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Posicionamento político: coniunctio oppositorum e unilateralidade em tempos de polarização

Posicionamento político: coniunctio oppositorum e unilateralidade em tempos de polarização

Posicionamento político: coniunctio oppositorum e unilateralidade em tempos de polarização

O estado de polarização política que se manifesta na sociedade brasileira, desde os últimos anos, está longe de ser um tema esgotado e nenhuma análise a respeito será capaz de dar conta de toda a complexidade que o envolve. Tão importante quanto compreender seus aspectos políticos, ideológicos e sociológicos, é lançar sobre o tema a luz da psicologia analítica de C. G. Jung.

Nesse sentido, parece-nos especialmente importante compreender em que medida o fenômeno que Jung chamou de unilateralidade da consciência participa desse estado de ânimo  coletivo que toma conta de nosso país. A unilateralidade – no léxico da psicologia junguiana – é resultado de uma atitude psíquica conscientemente dirigida. No entanto, toda direção pressupõe um sentido contrário que, no caso da psique, vai se manifestar no inconsciente.

“A unilateralidade é, ao mesmo tempo, uma vantagem e um inconveniente, mesmo quando não parece haver um inconveniente exteriormente reconhecível, existe, contudo, sempre uma contraposição igualmente pronunciada no inconsciente” (JUNG, 2013, §138)

Isso quer dizer que a direção com a qual a nossa consciência se identifica esconde um conteúdo oposto, inconsciente. Conteúdo este muitas vezes sombrio e que, a depender das circunstâncias, poderá reivindicar um lugar à luz da consciência.

Quanto mais capazes formos de nos afastar do inconsciente por um funcionamento dirigido, tanto maior é a chance de surgir uma forte contraposição, a qual, quando irrompe, pode ter consequências desagradáveis” (JUNG, 2013, §138).

É importante ter em mente que o processo de desenvolvimento da personalidade, que Jung chamou de processo de individuação, consiste, grosso modo, na integração de conteúdos inconscientes à consciência (Cf. Jung, 2011b, §489). Conferindo à nossa existência mais significado e transformando de forma significativa nossa percepção e relação com o mundo – a ponto de nos tornar mais adequados a ele e, ao mesmo tempo, torná-lo mais apropriado a nós.

A complexa relação entre consciente e inconsciente

Todavia, por mais integração de conteúdos inconscientes que se faça ao longo da vida nossa consciência é limitada, ao passo que nossa inconsciência é infinita. Tal reconhecimento, ao que parece, é fundamental para não nos perdermos na própria unilateralidade. Para sermos capazes, por exemplo, de compreender por que há quem “escolha” seguir na direção oposta à nossa, inclusive do ponto de vista político. Contudo, este mergulho na compreensão das razões do outro não costuma acontecer sem que haja antes afetações e incômodos graves projetados no próximo e em suas escolhas.

É justamente a afetação odiosa a denúncia de que reside em nós um aspecto que não desejamos enxergar, mas que precisa ser visto. Numa frase concisa, Jung (2013, §507) revela como essa projeção costuma se manifestar: “Cum grano salis, veem-se sempre as próprias faltas inconfessáveis no adversário”. O inconsciente é infinito e coletivo, portanto, não pode ser abarcado pela consciência individual. Nossos afetos revelam quais são os peixes desse sombrio e desmedido mar que precisamos pescar e trazer à luz do mais íntimo e frágil sol que constitui nossa consciência.

Assim como diversos temas que mexem com nossas paixões, a política se apresenta como uma grande oportunidade, raramente aproveitada, de buscarmos autoconhecimento.

Não é um caminho nada fácil. Afinal, em linhas gerais, exige que estejamos dispostos a enxergar em nós mesmos aquilo que acusamos no outro com desprezo e ódio. Isso porque, nesses casos, o que se está projetando são complexos que se constelaram em razão da unilateralidade que os manteve distante da consciência. Mas, vale repetir, eles querem ser vistos e, para tanto, vão se manifestar, aos nossos olhos, nos outros. Quando assim acontecer, vamos acreditar que não fazem parte de nós, acreditaremos que são, de fato, do outro, e desejaremos derrotá-los e aniquilá-los.

Nas palavras de Jung (2013, §253): “Os complexos são fragmentos psíquicos cuja divisão se deve a influências traumáticas ou a tendências incompatíveis […] comportam-se como mecanismos independentes, fato particularmente manifesto em estados anormais”.

Desse trecho, vale a pena se atentar ao termo “tendências incompatíveis”.

No embate político, um lado imputa ao outro os aspectos de si mesmo que mais o amedrontam e os quais negam, por vezes, desesperadamente. É justamente por não nos dispormos a compreender que nossa ira, em grande medida, é fruto do fato de a ameaça externa representar, antes e sobretudo, uma ameaça interna, que nos tornamos vulneráveis à invasão (ou possessão) do complexo que nos levará a fazer exatamente aquilo que nossa consciência mais despreza.

