“Os silêncios me praticam”.
(Manoel de Barros, Biblioteca Manoel de Barros)
No mês de abril do corrente ano, fui contaminado pelo Covid-19. E acabei vivendo uma experiência importante. Entre os vários sintomas comuns da doença: tosse, febre, dores no corpo, dificuldades para respirar, uma dor de cabeça quase insuportável, cansaço extremo etc. Fiquei cinco dias sem conseguir dormir à noite. Apenas conseguia dar pequenos cochilos durante o dia. E o que acontecia que não conseguia dormir? Quando à noite todos na casa se aquietavam e se recolhiam e eu tentava fechar meus olhos para pegar no sono – eu tinha muito sono, estava exausto, mas não conseguia dormir – uma voz ensurdecedora acordava dentro de mim. Falava muito alto, fazia muito barulho. Era como se narrasse e descrevesse meus pensamentos em um volume altíssimo, às vezes tinha a sensação de que o barulho era externo e que também os outros ouviam, mas não, era dentro de mim. Abria os olhos levantava da cama e algumas vezes caminhava de um lado para outro no jardim de casa durante a madrugada. Quando pela porta de vidro do quarto via os primeiros raios de sol sentia um alívio, e, os sons do dia acalmavam a voz. Exausto, dormia por alguns minutos e seguia com o dia e os cuidados que a doença exigia. Mas sabia que a noite cairia de novo e temia o retorno daquela experiência.
Por três noites permaneci nesta luta, tentando em vão calar a voz ou mesmo ignorá-la. Resolvi então escutar seja o que fossem esses barulhos, o máximo que eu aguentasse, sem fugir ou me distrair. No começo foi muito difícil suportar tanto barulho. Pensei que iria enlouquecer e muitas vezes chorava de desespero. Era a farra dos complexos! Mas curiosamente, aos poucos o volume foi abaixando. Vez por outra aumentava, mas agora oscilava e permanecia mais branda. Tentava entender o que estava acontecendo, ouvir o que essas vozes diziam, se teria alguma mensagem para compreender, mas nada. Eram sensações incompreensíveis. Entreguei-me então a apenas sentir. Experimentava um desespero.
“O complexo rouba do ego luz e vitalidade” (JUNG, 2012, p. 569, § 1.067). Assim atuavam essas vozes, como complexos autônomos, deixando um rastro de cansaço, incompreensão, confusão mental. Pois o ego em vão tentava resistir, dominar e entender o que estava ocorrendo. Os livros e as séries de tv que na pandemia foram companheiros em muitos momentos eram inúteis. Não era possível compreender o que se lia e as vozes dos personagens dos seriados apenas aumentavam a sensação de confusão mental. Só restava fazer “nada”.
A partir da quarta noite, mesmo sem conseguir dormir ainda, o barulho e a confusão mental eram menores, o que estava mais presente era o medo de que tudo aquilo retornasse. Tentei escrever, registrar a experiência, mas não era possível. Aos poucos fui me entregando. Soltando meu corpo, sem tentar fazer coisa alguma, registrar nada, apenas ficar com aquele momento. Até porque não conseguia mesmo. E fui então me dando conta de um silêncio. Não era um silêncio que vinha de fora, mas de dentro da mesma forma que aquelas vozes ensurdecedoras. Estranhamente me sentia em paz. Algo que nunca tinha sentido antes.
A angústia tão presente e forte foi diminuindo à medida que eu ia podendo sentir aquele silêncio. De um barulho ensurdecedor fui levado para uma necessidade de ficar quieto. E as noites, aos poucos, deixaram de ser angustiantes alternando-se em momentos de sono e de silêncios.
Não sou muito afeito ao silêncio…ou pelo menos não era até então. Os que me conhecem e convivem comigo sabem da minha necessidade de falar, seja com a boca, seja com as mãos que muitas vezes falam mais que a boca e se atrapalham todas. No entanto, esta experiência me levou a perceber um silêncio em mim. Acalmando e desacelerando o ritmo interno e me ajudando a ficar mais presente no aqui e agora.
Não tenho dúvida o quanto ter vivido isso nestes dias me preparou para o que viria mais tarde. No oitavo dia da doença meus sintomas pioraram muito. Meus pulmões ficaram acometidos e fiquei fisicamente prostrado, mas internamente me sentia estranhamente sereno. Em seguida, minha esposa que também estava contaminada, aliás estávamos os quatro em casa contaminados, teve uma piora muito grande e teve que ser internada. Isolado e sem familiares, pois residem em outro estado, fiquei em casa cuidando de mim e dos filhos que estavam assintomáticos. Externamente a vida estava um caos. Mas aquela experiência de silêncio interno me serenava e me dava uma certeza não racional que tudo daria certo no final. E deu. Estamos todos recuperados, vacinados e seguindo a vida, que óbvio, não foi mais a mesma.
