Escrevo rememorando um episódio de vida, ocorrido em 2008, quando vivenciei as projeções sombrias de um outro em mim, fazendo-me reconhecer que, para esse outro, eu estava funcionando como Narciso, por não o perceber da maneira que ele desejava ser reconhecido ou valorizado, transformando-o em Eco. Essa dinâmica arquetípica, narrada pela mitologia greco-romana, sempre aparece associada.
Essa pessoa, na realidade, atuava preponderantemente como um Narciso vaidoso e encantado com seus belos atributos. Nesta situação, enantiodromicamente, a polaridade é invertida, deixando-o identificado com seu polo opositivo que é a Eco. Porém, como não me afoguei encantado por mim mesmo, sem saber que era eu a imagem refletida no lago do inconsciente como aconteceu no mito de Narciso, mudamos de identificações projetivas e de narrativa mítica.
Provavelmente meu oponente migrou sua atitude Eco para uma espécie de Medeia raivosa e vingativa, transformando-me em Jasão traidor e ingrato, tentado destruir minhas crias, no caso os cursos que coordenava, e ocupar meu território. Ao me sentir ameaçando com os ataques e a invasão, acredito que passei a atuar como um Zeus territorialista, desferindo meus raios fulminantes sobre ele, agindo como um réptil, deixando despotencializado tanto meus aspectos límbicos quanto os neocorticais.
Todos nós temos os dinamismos e estruturas neuro cerebrais reptilianas, límbicas e neocorticais, que podem atuar na forma de complexos autônomos em nossa vida. Freud, com sua teoria calcada no princípio do prazer, hipertrofia da sexualidade e sua fantasia de controle territorialista, certamente, estava muito mais tomado pelas demandas reptilianas. Por isso rejeitava ler filosofias, compreender o fenômeno psíquico da religiosidade e ter empatia com as divergências opositivas, atitudes do sistema límbico e neocortical. É interessante rememorar que “meu oponente” era muito identificado com Freud, não só na teoria, mas na prática de vida, em busca de uma vida hedonista.
Como sempre, quando somos possuídos pelo complexo, não temos a menor percepção do que está acontecendo e da sua autonomia. Somente com distanciamento psíquico, as vezes temporal e espacial, que o processo da análise possibilita, é possível sairmos da reatividade cáustica da possessão do complexo para a sublimação alquímica. Só assim poderemos nos diferenciar do aspecto sombrio dominante e reconhecer que estávamos possuídos pelo complexo e o pelo jogo da sombra.
A sombra, para a psicologia junguiana, é um arquétipo e, como tal, é psicóide. Ou seja, ela transita tanto nas dimensões materiais quanto nas espirituais, sem pertencer a nenhuma delas, apesar de poder provocar grandes alterações por onde passa! Como todo arquétipo, ela não é absoluta, ou seja, não se prende a princípios morais e éticos do bem ou do mal, podendo destruir ou construir com a mesma naturalidade e intensidade.
“[…] a sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem despender energias morais. Mas nesta tomada de consciência da sombra trata-se de reconhecer os aspectos obscuros da personalidade, tais como existem na realidade. (Jung, C. G. CW 9/2 – §14)
A sombra é representante de grande parte do inconsciente humano e, por isso mesmo, incomoda as estruturas conscientes do ego, geralmente aprisionado em seus apegos e intimidado pela angústia existencial e pelo medo do novo. Com isso, egoicamente, geralmente tendemos a criar vários mecanismos de defesa para sentirmo-nos protegidos e confortáveis diante desta realidade psíquica que é a sombra. Dentre eles, os mais comuns são a negação ou a repressão da sombra.
A negação da sombra é o mais praticado inconscientemente pelas pessoas. Geralmente, quem nega a sua sombra não consegue reconhecer sua incompletude e acredita ser uma pessoa, ou uma persona, absolutamente correta, beirando a perfeição, apesar de sempre estar assombrada por algum sentimento de mal-estar, que rapidamente é justificado por algo do mundo externo. Jung sempre afirmava que toda sombra negada, inevitavelmente será projetada e pode virar destino. E as projeções geralmente provocam grandes movimentos de energia, despertando passionalidade em todas as partes envolvidas. Além disso, a sombra pode estar projetada de forma positiva ou negativa, ou seja, a pessoa pode ficar fascinada pelo outro tentado possuí-lo ou destruí-lo doentiamente – Amor ou ódio dependerá da influência que o conteúdo projetado provoque no projetor.