É dessa maneira que o empresário-eleitor, engajado na defesa de seu político de preferência e que acusa o candidato adversário de corrupção, com raiva e ojeriza, para impedir que o adversário vença, extorque seus funcionários, sem o menor constrangimento, ameaçando-os de perder seus empregos, caso não votem em seu candidato. Ou seja, ele próprio se corrompe.

Do mesmo modo que os eleitores que escolheram seu candidato, sob o argumento de que ele representa o “amor” contra o “ódio” do opositor, lamentam profundamente o fracasso na tentativa de assassinato do candidato adversário. Ou seja, tornam-se o próprio ódio. É assim que ambos, mesmo quando se dizem democratas e defensores da diversidade de ideias e opiniões, acusam velhos amigos e familiares, que escolheram votar numa terceira opção, de inimigos (enrustidos) do amor e da democracia ou de cúmplices da corrupção. Ou seja, mostram-se autoritários e intolerantes.

O “eu” e a assembleia de complexos

Embora sejam “particularmente manifestos em estados anormais”, como em casos de esquizofrenia, os complexos são pressupostos da psique de qualquer indivíduo, funcionando sempre a partir de núcleos arquetípicos (Cf. Jung, 2011b, §3-4). Em grande medida, atributos humanos, como maternidade, paternidade, heroísmo, vileza e ganância estão amparados, primeiramente, nas imagens arquetípicas que nos habitam de forma inata, desde o inconsciente coletivo, e, numa segunda base, nos complexos, que, vale explicar, são fruto da combinação entre o fundamento arquetípico e as experiências de vida do indivíduo. Por isso, são identificados em nosso inconsciente pessoal. Assim sendo, não constituem um problema em si, ao contrário, são, antes, indispensáveis à nossa sobrevivência.

É possível dizer que o caráter vital dos complexos aumenta ainda mais a necessidade de compreensão da manifestação perturbadora de seus aspectos sombrios por parte do centro ordenador de nossa consciência individual – o ego.

Em síntese, quão mais consciente da própria inconsciência e dispostos a analisar, cuidadosa e significativamente, pensamentos, sentimentos, sensações e intuições que se precipitam incômoda, inadvertida e insistentemente em nossas mentes, menos vulneráveis a um comportamento dissociado estaremos. Caso essa escuta interna não aconteça, os exemplos dados anteriormente dão conta de mostrar as consequências.

Principalmente porque, quando se trata de política, incide o agravante da influência das massas nutridas pela vulnerabilidade dos indivíduos ao contágio psíquico (2021). Lembrando que o contágio foi potencializado estupidamente nas últimas décadas a partir dos meios digitais.

“O campo amplo do inconsciente, não alcançado pela crítica e pelo controle da consciência, acha-se aberto e desprotegido para receber todas as influências e infecções possíveis” (JUNG, 2020, §493)

Quanto menos flexível o ego do indivíduo e quanto menos disposto ao diálogo íntimo com os conteúdos sombrios da psique, mais vulnerável ele estará às influências das massas. E, consequentemente, mais entregue ao controle de seus complexos, ou seja, governado por sua inconsciência.

Não é equivocado dizer, portanto, que a disposição para dialogar civilizadamente com o próximo sobre política tende a ser, antes, resultado da capacidade do indivíduo de dialogar com seus próprios complexos, “desafetando-os” e, assim, tirando boa parte da carga inconsciente de influência deles sobre o comportamento do indivíduo. É curioso e antinômico (mas não incoerente) pensar que: quanto mais dedicado à compreensão de si mesmo for o indivíduo mais saudáveis e verdadeiras serão suas interações sociais.

“Não existe nenhum relacionamento psíquico entre dois seres humanos, se ambos se encontrarem em estado inconsciente […] contudo, existe a inconsciência parcial em amplitude nada desprezível. Na medida em que existirem tais inconsciências, também se reduz o relacionamento psíquico” (JUNG, 2021, §324-325).

Vale considerar, ainda, que as relações sociais, por outro lado, como campo de projeções de nossas sombras, são igualmente essenciais para o autoconhecimento. Em debates políticos acalorados, se nos dispusermos à autoanálise, poderemos ver, em nossas atitudes, alguns dos nossos complexos constelados e, a partir daí, compreender melhor aspectos de nós mesmos que ignoramos, mas que nos governam.

Coniunctio oppositorum

Esse encontro psíquico entre luz e sombra, elementos que podem ser entendidos como pares de opostos, também se traduz num termo em latim que Jung emprestou da alquimia ocidental: coniunctio oppositorum, que significa, grosso modo, união dos opostos. Por tudo o que escrevemos até aqui, fica evidente que essa integração não é tarefa nada simples.

“Isto [coniunctio oppositorum] não pode ser entendido senão como um paradoxo, pois uma integração dos opostos só pode ser concebida como um aniquilamento dos mesmos” (JUNG, 2011, §324).

Ou seja, a compreensão da sombra pressupõe o sacrifício da luz em todo o seu esplendor para que uma nova consciência, nem tão luminosa nem tão sombria, mas mais conciliadora, possa nascer.

A unilateralidade é uma condição da consciência e a coniunctio oppositorum precisa ser realizada inúmeras vezes ao longo de uma mesma vida.

