as rebeldes está Ariel (1989), Mulan (1998), Merida (2012), Elza (2014) e Moana (2017). Partindo desta classificação já podemos ver que ainda há no imaginário um modelo de princesa que seria mais adequada e comportada, daí o nome ¨princesas clássicas¨, que na verdade é uma referência as princesas presentes nos contos de fadas clássicos. 

A partir disso passa a ficar em evidência as princesas tidas como ¨rebeldes¨, que são princesas que não estão preocupadas em encontrar um príncipe para casar, mas querem ser independentes e cuidar do próprio destino.  Elas vêm também mostrar que outros modelos de beleza são possíveis, e que uma menina com cabelos rebeldes e ruivos também pode ser considerada uma princesa, que uma princesa negra, como é o caso da princesa da animação ¨A princesa e o sapo¨ também é possível.  Isso empodera as meninas e elas passam a se reconhecer como princesas, aceitando suas próprias características.

Levando-se em conta o inconsciente coletivo e a época em que essas adaptações dos contos ganharam as telas do cinema, podemos perceber que a atitude da princesa dos contos clássicos sai de cena para dar lugar as princesas que tem outros interesses além do príncipe e do casamento, vem atender a necessidade de um feminino que luta por independência. Podemos entender essa mudança de atitude das princesas como reflexo desse inconsciente coletivo que busca dar essa independência a mulher. A mudança na figura das princesas adaptadas para o cinema, mostra uma mudança na atitude, no comportamento e vem ao encontro da sociedade que está mudando e lutando contra padrões de beleza e comportamentos ditados para a mulher e visto por alguns como inalcançáveis. Há uma preocupação de que nossas meninas aceitem sua própria beleza e seu próprio jeito de ser e não persigam padrões irreais. Podemos perceber que a princesa dos contos clássicos traz características que agora não são exaltadas, que as características exaltadas nos contos modernos são exatamente o oposto das primeiras, daí podemos perceber que a princesa dos contos clássicos representa a sombra da princesa dos contos modernos e vice-versa.

A Disney foi pioneira ao trazer essas animações para o público,  talvez reconhecendo essa necessidade que pairava no ar,  captando a necessidade deste inconsciente coletivo e buscando nos contos de fadas histórias com princesas que atendessem a esse apelo, fazendo uma releitura para o cinema e levando para as telas uma princesa com nova roupagem, tendo características que podemos entender como mais independentes. Mais tarde podemos observar que outras empresas no ramo do entretenimento seguiram o mesmo caminho.  Junto a isso empresas de brinquedos correram atrás e modificaram também algumas linhas de bonecas e acessórios, incluindo a famosa boneca Barbie que hoje em dia já apresenta variações que não eram pensadas no passado.

Lendo os contos ou assistindo as adaptações cinematográficas podemos perceber também que dentro do conto das princesas clássicas a figura de mãe não existe e essa princesa mantém todas as características próprias do feminino, pois precisa lutar contra a madrasta, a bruxa, eis aí o lado sombrio.  Já nos contos das princesas rebeldes a figura da mãe está presente, como em Mulan, que tem uma mãe dedicada ao lar e que quer muito que a filha se case para honrar a família, a honra viria através do casamento.  Em Valente,  Merida também se recusa a casar e tem uma identificação muito maior com o pai do que com a mãe,  que também é um feminino ligado às questões maternas,  ela quer se aventurar pela floresta o que deixa sua mãe muito descontente porque ela deveria ser preparada para o casamento para haver a junção dos clãs,  o de sua família e de seu futuro marido.  Fica claro aqui que as princesas rebeldes se opõem ao feminino expresso pela mãe, portanto podemos observar dentro do próprio conto que uma é a sombra da outra.  Portanto além de verificarmos a sombra coletiva através da expressão desse feminino mais independente, verificamos a sombra pessoal entre mãe e filha. Talvez essas princesas consigam dar vazão a esse lado mais independente justamente porque a figura da mãe se mantém presente mantendo o lado frágil. Ao assistir a essas adaptações podemos entrar em contato com os dois lados do feminino.

Temos ainda a princesa Elza, de Frozen e Moana, de Moana: Um mar de aventuras que saem em uma jornada pelo coletivo, ambas têm a preocupação de salvar a comunidade onde vivem. Precisam sair em uma jornada em defesa do coletivo e não numa busca pessoal. São princesas que tem outros interesses que não o casamento, estão em busca de algo maior, que extrapola o âmbito pessoal.

Levando em conta o inconsciente coletivo essas princesas tidas como ¨rebeldes¨ vem figurar as telas dos cinemas atendendo ao apelo de uma sociedade que necessita de figuras femininas mais ¨fortes¨, porém não podemos esquecer que se a atitude das princesas clássicas era unilateral o que acontece com as princesas ¨rebeldes¨ não é diferente.  Há aí também uma unilateralidade, que deixa o masculino em segundo plano, mas que em breve deverá ser olhado novamente porque a tentativa de equilíbrio e união da energia masculina e feminina precisa acontecer.

