Resumo: A proposta desse artigo é analisar como a repressão dos aspectos sombrios da maternidade tem contribuído para o adoecimento psíquico das mulheres.
A partir da oposição simbólica entre Maria, representando o aspecto luminoso da maternidade (devoção, doçura, aceitação) e Kali, representando a dualidade, a força destrutiva e transformadora do feminino, vamos analisar como a cultura ocidental estimula uma identificação unilateral das mulheres com o ideal da mãe perfeita, reforçada por fatores religiosos, culturais e históricos.
Tal identificação exclui os aspectos sombrios da maternidade, como a raiva, a exaustão, o desejo de autonomia, trazendo, muitas vezes, sofrimento psíquico para as mulheres.
O reconhecimento e a integração dos aspectos luminosos e sombrios da maternidade podem representar uma via de cura e reconciliação do feminino e permitir alcançar uma maternidade mais autêntica e libertadora.
É sabido que o papel da mulher na sociedade vem mudando ao longo do tempo. Mas e as mães? Será que as expectativas em relação à maternidade acompanharam toda essa mudança?
Se fizermos uma breve pesquisa histórica vamos descobrir que esse modelo idealizado de maternidade, onde a mãe deve abrir mão de tudo em detrimento dos filhos (e sem ressentimentos!) nem sempre foi assim.
Num passado nem tão distante, por volta de XVIII, os filhos não eram a prioridade da família e muito menos ocupavam lugar de destaque.
Era muito comum, por exemplo, nas famílias de melhor poder aquisitivo as crianças morarem com amas de leite durante os primeiros anos. Muitas delas nem eram visitadas pelos pais até que chegasse a hora de retornarem para suas casas, quando já tinham sobrevivido às dificuldades dos primeiros anos de vida.
Já nas famílias mais pobres, os filhos eram vistos como mão de obra e eram colocados para trabalhar tão logo fosse possível, a fim de contribuir para o sustento da família.
Com a revolução industrial, a configuração das famílias passou por algumas mudanças. Se antes homens e mulheres ocupavam as lavouras ou comércios, agora eles ocupariam as fábricas.
No entanto, com o pós-guerra, houve uma pressão social para que os homens retomassem os empregos nas fábricas e as mulheres ocupassem os lares, com a desculpa de que o serviço era pesado demais para elas e que sua natureza se adequava melhor aos serviços domésticos. Porém, de pano de fundo, o objetivo era resgatar o masculino tão sacrificado nas guerras.
Diante desse cenário, os pais foram se distanciando cada vez mais das tarefas relacionadas aos filhos. E as mulheres, por sua vez, foram abrindo mão de ocupar outros espaços na sociedade para se dedicarem ao lar e à educação da prole.
Alguns historiadores também atribuem a Rousseau o início da mudança do olhar sobre a maternidade com a publicação do livro Emilio ou Da Educação, em 1762. Apesar de ser um relato fictício sobre a educação de um menino, ele questionou as práticas familiares vigentes, ressaltando, por exemplo, a importância da amamentação pela mãe, e fazendo uma crítica às mães que não tinham os filhos como prioridade. As ideias de Rousseau se espalharam, atraíram a atenção popular e provocaram discussões na sociedade.
A igreja católica também contribuiu bastante para a configuração do papel das mulheres na sociedade.
Embora a proclamação da assunção de Maria tenha sido declarada apenas em 1950, a figura da mãe de Jesus sempre foi vendida pela igreja como digna de inspiração. Maria, a virgem sem pecados, a que doou a vida pelo filho, a que nunca questionou seu destino, nem mesmo quando no mito o anjo aparece anunciando que ela tinha sido escolhida para ser mãe de uma criança divina.
Maria sempre é retratada com o filho nos braços, olhar calmo e sereno, como num momento de felicidade plena. Um modelo bastante repressor para as mães, que devem ser devotadas, assim como Maria, e capaz de enormes sacrifícios.
O menino Jesus jamais foi pintado chorando ou com a cabeça caída para trás. Sua mãe nunca teve uma aparência irritada ou cansada. Ninguém jamais pintou Maria nos afazeres prosaicos da maternidade: dando banho, alimentando ou vestindo Jesus. Nossa Senhora e o menino Jesus estão congelados na eternidade de um momento relativamente raro da mãe com o bebê.
FORNA, 1999, p.18
A sombra materna
As mães foram aos poucos moldando-se às expectativas da sociedade para a sua própria maternagem, ficando identificadas apenas com o lado luminoso, seja por imposição social ou por falta de conhecimento dos seus próprios sentimentos.
Ao longo das gerações, aprenderam que não podem expressar sentimentos ambivalentes. Amar e, ao mesmo tempo, desejar distância, cuidar e desejar tempo para si, sentir gratidão e raiva. Tudo isso é vivido em silêncio, sob o peso da culpa, criando um terreno fértil para o sofrimento.
E para onde vão todos esses sentimentos reprimidos, tudo aquilo que as mães não são autorizadas a sentir e a manifestar para estarem de acordo com o papel que tem sido atribuído a elas?
Esses conteúdos ficam na sombra que, para Jung, são os aspectos reprimidos ou desconhecidos da personalidade, onde também estão os conteúdos considerados impróprios socialmente.
