Jung afirma que: “naturalmente, na medida em que são inconscientes, nada se pode dizer a respeito.” (JUNG, 2001) §272; isto pode ser uma forma astuta de dizer que não são processos submetidos ao tempo e ao espaço nem a forma da representação usada na linguagem comum e portanto nada se pode falar a respeito dos mesmos desta maneira. Porem aponta que é possível apreender manifestações destes processos: “Entretanto, às vezes, manifestam-se parcialmente através de sintomas, ações, opiniões, afetos, fantasias e sonhos” (JUNG, 2001) §272; sem nunca ultrapassar o hipotético “como se”. Refere que o inconsciente nunca está em repouso, sua atividade parece ser continua.
Não deixa de ser significativo o fato de que as pessoas que falam dormindo em geral não se lembram do sonho que as fez falar e nem mesmo se lembram de ter sonhado. É raro passar um dia sem que cometamos algum erro ao falar, sem que desapareça da nossa memória algo de que antes nos lembrávamos ou sem que nos subjugue um estado de ânimo, cuja origem desconhecemos, etc. Todas estas coisas são sintomas da contínua atividade do nosso inconsciente, que à noite se evidencia nos sonhos e, durante o dia, vence ocasionalmente as inibições impostas pela consciência. (JUNG, 2001) §273
Ou seja a noção de inconsciente em Jung, como diz Hillman, “não precisa de prova empírica. Todavia a prova do inconsciente veio sempre por demonstração negativa, isto é, a existência do inconsciente é demonstrada através de seus efeitos perturbadores na consciência do ego” (HILLMAN, 1984) p.154.
Hillman afirma a importância e o necessário cuidado para não substancializar, unificar ou literalizar a noção de inconsciente. A identificação total como o Ego racional e volitivo produziria um conceito de inconsciente hipostasiado e escrito com maiúscula. Para a posição que privilegia a vontade e a razão o inconsciente é um cesto de lixo de sensações não assimiladas. O termo “inconsciente” não deveria ser usado, nem para indicar comportamento inferior, ignorante, instintivo; nem mesmo ser tratado como uma pessoa à qual se possa pedir opiniões.
A perspectiva Junguiana pode personificar o inconsciente o que não legitima de forma alguma a literalização deste. Jung explicita que a noção de inconsciente não deve ser usada como um operador de planos gerais estabelecido e metas. “Acho, no entanto, que seria um erro supor que em tais casos o inconsciente atua segundo um plano geral e preestabelecido, tendendo para uma determinada meta e sua realização. Jamais encontrei algo que pudesse fundamentar tal hipótese.” (JUNG, 2001) §291.
Haveria uma função reguladora do inconsciente, mas não equivalente a uma pessoa que planeja sabendo a meta futura. Diante da pergunta se o inconsciente é capaz de formular uma crítica de algum modo construtiva para nossa mentalidade de homens ocidentais? Jung aponta que: “seria realmente um absurdo se tomássemos o problema do ponto de vista intelectual e atribuíssemos ao inconsciente uma psicologia consciente. (…) não tem funções diferenciadas, nem pensa segundo os moldes daquilo que entendemos por “pensar”. Ele somente cria uma imagem que responde à situação da consciência;” (JUNG, 2001) § 289.
Jung segue a ideia da psique como um sistema regulador. “a consciência, devido a suas funções dirigidas, exerce uma inibição” (Jung, 1984) §132 sobre “todos os elementos psíquicos que parecem ser, ou realmente são incompatíveis” (Jung, 1984) §136. A incompatibilidade é reconhecida por um ato de julgamento que determina a direção do caminho a ser julgado. Mas, “este julgamento é parcial e preconcebido, porque escolhe uma possibilidade particular, à custa de todas as outras.” (Jung, 1984) §136. A unilateralidade da consciência que bloqueia o que aparece como incompatível é resultado de um ato que julga a partir do que é conhecido na experiência e não no que é novo ou desconhecido. Haveria assim um estilo ou uma atitude da consciência que é conduzida a se orientar e pelas experiências passadas. Submete-se assim o presente e o desconhecido às marcas anteriores considerando o que não for isto “incompatível”. É exatamente por causa dos atos de julgamento que o processo dirigido se torna necessariamente unilateral; “A unilateralidade é uma característica inevitável, porque necessária, do processo dirigido, pois direção implica unilateralidade.” (JUNG, 1984) §138. Chama-se de inconsciente isto que resiste à função dirigida unificadora que domina na consciência; caso contrário as influências se manifestariam desimpedidamente. Seria a atenção crítica e a vontade orientada para um determinado fim que elimina ação “regulador” inconsciente.
(…) a psique do homem civilizado (…) pode ser comparado a um aparelho cujo processo de regulagem automático (…) é tão imperceptível, que pode desenvolver sua atividade a ponto de danificar-se a si mesma, (…) sujeita às interferências arbitrárias de uma vontade orientada unilateralmente. (Jung 1984) [159]
Seria a reação de resistência à função dirigida que regularia ou que limitaria a dominação de qualquer complexo. Sem inibição haveria efeitos que acrescentariam energia a direção consciente o que podem levar a estas se imporem demasiadamente, à custa do todo – “insistirá tanto mais sobre sua própria afirmação, em detrimento de si própria.” (Jung 1984) §160.
Embora exerça uma função reguladora “o inconsciente se afigura como um campo de experiência de extensão indeterminada” (JUNG, 2001) §292 ou pode-se dizer não submetido a qualquer forma de determinação (quer seja tempo espaço etc.); Assim processos inconscientes não seriam formas de recuperar objetos, representações, emoções ou ideias perdidas em algum lugar ou deposito literal; os “conteúdos” não seriam conteúdos literais. A função dirigida da consciência é complementada pelos processos metafóricos ou imaginais. Por isso “(…) consciente e inconsciente não se acham necessariamente em oposição, mas se complementam mutuamente, para formar uma totalidade: o si-mesmo (Selbst). (…), o si-mesmo é uma instância que engloba o eu consciente. Abarca não só a psique consciente, como a inconsciente, (…) (JUNG, 2001) §274.
Olhando metaforicamente pode-se reimaginar os processos inconscientes de tal forma que a consciência não se opõe ao inconsciente como dois espaços diferentes. Assim as coisas podem ser ao mesmo tempo consciente e inconsciente; como se tudo fosse ao mesmo tempo conhecido e desconhecido; certo e misterioso; determinado e indeterminado. Como se “conhecimento” dirigido pelo cone de luz da consciência fosse uma forma de desconhecer, pois produz como efeito ilusões e ficções, enquanto que desconhecer é uma forma de conhecer o que resiste ao que parece certo para o pensamento dirigido.
Autor: Ajax Perez Salvador
Obras Citadas
HILLMAN, James. O Mito da Análise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Vols. VIII-2. Petrópolis: Vozes, 1984.
—. La psicologia de la transferencia. Buenos Aires: Editorial Paidos, 1978.
—. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2001.