É o trabalho de uma vida estudar os textos sagrados de qualquer vertente filosófica ou religiosa, não só pela dificuldade de compreensão desses escritos, mas principalmente por eles serem em si, simbólicos; isso não poderia ser diferente com o I Ching. O livro é vivo, suas imagens impõem a dimensão arquetípica da psique objetiva e negam a compreensão exclusivamente racional de seu conteúdo, sempre mostrando mais do que acreditamos ser possível enxergar, e a cada consulta revelando novas significações através das imagens, mesmo que elas apareçam eventualmente de maneira repetida. Talvez essa seja uma maneira de definir a própria atitude religiosa, expressão que conta com duas correntes etimológicas que, na minha visão, não brigam entre si. As duas vertentes concordam que a palavra tem origem no Latim, na expressão religio. Porém, uma conta que a expressão surge de re + ligare, significando, portanto, religação e, nesse sentido, a busca pela reconexão com os deuses. A outra diz que a origem aponta para re + legere e, nesse caso, estaríamos falando da releitura, reflexão e reverência repetidas perante os fenômenos simbólicos que a experiência religiosa pode trazer.
Nesse sentido, tentar compreender os textos do I Ching somente através da razão caracteriza uma tentativa de matar os símbolos representados nas imagens os transformando em signos. Lembrando o que disse C. G. Jung, o símbolo representa de maneira aproximativa aquilo que não podemos descrever completamente; ele une consciência e inconsciente e, por isso, sempre mantem uma dimensão desconhecida (JUNG, 2013). Podemos definir então a atitude simbólica como sendo, entre outras coisas, a capacidade do ego aceitar que todo fenômeno é portador de dimensões que sempre serão desconhecidas e incompreensíveis para o indivíduo.
Em um outro artigo publicado aqui mesmo no blog do IJEP eu explico um pouco da origem e do funcionamento do I Ching e num outro, mais recente, um dos princípios fundamentais do taoismo conhecido como Wu Wei, a ideia da ação não ação, que também tem relação com o assunto. No presente ensaio retomo uma experiência que tive com alunos, de uma turma que estava no último dia de aula do curso de especialização em psicologia junguiana do IJEP, enquanto faço algumas considerações teóricas.
É comum que durante essa aula, na qual aprofundamos nossa compreensão acerca das conexões do funcionamento do I Ching e da Sincronicidade com a noção de Unus Mundus e da nossa conexão com a totalidade, eu peça para a turma propor uma pergunta para o oráculo. Como era a última aula do curso, os alunos acharam interessante questionar sobre o encerramento desse ciclo, o início do próximo e as conexões entre eles, ou seja, sobre a continuidade do processo pelo qual estavam passando. Por isso, a pergunta formulada foi: “O que devemos fazer com o conhecimento adquirido durante o curso?” Antes de revelar a resposta do oráculo, vamos dar atenção para algo que Jung diz sobre as ferramentas e técnicas que aprendemos e desenvolvemos ao longo da nossa caminhada em busca do autoconhecimento: “No tocante a isso, tudo depende do homem e pouco ou nada do método. Este último representa apenas o caminho e a direção escolhidos pelo indivíduo; é o modo pelo qual o indivíduo atua nesse caminho que exprime verdadeiramente o seu ser” (JUNG; WILHELM, 2017, p. 25).
Na reflexão acima, Jung traz uma das ideias fundamentais do pensamento taoísta, a noção de que o mais importante para que a vida seja harmonizadora e criativa é a capacidade humana de viver integralmente através da maneira que ele atua no mundo e não da ferramenta escolhida para fazer isso. A sociedade contemporânea parece buscar exatamente o contrário, tentando encontrar em métodos mágicos e somente no mundo exterior a cura para a neurose individual e coletiva em que vivemos. Porém, esse movimento tem o efeito contrário criando pessoas cada vez mais patologizadas. Hoje, somente o Brasil possui cerca de 10,5 milhões de pessoas que se consideram influenciadores digitais e que passam o tempo tentando inspirar pessoas com palavras vazias e divulgação de imagens de suas personas empreendedoras. A ideia principal parece ser sempre vender técnicas que prometem a felicidade idealizada e absoluta, mas que têm como pano de fundo o objetivo maior lucrar através de merchandising e manter seu público cativo, nesse processo de anestesiamento da consciência.
Mais uma vez alinhado com o taoismo, o pensamento junguiano ensina que a maneira de suprimir a cisão patológica da psique é adentrar o mundo interno, entrar em contato com as antinomias formadoras de todos os fenômenos psicológicos e promover, numa atitude de combate e colaboração abertas simultâneas entre a consciência e o inconsciente, o surgimento de uma nova situação de vida. O arquétipo impõe inteireza – em contraposição à perfeição – e quando a consciência nega partes da personalidade de maneira exageradamente unilateral, elas se manifestam de maneiras patológicas (JUNG, 2011a). Por isso, a única maneira de experienciarmos a dimensão arquetípica da psique é através da imprescindível experiência psicológica da sombra, a qual precisamos compreender não só como aspectos negativos da psique, mas como dimensão portadora de tudo aquilo que não aparece na consciência e que existe como potencial no ser humano. Ou seja, independentemente de decidirmos trilhar nosso caminho através do trabalho analítico ou de qualquer outra ferramenta que podemos escolher com certa facilidade nos dias de hoje, o fator mais importante para que o processo de individuação aconteça é a integridade da personalidade total que conseguimos ou não impingir nesse caminho.