Na repressão, por sua vez, a pessoa já reconhece que existe dentro dela algumas potencialidades que lhe tiram da zona do conforto, desejos e pulsões não muito agradáveis, que podem provocar crescimento ou destruição, mas, de qualquer modo, produzem ansiedade e medo. Então, todo o conteúdo reprimido, que já ganhou algum espaço na consciência, pode virar sintoma de adoecimento e causar grandes estragos. Por isso Jung afirmava que a nossa sociedade, por ter “matado” os deuses, transformou-os em doenças. Esses deuses eram os representantes de toda potencialidade arquetípica da humanidade, revelando todos os excessos, aberrações, pulsões, instintos e sentimentos que povoam nosso inconsciente pessoal ou coletivo.
É atribuído a Jung a citação: “…o melhor trabalho político, social e espiritual que podemos fazer é parar de projetar nossas sombras nos outros”, apesar de ela não ser encontrada, literalmente, em sua obra, reflete seu pensamento. De fato, só por meio do autoconhecimento e da busca da integralidade, ou completude, que é bem diferente do que a perfeição, poderemos deixar de ficar à mercê das projeções e identificações sombrias.
“[…]é da natureza dos órgãos políticos sempre ver o mal no grupo oposto, assim como o indivíduo tem uma tendência inevitável de se livrar de tudo o que não sabe e não quer saber sobre si mesmo, forçando isso a outra pessoa. ” (Jung, C. G. CW 10 – § 576)
Os sintomas, por serem manifestações arquetípicas, também são psicóides e podem ser manifestados em todo o espectro luminoso da consciência, transitando livremente do infravermelho ao ultravioleta, passando pelas polaridades da forma, do vazio, da matéria, da energia, do instinto e da espiritualidade. Além disso, os sintomas, devido suas características psicóides, invadem, penetram, infiltram e provocam alterações e transformações, independentemente das questões do tempo e do espaço.
Como explicitei no texto, vivenciei as consequências de projeções sombrias que, na perspectiva de quem projetou, acabou por me fazer sair da identificação projetiva de um Narciso para a de um Zeus. O interessante, apesar de sofrido, é que toda essa manifestação foi e é inconsciente e nós só conseguimos reconhecê-la depois que o conflito perdeu a potência, porque enquanto nós estamos sendo dominados pelos complexos nos tornamos simples marionetes dele.
É interessante esclarecer que, na prática da psicologia analítica, fazemos associações com as narrativas mitológicas porque elas representam aspectos do inconsciente coletivo. A razão disso é porque os arquétipos pertencem a ele, enquanto as imagens arquetípicas ao inconsciente pessoal, assim como como os complexos possuem uma casca que é pessoal e um núcleo que é coletivo.
“Como eu disse, o confronto com o inconsciente geralmente começa no reino do inconsciente pessoal, isto é, de conteúdos adquiridos pessoalmente que constituem a sombra, e daí leva a símbolos arquetípicos que representam o inconsciente coletivo. O objetivo do confronto é abolir a dissociação. Para alcançar esse objetivo, a própria natureza ou a intervenção médica precipitam o conflito de opostos sem o qual nenhuma união é possível. Isso significa não apenas trazer o conflito para a consciência; envolve também uma experiência de tipo especial, a saber, o reconhecimento de um “outro” alheio em si mesmo ou a presença objetiva de outra vontade. Os alquimistas, com surpreendente precisão, chamavam essa coisa dificilmente compreensível de Mercúrio, conceito no qual incluíam todas as afirmações que a mitologia e a filosofia natural haviam feito sobre ele: ele é Deus, daemon, pessoa, coisa e o segredo mais íntimo do homem; psíquico e somático. Ele mesmo é a fonte de todos os opostos, já que é duplex e utriusque capax (“capaz de ambos”). Essa entidade indescritível simboliza o inconsciente em cada particular, e uma avaliação correta dos símbolos leva ao confronto direto com ele.” (Jung, C. G. CW 13- § 481)
De qualquer modo, agora, com distancia emocional e temporal, reconheço que no que diz respeito à minha relação com a pessoa que protagonizou essa história sombria, para ela, eu estava realmente agindo como um Narciso. Um indivíduo inerte e apático, encantado consigo mesmo, sem ter consciência disso, e que deixa os outros como ecos, desesperados e muitas vezes apaixonados pelo Narciso arrebatado com a sua própria imagem, sem saber que o reflexo espelhado no lago é ele mesmo.
