Não é importante que os pais nunca cometam erros – isso seria impossível para os seres humanos –, mas que os reconheçam como erros. Não é a vida que deve ser detida, mas a nossa inconsciência; primeiramente, a do educador, isto é, a própria, pois cada um é educador de seu próximo tanto para o bem como para o mal.
(Jung, 2021, p.90)
Resumo: Na tentativa de proteger excessivamente seus filhos, muitos pais acabam impedindo que eles vivenciem experiências importantes e realizem tarefas simples do dia a dia. O artigo “Superparentalidade: de crianças superprotegidas a adultos infantilizados” aborda como esse excesso de “cuidado” pode formar adultos inseguros, dependentes e com dificuldades para enfrentar os desafios da vida. A superproteção compromete o desenvolvimento da criança, passando pela adolescência até a vida adulta, resultando em indivíduos emocionalmente presos à infância e marcados pela imaturidade. Mais do que nunca, precisamos refletir sobre nossa forma de educar: estaremos verdadeiramente preparando nossas crianças para a vida ou apenas protegendo a nós mesmos?
Crianças que ganham autonomia no autocuidado e nas tarefas domésticas tornam-se adultos mais afetuosos, regulados emocional e cognitivamente.
Essa é uma questão levantada no artigo realizado pela La Trobe University: Executive functions and household chores: Does engagement in chores predict children’s cognition? (Funções executivas e tarefas domésticas: o envolvimento nas tarefas prevê a cognição das crianças? – tradução livre).
Embora a tese apresentada acima pareça óbvia para muitos leitores, temos observado uma atitude contrária por parte de muitos pais nos dias de hoje. E é sobre essa superproteção parental que proponho refletirmos ao longo deste artigo.
O estudo australiano aponta que a superparentalidade tira das crianças a oportunidade de progresso por meio da realização de tarefas simples do dia a dia. O envolvimento excessivo dos pais prejudica o desenvolvimento emocional e comportamental desses indivíduos ao longo da vida, que crescem dependentes e incapazes de se autoafirmarem, tornando-se adultos infantilizados.
Observando a forma como a sociedade contemporânea vivencia a parentalidade, entendo que estamos em crise.
Perdemo-nos diante da ideia do que é amar, cuidar e ensinar.
Como elaborei no meu último artigo, “A parentalidade positiva e a sua sombra na contemporaneidade”, penso que assumimos novas demandas impostas por uma geração que acredita na fórmula certa para a construção da família perfeita. Nela, não cabem erros, fraquezas e vulnerabilidades – nem para os pais, nem para os filhos. Vivemos a era que teme o sofrimento e a insatisfação das crianças.
A rotina pesada do dia a dia, somada às ideias equivocadas de que amor nunca é demais e de que frustração desregula as crianças emocionalmente, tem invertido a lógica da dinâmica familiar. Fazer pelos filhos torna-se mais importante do que permitir que eles errem e se desenvolvam no tempo deles – essa é a cartilha da superparentalidade.
Ao assumir as pequenas tarefas e desafios dos filhos, perdemos a chance de encorajá-los e de oferecer suporte emocional frente às adversidades e aprendizados da vida.
Criamos tanta culpa e desconexão com nossas crianças e, por outro lado, assumimos o controle de tudo – inclusive das pequenas atividades cotidianas que elas já são capazes de desenvolver sozinhas, como vestir-se, comer, amarrar os tênis, tomar banho ou preparar seu lanche. Quando o amor e o cuidado tornam-se desmedidos, sufocamos e interditamos os indivíduos em seu processo de desenvolvimento natural e necessário.
Segundo Neumann, é preciso saber diferenciar o mimar “verdadeiro” do “falso”, da mãe-bruxa que atrai a criança para sua casa de chocolate. “Mimar […] não produz distúrbios sérios, até tornar-se necessário para a criança afrouxar os laços com a mãe, e esse processo é impedido ou prevenido pelo fato de a mãe ter mimado o filho” (1995, p. 54, grifos meus). Nesse caso, o mimo não saudável gerará um processo de dependência e codependência, afetando diretamente o desenvolvimento da criança. Vale ressaltar que podemos ampliar tranquilamente esse conceito, designado por Neumann à mãe, para todos que exercem a parentalidade.
O mimo que ultrapassa a primeira infância priva as crianças de se desenvolverem a partir de inibições, contradições e frustrações – dinâmicas fundamentais para que, no futuro, esses indivíduos sejam capazes de suportar a tensão psíquica entre o consciente e o inconsciente.
“A capacidade de uma criança aceitar restrições com relativa facilidade depende de uma capacidade de se integrar, de formar um ego integral e um eixo ego-Self positivo” (NEUMANN, 1995, p. 57-58).
Na perspectiva junguiana, compreendemos que o receio que os pais têm de que seus filhos se frustrem fala mais sobre eles mesmos do que sobre as crianças. É uma dinâmica psíquica sutil que reforça ainda mais a dependência emocional – a princípio natural e necessária entre filhos e pais –, mas que se torna disfuncional quando não é superada ao longo do desenvolvimento infantil.