Retomando a pergunta feita pelo grupo para o I Ching: “O que devemos fazer com o conhecimento adquirido durante o curso?”, o oráculo respondeu, sem linhas móveis, indicando que, nesse caso, não há outra possibilidade de resultado, com o hexagrama número 25, Wu Wang:
O mestre taoísta Alfred Huang (2007) traduz a expressão como “Sem Falsidade”; Richard Wilhelm (1984) como “Inocência”, ou “O Inesperado”; Rudolf Ritsema e Stephen Karcher (1994) utilizam a expressão “Without Embroiling” (numa tradução livre seria algo como “sem emaranhar”) e John Blofeld (1984) como “Integridade”. Olhando para essa multiplicidade de traduções, já podemos perceber a complexidade e a dificuldade que temos para compreender expressões da língua chinesa, podemos até levantar a hipótese de que cada autor escolhe sua tradução de acordo com as projeções do seu próprio mundo interno. Porém, independente do nome dado ao hexagrama, como sempre, chamamos a atenção para o fato de que o mais importante é a imagem que o contato com ele constela na psique daquele que procura o oráculo.
A etimologia dos dois caracteres nos ajuda a compreender o movimento que o I Ching quer indicar através da resposta. De maneira resumida podemos dizer que o primeiro ideograma mostra uma pessoa curvada levando nas costas uma carga muito pesada e o segundo indica uma mulher se afastando, o que era tomado como símbolo de falsidade na China antiga. A primeira parte, além de expressar o peso que precisa ser carregado pelo ser humano durante a vida, seja de maneira simbólica ou literal, é utilizado para expressar “não”, por isso Huang traduz a expressão como “Sem Falsidade”. Ampliando simbolicamente, podemos dizer que aquele que adquire a sabedoria leva um peso muito grande sobre as costas, porém, se esse indivíduo estiver afastado do feminino, isso tudo será falso. O caminho correto é a integração representada aqui pelo Eros feminino, princípio da união e da conexão, em oposição ao Logos masculino, que divide, categoriza e unilateraliza. A criação e ampliação de consciência acontece no e através do encontro paradoxal, conflituoso e colaborativo desses dois princípios (EDINGER, 1984) que parecem ser representados imageticamente nos ideogramas que nomeiam o hexagrama.
Segundo a leitura de Ritsema e Karcher, cujo trabalho de tradução do I Ching foi baseado em mais de 50 anos de estudos da obra de Jung e de outros autores através de encontros na fundação Eranos, esse hexagrama indica que o melhor a se fazer na situação em que o indivíduo se encontra é agir sem vaidade exagerada, ou seja, sem se preocupar em satisfazer apenas as necessidades da persona. Wilhelm completa essa ideia quando diz que o livro indica aqui a necessidade de o indivíduo entrar em contato com as energias divinas que habitam seu mundo interior e de se comportar de acordo com a vontade dos deuses. As ampliações de todos os autores podem ser resumidas na expressão utilizada por Blofeld, o I Ching pede para que as pessoas sejam íntegras.
Muitas vezes Jung defende essa ideia em sua obra e o oráculo apenas concorda com ele quando mostra que o caminho da harmonia deve ser baseado na integração dos aspectos antinômicos da vida. De nada adianta criarmos uma lista de conceitos junguianos se na relação com o mundo interior, com nosso entorno relacional, com os indivíduos e com a coletividade não agimos de maneira íntegra. Porém, numa sociedade cujos valores são ditados pelos movimentos da massa, o indivíduo fica cada vez mais afastado desse caminho do autoconhecimento, que só pode ser alcançado “se o homem estiver disposto a satisfazer as exigências de um exame e conhecimento rigoroso de si mesmo” (JUNG, 2011b, p. 55). Não há outro caminho para a integridade da personalidade se não o mergulho nas profundezas da própria psique.
José Balestrini – Membro Analista e Analista Didata em Formação pelo IJEP.
Analista Responsável – Waldemar Magaldi
Imagem: Self-Portrait with Masks (1899), James Ensor. Disponível em https://www.wikiart.org/en/james-ensor/self-portrait-with-masks-1899
Referências
BLOFELD, J. I Ching The Book of Change. 1984.
EDINGER, E. F. A criação da consciência: o mito de Jung para o homem moderno. In: A criação da consciência: o mito de Jung para o homem moderno, 1984. p. 120-120.
HUANG, A. I Ching–Edição completa. : São Paulo: Martins Fontes 2007.
JUNG, C. G. Aion-Estudo sobre o simbolismo do si-mesmo (OC 9/2). : Petrópolis: Vozes, 2013f.(Original publicado em 1951) JUNG, CG Símbolos da … 2011a.
JUNG, C. G. Presente e futuro. Editora Vozes Limitada, 2011b. 8532641016.
JUNG, C. G. Tipos psicológicos. Tipos psicológicos, p. 1-633, 2013.
JUNG, C. G.; WILHELM, R. O segredo da flor de ouro: um livro de vida chinês. Editora Vozes Limitada, 2017. 8532655556.
RITSEMA, R.; KARCHER, S. I ching. Rockport, MA: Element Books, 1994.
WILHELM, R. I Ching: o livro das mutações. : São Paulo: Pensamento-Cultrix 1984.