JUNG, 2013, p.19
Quando Jung descreve os traços essenciais do arquétipo materno, fala dos aspectos luminosos e sombrios presentes em cada mãe: bondade nutritiva e dispensadora de cuidados, emocionalidade orgástica e sua obscuridade subterrânea (Cf. JUNG, 2014, p. 88).
Aspectos presentes em todas as mães e que, a rigor, não deveriam ser suprimidos.
Seus atributos são o “maternal”: simplesmente a mágica autoridade do feminino; a sabedoria e a elevação espiritual além da razão; o bondoso, o que cuida, o que sustenta, o que proporciona as condições de crescimento, fertilidade e alimento; o lugar de transformação mágica, do renascimento; o instinto e o impulso favoráveis; o secreto, oculto, o obscuro, o abissal, o mundo dos mortos, o devorador, sedutor e venenoso, o apavorante e fatal.
JUNG, 2014, p.158
Essa dualidade é essencial para a compreensão do arquétipo: a mãe é simultaneamente fonte de vida e de morte simbólica, acolhimento e ameaça, alimento e limite.
A idealização da maternidade representa uma identificação com a persona da mãe perfeita e uma repressão do aspecto sombrio do arquétipo. Ao negar os conteúdos que se contrapõem à imagem ideal, o cansaço, a raiva, a ambivalência, o desejo de ser mais do que somente mãe, a mulher rompe com a totalidade de sua psique.
O resultado disso é a manifestação de sintomas como culpa, exaustão, ansiedade, depressão e muitos outros. Para Jung, “aquilo que tiver sido reprimido, voltará a manifestar-se em outro lugar e sob uma forma modificada, mas dessa vez carregada de um ressentimento que transforma o impulso natural, em si inofensivo, em nosso inimigo” (JUNG, 2013 p.41.).
Maria e Kali – o drama da maternidade contemporânea
Nesse sentido, a deusa hindu Kali seria melhor representante dos aspectos duais da maternidade do que Maria. Kali é descrita como destruidora e sanguinária, mas também como força regeneradora e libertadora. Para muitas tradições tântricas, aproximar-se de Kali significa confrontar a própria sombra e, ao mesmo tempo, ser acolhido por uma dimensão radical de amor e liberdade.
Se Maria simboliza o amor incondicional e a doação, Kali representa a potência que corta o que precisa morrer para que o novo surja. Ambas podem ser consideradas expressões complementares do mesmo princípio materno.
Entre Maria e Kali se apresenta o drama psíquico da maternidade contemporânea. De um lado, a mãe santa, que tudo suporta e de outro, a mãe instintiva, que sente raiva, medo e desejo e que age muitas vezes de forma violenta.
Quando a cultura valoriza apenas o aspecto luminoso, a psique reage projetando a sombra reprimida, seja nas outras mulheres, vistas como mães ruins, seja em sintomas físicos e emocionais.
Jung lembra que a meta da individuação não é a perfeição, mas a totalidade, o equilíbrio entre luz e sombra.
Significa reconhecer em si tanto Maria quanto Kali: a ternura e a fúria, o amor e a destruição, o cuidado e o limite.
O objetivo da individuação não é o homem perfeito, mas o homem completo com sua luz e sua escuridão. O mal, assim como o bem, é dado ao homem juntamente com o dom da vida. Não pode nunca ser completamente vencido, embora o homem tenha a chance de contê-lo, tornando-se cônscio dele e analisando-o. Quanto mais consciente for de suas predisposições para o mal, mais condições terá de resistir às forças destrutivas dentro de si. Em geral, a individuação tem início quando o homem se torna consciente da própria sombra, da escuridão e do mal inconscientes, que são, no entanto, parte integrante da sua totalidade.
JAFFÉ, 2021, p. 81
A mulher que aceita sua sombra materna deixa de buscar a perfeição e passa a viver uma maternidade mais autêntica e livre. Essa aceitação não elimina o sofrimento, mas o ressignifica.
A negação dos aspectos sombrios aprisiona as mulheres em um ideal inatingível de perfeição. O reconhecimento da sombra não destrói o amor materno, o torna mais verdadeiro, porque permite amar sem negar o conflito. Acolher em si as forças ambivalentes tornam possível construir uma maternidade menos idealizada e mais real, uma maternidade viva, transformadora e inteira
Luiza de Oliveira Burger – Membro Analista em formação IJEP
Ana Paula Maluf – Analista Didata IJEP
Referências:
FORNA, Aminatta. Mãe de todos os mitos. Como a sociedade modela e reprime as mães. Rio
de Janeiro: Ediouro,1999.
JAFFÉ, Aniela. O Mito do Significado na obra de C. G. Jung. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 2021.
______ Aion. Estudo Sobre o Simbolismo do Si-mesmo.10. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
______ Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
KAST, Verena. A sombra em nós. A força vital subversiva. Petrópolis: Vozes, 2015.
ODIER, Daniel. Kālī: mitologia, práticas secretas e rituais. São Paulo: Presságio, 2019.
CHAMUNDACHARYA DAKSINA KALI (Vazel Chamunda Merenzeine). Kālī, adoração e serviço – volume 1. São Paulo: Clube de Autores, 2023.
Matrículas abertas: www.ijep.com.br