Vale ressaltar que as pessoas identificadas com a imagem arquetípica de Eco sempre irão se encantar por Narcisos, constelando-os a qualquer preço. Pois, enquanto o Narciso fica entorpecido consigo mesmo, Eco, desesperadamente, tenta chamar sua atenção, muitas vezes abandonando sua interioridade e deformando sua exterioridade, sua persona, usando e abusando de plásticas, moda, cosmética, cartas anônimas – construtivas ou destrutivas – entre outros artifícios para despertar seus Narcisos interiores, projetados em alguém do mundo externo.
Porém, como o psiquismo tem plasticidade, a sombra pode ser projetada de uma forma e acabar provocando reações diferentes das esperadas pelo projetor. E, neste caso específico, em que Narciso estava projetado em mim, ele não morreu afogado no seu encantamento e acabou acordando do seu torpor identificado com o arquétipo de Zeus, um deus vingativo, possessivo e dominador, que dispara seus raios na direção de qualquer pessoa que venha interferir no seu reino. Na realidade, Narciso, Eco, Medeia, Jasão, Zeus e muitos outros deuses e heróis míticos, são potencialidades arquetípicas existentes na dinâmica psíquica de qualquer ser humano, e que estão prontas para entrarem em ação, independente do conhecimento que temos delas.
Essa é uma das grandes descobertas de Jung, ao nos apresentar o inconsciente coletivo, para que possamos nos engajar, conscientemente, ao processo de individuação.
A ignorância de si mesmo é escravidão, mesmo que o indivíduo tenha diplomas, títulos, riqueza material ou se julgue religioso, porque sua sombra, inevitavelmente, será projetada nos outros diferentes, agredindo-os e tornando-os em desiguais. Por isso estamos vendo tantas agressões nas redes de relacionamento, que deveria servir para refazer laços – re-laçar, assim como a religião deveria ser ligação com si mesmo, a Imago Dei em nós, para deixarmos a ilusão de perfeição em busca da completude, incluindo nossos aspectos sombrios, geralmente projetados nos outros.
Por isso, investir no autoconhecimento, para produzir a educação afetiva emocional, é cada vez mais importante e necessário para a saúde do indivíduo e da sociedade. Não adianta nada saber das coisas ou dogmas religiosos sem saber de si mesmo, agindo reativamente aos afetos, constantemente possuído por complexos em busca da sobrevivência ou manutenção da vida, na maioria das vezes, sem significado, sentido ou entusiasmo, agindo apenas com egoísmo e raiva defensivas.
Então, para não sofrermos tanto ou sermos pegos de surpresa, como aconteceu comigo, precisamos constantemente praticar o exercício da humildade de reconhecer nossa sombra, para lidarmos melhor com a sombra alheia e, na medida do possível, tentar integrar esses conteúdos sombrios na nossa consciência, alargando-a e ampliando nossa visão de mundo. Isso é o que os junguianos chamam de processo de individuação, um caminho do autoconhecimento, grande desafio proposto pelo Self, que geralmente é representado pela imagem de Deus em nós. O seja, para conhecermos nossos transtornos e patologias psíquicas devemos encarar nossa sombra. Só quem pode se confrontar com ela é que estará capacitado para lidar e aceitar a do outro, obviamente sem correr o risco de ser abusado ou desrespeitado.
A seguir coloco um trecho do livro: AO ENCONTRO DA SOMBRA (Zweig et All), que recebi da minha companheira Simone Magaldi e recomendamos:
A sombra coletiva
Hoje em dia, defrontamo-nos com o lado escuro da natureza humana toda vez que abrimos um jornal ou ouvimos o noticiário. Os efeitos mais repulsivos da sombra tornam-se visíveis na esmagadora mensagem diária dos meios de comunicação, transmitida em massa para toda a nossa moderna aldeia global eletrônica. O mundo tornou-se um palco para a sombra coletiva.