Sobre a psique da criança, Jung diz:
A criança tem uma psicologia singular. Assim como o seu corpo, durante a vida embrionária, é uma parte do corpo materno, também sua mente, por muitos anos, constitui parte da atmosfera psíquica dos pais. Este fato esclarece de pronto porque muitas das neuroses infantis são muito mais sintomas das condições psíquicas reinantes entre os pais do que doença genuína da criança. Apenas em parte a criança tem psicologia própria; em relação à maior parte, ainda depende da vida psíquica dos pais (2021, p. 84).
Para a psicologia analítica, o desenvolvimento da personalidade pressupõe a diferenciação entre a psique dos filhos e a de seus pais no caminho do adultecimento, permitindo o processo de individuação de cada um ao longo da vida. “[…] apegar-se demasiadamente aos pais é desnatural e doentio […]” (JUNG, 2021, p. 85).
Sobre a individuação, Jung afirma que é um processo que nunca chega ao fim, mas é o caminho para nos tornarmos seres únicos, realizando nossas potencialidades:
“A individuação, portanto, só pode significar um processo de desenvolvimento psicológico que faculte a realização das qualidades individuais dadas; em outras palavras, é um processo mediante o qual um homem se torna o ser único que de fato é” (2020, p. 64).
Ao limitarmos nossas crianças em seu processo de amadurecimento físico, emocional e cognitivo, causamos um interdito na passagem da infância para a adolescência e, depois, para a vida adulta.
“Aqueles que passam conscientemente pela transição trazem mais significado à sua vida. Os que não passam permanecem prisioneiros da infância, não importa o sucesso aparente que possam ter na vida” (HOLLIS, 2023, p. 9).
A superparentalidade tornou-se um sintoma que evidencia o peso e as expectativas geradas sobre a criação dos filhos, trazendo impactos negativos para toda uma geração – da infância à adultez.
À medida que nos desconectamos dos instintos maternos e paternos, perdemos a capacidade de observar, respeitar e favorecer o desenvolvimento das etapas da vida humana, que acontecem a partir de experiências boas e ruins. Privar crianças e adolescentes de frustrações e tristezas não os torna mais felizes ou amorosos – pelo contrário. No entanto, oferecer suporte emocional, acolhimento e segurança durante situações difíceis favorece a formação de indivíduos mais seguros e autônomos, além de fortalecer ainda mais o vínculo familiar.
Podemos até concluir que a personalidade adulta não examinada é um agregado de atitudes, comportamentos e reflexos psíquicos ocasionados pelos traumas da infância, cujo objetivo fundamental é controlar o nível de sofrimento experimentado pela memória orgânica da infância que conduzimos dentro de nós. Podemos chamar essa memória orgânica de criança interior, e nossas várias neuroses representam estratégias inconscientemente desenvolvidas para defender essa criança. (A palavra ‘neurose’ não é usada aqui no sentido clínico, e sim como termo genérico para a divisão entre a nossa natureza e a nossa aculturação) (HOLLIS, 2023, p. 13).
Ao adotarmos a superparentalidade como modelo, formamos uma geração de jovens adultos infantilizados e incapazes de fazerem por si mesmos o básico. De forma mais ampla, esse comportamento parental poda a possibilidade de desenvolvimento cognitivo e emocional, criando indivíduos desconectados de suas emoções, sentimentos, necessidades básicas e sem condições de compreender o outro em suas vulnerabilidades e deficiências – ou seja, incapazes de praticar empatia.
O afeto desmedido – ou a falta dele – está inexoravelmente ligado ao desenvolvimento emocional de crianças e adolescentes e à sua capacidade de, no futuro, tornarem-se adultos emocionalmente regulados.
A autonomia que os indivíduos terão na fase adulta é desenvolvida ainda na infância, por meio da participação em tarefas domésticas, no cuidado de suas próprias coisas e de seu corpo. Essas habilidades são fundamentais para a autorregulação na vida madura.
A presença afetiva dos pais na vida dos filhos é preponderante para o desenvolvimento psíquico da criança. No entanto, é fundamental que essa presença sofra modificações ao longo do tempo. A influência dos pais precisa diminuir para que os adolescentes conectem-se com outros pares, vivam novas relações, diferenciem-se do ambiente familiar e descubram sua identidade na vida adulta.
Clarisse Grand Court – Analista Junguiana em Formação do IJEP
Maria Cristina Mariante Guarnieri – Analista didata do IJEP
Referências:
HOLLIS, James. A passagem do Meio: da miséria ao significado da meia idade. 1 ed. São Paulo: Paulus, 2023.
JUNG, Carl Gustav. O desenvolvimento da personalidade. 13.ed. Petrópolis: Vozes, 2021b.
_____, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. 27.ed. Petrópolis: Vozes, 2020.
NEUMANN, Erich. A Criança: Estrutura e Dinâmica da Personalidade em Desenvolvimento desde o Início de sua Formação. 10.ed. São Paulo: Cultrix, 1995.
Obradović, Jelena. Supporting Children’s School Readiness. IN: Stanford University. https://bingschool.stanford.edu/news/supporting-childrens-school-readiness-jelena-obradovic . Acesso em 28 de abril de 2025.
TEPPER, Deana L.; HOWELL,Tiffani; BENNETT, Pauleen.(2022). Executive functions and household chores: Does engagement in chores predict children’s cognition? In: Australian Occupational Therapy Journal. https://www.researchgate.net/publication/360998732_Executive_functions_and_household_chores_Does_engagement_in_chores_predict_children’s_cognition . Acesso em 28 de abril de 2025.