Por um lado, o cinema coloca em evidência a figura da princesa ¨rebelde¨, por outro ainda podemos ver na internet que existem movimentos em defesa da figura da princesa clássica.  Numa breve pesquisa encontramos uma escola em Minas Gerais que se denomina ¨escola de princesas¨, onde os valores passados são os de cuidado com a aparência, cuidados com a casa, etiqueta de uma princesa e a importância do matrimônio, passo mais importante na vida de uma mulher, segundo o site da escola. Em contrapartida existem livros ¨antiprincesas¨ que contam histórias de mulheres reais e batalhadoras e que, pelo modelo da princesa tradicional não teria status de princesa, como Frida Kahlo, Violeta Parra e Clarice Lispector (Fink e Saá, 2015). Esses movimentos contrários entre si  reforçam a ideia de que uma atitude é a sombra da outra, sempre num movimento de subida e descida de energia psíquica.

Nos contos de fadas o mal está sempre ligado à sombra,  mas com a tendência de se mostrar as crianças que o mal não é tão mal assim temos ainda uma produção para a televisão que está fazendo um enorme sucesso tanto entre o público infantil quanto adulto,  trata-se da série ¨Once upon a time¨ (Kitsis e Adam, 2004), que estreou no Brasil pelo canal Sony, em 2 de Abril de 2012, e que é também uma produção dos estúdios Disney, que mistura vários contos muito bem entrelaçados onde seus personagens oscilam entre o bem e o mal.  Onde branca de neve não é sempre boazinha e resignada, mas mostra sua porção de maldade e até de humanidade; onde a bruxa má não é tão má assim, é capaz de amar e ter atos bondosos, é capaz de se apaixonar e ajudar as pessoas.  Essa série mantém o teor mágico dos contos de fadas, mas também o aproxima da realidade do dia-a-dia de quem o assiste trazendo personagens com caráter mais humano. Podemos perceber, através da dualidade de emoções dos personagens da série uma tentativa de integração da sombra, pois vemos seus personagens em atitudes equilibradas entre bem e mal.

Temos ainda a empresa DreamWorks que traz a princesa Fiona, na animação Shrek que já conta com três longas e que conta a história de uma princesa que começa exatamente como a Bela adormecida, deitada a espera de um príncipe, mas que é acordada por um ogro que foi contratado para resgatá-la das garras do dragão.  Ao longo da história Fiona se revela também uma ogra que estava enfeitiçada mostrando que sua verdadeira forma era a de ogra, verde e gordinha, bem diferente da figura da princesa ¨clássica¨.  Ela descobre em Shrek seu verdadeiro amor e eles se casam.  Esta animação nos mostra bem que podemos ser fortes, valentes e diferentes sem abrir mão do ¨príncipe¨, Fiona é tudo isso, ela luta, se defende, mas não abre mão do amor.  Uma figura de feminino que contempla seu lado delicado sem deixar de lado seu lado destemido, mas que reconhece no masculino qualidades importantes e não o despreza.  Ela quebra o estereótipo, traz uma nova roupagem para a figura da princesa sem desprezar o masculino, ela não nega a necessidade de uma energia masculina estar presente.  A mensagem passada por essa animação é uma mensagem um pouco mais equilibrada já que mostra que as meninas podem ser princesas mesmo sendo diferentes dos padrões e que ainda assim podem escolher ter um príncipe para acompanhá-las na jornada. 

O fato desses movimentos se alternarem leva a crer que um equilíbrio está sendo buscado e que poderemos ter sim meninas empoderadas reconhecendo sua face no espelho, se vendo princesa por estar representada nessas releituras.  Elas poderão perceber que, na verdade uma princesa de fato pode escolher o que ela quer ser, como ela quer ser, se ela quer ter ou não um príncipe, e que não há nada de errado nisso.

Keller Villela

Psicóloga e Membro Analista em Formação pelo IJEP

Fone: (11) 98225-4490 Vila Mariana e Guarulhos

e-mail: kellervillela@terra.com.br

Referências:

BONAVENTURE, Jette. O que conta o conto? São Paulo. Paulus, 5ª edição, 2008.

FINK, Nadia; SAÁ, Pitu. Frida Kahlo. Para meninas e meninos. Santa Catarina. Sur livro, 2015.

FINK, Nadia; SAÁ, Pitu. Violeta Parra. Para meninas e meninos. Santa Catarina. Sur livro, 2016.

FINK, Nadia; SAÁ, Pitu. Clarice Lispector. Para meninas e meninos. Santa Catarina. Sur livro, 2017.

JUNG, Carl Gustav. Aion. Estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. Rio de Janeiro. Vozes, 8ª edição, 2011.

VON FRANZ, Marie Louise. A Interpretação dos Contos de Fada. São Paulo. Paulus, 7ª edição, 2008.

______________________ A Sombra e o Mal nos Contos de Fada. São Paulo. Paulus, 4ª edição, 2003.

______________________ O Feminino nos Contos de Fadas. Rio de Janeiro. Vozes, 3ª edição, 2010.

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