É por meio dela que a consciência evita seu próprio colapso e, ao mesmo tempo, “amplia-se”. Contudo, a consciência não pode escapar à sua condição: a unilateralidade. Aceitá-la, no entanto, não significa entregar-se cegamente a ela e ignorar a própria inconsciência, mas, antes de tudo, saber-se limitado e incapaz de qualquer onisciência. É ainda, primeiramente, comprometer-se com a dúvida. Por mais difícil que seja guiar-se, a todo o tempo, por uma vereda de incertezas. Ainda assim, paradoxalmente, este há de ser o caminho mais seguro para evitar falsas verdades e convicções fratricidas. Não é preciso ir tão longe: faltavam dúvidas e sobravam certezas aos nazistas; faltavam dúvidas e sobravam certezas aos stalinistas.

Por falar em nazistas e stalinistas, vale reforçar que a dúvida não é um atributo das massas, dos agrupamentos de pessoas doutrinadas. A dúvida não costuma ser um atributo dos “ismos”. As massas se guiam por palavras de ordem e convicções. A dúvida é um atributo do indivíduo. É um recurso indispensável à reflexão. Capaz de temperar de sensatez e transcendência toda direção, justamente porque mantém as portas da consciência saudavelmente abertas aos conteúdos que precisam ser apreendidos do inconsciente. Porém, a pessoa que cultiva a dúvida desfruta de menos instantes coletivos de conforto e, por isso, vê-se obrigada a encontrar, em si mesma, seu centro, seu norte e sua paz, mesmo que em seu derredor só haja chamas.

Na psicologia junguiana, esse norte é conhecido como Self, o centro ordenador da totalidade e ao qual o ego deve estar subordinado.

O Self é o arquétipo cuja representação, nas diversas culturas humanas, é a imago Dei (imagem de Deus). Em última análise, é a partir dos desígnios dele que emergem os conteúdos do inconsciente que precisam ser conscientizados para o nosso amadurecimento e transcendência.

O indivíduo que não estiver ancorado em Deus não conseguirá opor nenhuma resistência ao poder físico e moral do mundo” (JUNG, 2011, §511)

É importante esclarecer que a ideia de Deus a que Jung se refere não trata, necessariamente, da mesma imago Dei professada por instituições religiosas. Até porque, embora não se deva generalizar essa institucionalização, pode também massificar a fé e obliterar seu caráter conscientemente transcendental, ao invés de libertar o indivíduo da inconsciência das massas e colocá-lo no caminho do conhecimento de si mesmo.

“O homem precisa da evidência transcendente de sua experiência interior, pois essa constitui a única possibilidade de se proteger da massificação” (JUNG, 2011, §511)

Enfim, o posicionamento político

Por toda a reflexão feita até aqui, não é exagero dizer que é essa fé íntima num princípio ordenador da totalidade que permite ao homem viver na dúvida, embora não na indecisão. Afinal, é preciso fazer escolhas e eis porque a unilateralidade da consciência, se bem temperada com a humildade da dúvida, deixa de ser apenas um problema, passando também a ser solução.

Ao dispor-se, com humildemente, a compreender que sua consciência não abrange a totalidade dos fatos, o homem tende, naturalmente, a ser mais tolerante e respeitoso em relação às divergências. E a compreender que, apesar da sua direção, existem outras. Que cada cabeça, guardados os limites da legalidade, tem direito à própria avaliação e escolha.

Esse compromisso com a dúvida, além de não necessariamente aprisionar o indivíduo na indecisão, há de estimulá-lo a aprender sempre. A compreender o máximo possível acerca de si mesmo e de seu mundo antes de tomar qualquer tipo de decisão cívica, como um voto. Ao fazê-lo há de considerar o caráter ambíguo da psique, temperando sua decisão com uma boa dose de dúvida e compreensão da própria incapacidade de entender e julgar, com profundidade, a decisão alheia.

A árdua missão de combinar dúvida e decisão, escuta e opinião, por tudo o que expusemos acima, pode até parecer utópica aos olhos de muitos, mas vale a pena tentar, pois, mesmo que tenhamos fracassado nesse intento ontem – e haveremos de fracassar e também de nos perdoar algumas vezes – teremos a chance de tentar novamente e conseguir, a cada nova manhã.

Wagner H. P. Borges – Membro Analista em Formação

Natalhe Vieni — Membro Analista em Formação

E. Simone Magaldi — Membro Didata

Bibliografia:

JUNG, C. G. Aion — estudo sobre o simbolismo do Si-mesmo, 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 2011a.

_________. A natureza da psique. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

_________. Aspectos do drama contemporâneo. 16ª ed. Petrópolis: Vozes, 2022.

_________. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 2011b.

_________. O desenvolvimento da personalidade. 13ª ed. Petrópolis: Vozes, 2021.

_________. Psicologia do inconsciente. 11ª ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

_________. Presente e futuro. 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 2020.

TORRES, Leonardo. Contágio Psíquico: A Loucura das Massas e suas Reverberações na Mídia. São Paulo: Eleva Cultural, 2021.

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