Desta experiência surgiu o interesse de estudar um pouco mais sobre o silêncio, é isso que compartilho a seguir. Nesta jornada, além do nosso velho e bom Jung e sua teoria, outros dois encontros foram significativos, Alsem Grun, um monge beneditino e Manoel de Barros com sua poesia. O primeiro ajudou percorrer um caminho no silêncio e aprofundar através de técnicas e práticas. O segundo, com sua poesia das coisas inúteis, vem provocando uma inversão do olhar e promovendo um aprofundamento no silêncio do mundo do chão, do vil, do cisco, enfim, do que realmente vale à pena na vida. Encontrar o poeta e sua poesia vem proporcionando um resgate pessoal.
No entanto é significativo destacar que esta reflexão só foi possível quando a atitude de vivenciar o sofrimento daquele momento foi aceita. Ou pelo menos não foi mais possível fugir daquela angústia e só restou suportar. Neste sentido as palavras de Jung dão um significado à experiência:
“Creio que o sofrimento é parte essencial da vida humana, sem o qual jamais realizaríamos coisa alguma. Sempre procuramos fugir do sofrimento. Nós o fazemos de milhares de formas diferentes, mas nunca o conseguimos de todo. Por isso cheguei à conclusão de que deveríamos tentar, se possível, encontrar ao menos um caminho que possibilitasse às pessoas suportar o sofrimento inevitável que é o destino de toda existência humana. Quando alguém consegue ao menos suportar o sofrimento, já realizou uma tarefa quase sobre-humana. Isto pode proporcionar-lhe um certo grau de felicidade ou satisfação” (JUNG, Cartas, Vol. 1, p.247).
Ao buscar no dicionário o significado da palavra silêncio, fui surpreendido pelo seu antônimo: agitação. Ou seja, o silêncio não é uma ação, uma atitude ou uma produção do ego, pelo contrário, ele emerge de uma diminuição da ação, uma quase não-ação.
Quando se para, quando se diminui os movimentos e a agitação, o silêncio se faz presente. Ele está em nós (GRUN, 2014). Logo, a fantasia de produzir o silêncio é mais um barulho, um engano do ego. A ele não cabe a produção do silêncio, ao contrário, ele é perito em produzir barulhos, ruídos, explicações e narrativas. Ao ego cabe ser conduzido para o silêncio. Permitir-se introduzido no mesmo. Uma atitude de reverência e um adentrar aos mistérios das coisas, do mundo e da vida. Através desta experiência, deste mergulho interno no “nada” cria-se a condição da possibilidade da manifestação do inconsciente e desta forma, “desloca-se o centro de gravidade do ego para o Si-mesmo” (JUNG, 2013, p. 124), promovendo uma vivência, primeiro assustadora e desconcertante, antes de buscar o entendimento e a compreensão.
Mas como fazer esta experiência do silêncio em tempos tão barulhentos, quando todo mundo quer falar, falar e falar mais, fazer lives, dar explicações, soluções rápidas e imediatistas? Como encontrar com o silêncio em um mundo cada vez mais dominado pelos discursos e opiniões fartas, sem conteúdo e sem reflexão? Como falar em silêncio em uma cultura do entretenimento, da profusão de imagens frenéticas, onde tudo tem que ser divertido, facilmente palatável e superficial, para não perder tempo? Eis o desafio!!
Porém, é interessante observar que para experimentar o silêncio não é necessário estar ausente da vida e do cotidiano. Não é obrigatório que se tire férias para isso. Nem mesmo que se vá para um mosteiro, uma praia, um campo. Se for possível, ótimo, mas isso pode ser apenas mais um clamor capitalista de consumo, fruto de uma “busca espiritual light commoditizada e aficionada no bem-estar e na ideia de felicidade”, como diz Ponde, 2018.
Sem dúvida que a solidão e o recolhimento podem facilitar a manifestação do silêncio. Mas ao mesmo tempo, a ausência de barulhos e ruídos externos podem muitas vezes apenas potencializar a algazarra interna. O que muitas vezes se apresenta como uma etapa do processo. Um caminho para sermos conduzidos ao silêncio é usar os sentidos:
“Para nos tornarmos livres dos muitos pensamentos que nos atormentam, devemos lidar com os sentidos de modo que eles nos conduzam ao silêncio. Eles concentram o espírito inquieto, restringindo-o ao corpo. Desde sempre os sentidos têm sido um fator importante – e central – na experiência divina, no que tange a perceber a vida. Esta percepção conduz ao silêncio. Enquanto nos entregamos a um sentido, ficamos livres da fixação aos contínuos pensamentos inquietos. Em nossos sentidos, ficamos plenamente conosco e em nós” (GRUN, 2014, p. 15).
Para realizar estes exercícios propostos pelo autor não é necessário muito esforço. Apenas sentir o mundo com todos os sentidos: ao centrar a atenção no sentido da audição, escuta-se todos os sons e através deles é possível escutar o silêncio das coisas e do mundo ao redor; com o olhar é possível participar da beleza do mundo, tornando-se um, participando por alguns instantes da comunhão com o mundo; com o olfato percebe-se os diferentes aromas do mundo, sua diversidade, além de poder ser transportado paras as memórias; “enquanto estou completamente absorvido no tato, alcanço a paz. Eu apenas sinto. Vivencio apenas o toque. Isso me torna silencioso. Quando me fixo totalmente no tato, eu toco em algo maior do que eu” (GRUN, 2014, p. 17). É possível tocar o intocável.
O silêncio verdadeiro é uma experiência de unidade. As diversas tradições religiosas têm em suas práticas este caminho para se chegar mais perto de Deus. A contemplatio é uma forma de se adentrar nos mistérios do silêncio. Consiste na disposição para não entender e assim poder estar em concordância com a existência. Não necessários ter visões, experiências incríveis, mas um olhar voltado para o fundo. “Lá nas profundezes, por baixo das turbulências e contrariedades deste mundo, eu sou uno com o fundamento de toda a existência, com Deus” (GRUN, 2014, p. 54). Ou dito de outra maneira, é possível fazer uma experiência de totalidade, um encontro ego-Self.
A repressão dessa prática contemplativa em nossos tempos, como se fosse uma atitude apenas de monges, distantes da vida cotidiana, da chamada vida ativa e ruidosa, acabou produzindo um cansaço e uma exaustão. Todo mundo diz que precisa parar, desacelerar, diminuir o ritmo. Mas, implementar esse desejo em tempos tão extrovertidos se faz um desafio. E aqui, outra vez o monge nos orienta, ressaltando a importância dos rituais na vivência diária:
“Os rituais nos possibilitam fechar as portas dos domínios do tumulto generalizado; só assim podemos estar plenamente lá onde somos, de fato, nós mesmos. Precisamos de espaços fechados para chegar ao espaço do silêncio interior” (GRUN, 2014, p.80).
Esses rituais podem ser práticas muito simples no cotidiano. Podem estar presentes em como se inicia o dia. Como se prepara para iniciar os trabalhos e os atendimentos no consultório. Como se recebe o paciente. A maneira como se faz as refeições etc. Enfim, cada um pode criar seus rituais, criar seus espaços que o conduzam ao silêncio.
Uma outra forma de acessar o silêncio interior e o silêncio do mundo é através da poesia. A linguagem poética é uma excelente condutora aos mistérios do silêncio:
“Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para o cisco.
A minha independência tem algemas”.
(BARROS, 2013)
Após se deparar com um verso desse é quase impossível não fazer uma pausa. O silêncio arrebata quase que instantaneamente o leitor e o coloca em um não-lugar, a um vazio e ao mesmo tempo em um centro. A poesia nos conduz ao mundo misterioso do não entendimento racional:
“Ao poeta faz bem Desexplicar —
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes”.
(BARROS, 2013)
Onde o que aparentemente sem sentido, ganha significados para além da ordinariedade da vida. No olhar e linguagem poética de Manoel de Barros um caminho se apresenta para fazer emergir o silêncio, a inversão do olhar. Ele convida a olhar para o chão, para o cisco, para as inutilidades da vida:
“Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras fatigadas de informar.
Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes”
(BARROS, 2013)
No entanto esse silêncio que emerge da sua poesia não é um vazio oco e sem sentido, mas pelo contrário, a poesia e a linguagem poética são capazes de fazer emergir o silêncio da abertura, o silêncio da possibilidade de se criar algo, a possibilidade do encontro consigo mesmo e assim encontrar-se com o outro e com o mundo.
Acredito que neste sentido, depois desta experiência, proporcionada pelo Covid-19 e extrapolada para as minhas leituras, sessões e sessões de análise e a construção deste texto, me possibilitaram dar mais um passo na busca de viver minha vida da melhor forma possível.
Adriano Luiz Pardo – Analista em Formação pelo IJEP
Ajax Salvador – Analista Didata
Referências
BARROS, Manoel Biblioteca Manoel de Barros [coleção]. São Paulo: LeYa, 2013.
GRUN, Anselm O Poder do Silêncio. 4ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
JUNG, C.G. Cartas, Volume 1. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
JUNG, C.G. Estudos Experimentais. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
JUNG, C.G. Psicologia e Religião Oriental. 9ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
Pondé, Luiz Felipe Espiritualidade para corajosos: a busca de sentido no mundo hoje. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018.