A sombra coletiva — a maldade humana — nos encara de praticamente todas as partes: ela salta das manchetes dos jornais; vagueia pelas nossas ruas e, sem lar, dorme no vão das portas; entoca-se nas chamativas sex-shops das nossas cidades; desvia o dinheiro do sistema de financiamento habitacional; corrompe os políticos famintos de poder e perverte o sistema judiciário; conduz exércitos invasores através de densas florestas e áridos desertos; vende armamentos a líderes ensandecidos e repassa os lucros a insurgentes reacionários; por canos ocultos, despeja a poluição em nossos rios e oceanos; com invisíveis pesticidas, envenena o nosso alimento,
Essas observações não constituem algum novo fundamentalismo a martelar uma versão bíblica da realidade. Nossa época fez, de todos nós, testemunhas forçadas. O mundo todo observa. Não há como evitar o assustador espectro de sombras satânicas mostrado por políticos coniventes, os colarinhos-brancos criminosos e terroristas fanáticos. Nosso anseio interior por integração — agora tornado manifesto na máquina de comunicação global — força-nos a enfrentar a conflitante hipocrisia que hoje está em toda parte.
Enquanto a maioria das pessoas e grupos vive o lado socialmente aceitável da vida, outras parecem viver as porções socialmente rejeitadas pela vida. Quando essas últimas tomam-se objeto de projeções grupais negativas, a sombra coletiva toma a forma de racismo, de busca de “bode expiatório” ou de criação do “inimigo”. Para os americanos anticomunistas, a U.R.S.S. era o Império do Mal. Para os muçulmanos, os Estados Unidos são o Grande Satã. Para os nazistas, os judeus são vermes bolcheviques. Para o monge asceta cristão, as bruxas têm parte com o diabo. Para os sul-africanos defensores do apartheid e os americanos da Ku Klux Klan, os negros são subumanos e não merecem ter os direitos e privilégios dos brancos.
O poder hipnótico e a natureza contagiosa dessas fortes emoções ficam evidentes na extensão e universalidade das perseguições raciais, das guerras religiosas e das táticas de busca de bodes expiatórios. E é assim que seres humanos tentam desumanizar outros, num esforço para assegurar que eles são superiores — e que matar o inimigo não significa matar seres humanos iguais a eles.
Ao longo da história, a sombra tem surgido (através da imaginação humana) como um monstro, um dragão, um Frankenstein, uma baleia branca, um extraterrestre ou um homem tão vil que não podemos nos espelhar nele — ele está tão distante de nós quanto uma górgona. Revelar o lado escuro da natureza humana tem sido, então, um dos propósitos básicos da arte e da literatura. Como disse Nietzsche: “Temos arte para que a realidade não nos mate.”
Usando as artes e a mídia (aí incluída a propaganda política) para criar imagens tão más ou demoníacas quanto a sombra, tentamos ganhar poder sobre ela, quebrar seu feitiço. Isso pode ajudar a explicar por que ficamos tão excitados com as violentas arengas de arautos da guerra e de fanáticos religiosos. Simultaneamente repelidos e atraídos pela violência e pelo caos do nosso mundo, transformamos na nossa mente esses outros em receptáculos do mal, em inimigos da civilização.
A projeção também pode ajudar a explicar a imensa popularidade dos filmes e romances de terror. Através de uma representação simbólica do lado da sombra,
nossos impulsos para o mal podem ser encorajados, ou talvez aliviados, na segurança do livro ou da tela.
As crianças, tipicamente, começam a aprender os assuntos da sombra ao ouvir contos de fada que mostram a guerra entre as forças do bem e do mal, fadas-madrinhas e terríveis demônios. As crianças, como os adultos, também sofrem simbolicamente as provações de seus heróis e heroínas e, assim, aprendem os padrões universais do destino humano.
Na batalha da censura que hoje se desenrola no campo da mídia e da música, aqueles que pretendem estrangular a voz da sombra talvez não compreendam sua urgente necessidade de ser ouvida. Num esforço para proteger os jovens, os censores reescrevem Chapeuzinho Vermelho e fazem com que ela não seja mais devorada pelo lobo; mas, desse modo, acabam deixando os jovens despreparados para enfrentar o mal com que irão se defrontar.
Como a sociedade, cada família também constrói seus próprios tabus, suas áreas proibidas. A sombra familiar contém tudo o que é rejeitado pela percepção consciente de uma família, aqueles sentimentos e ações que são considerados demasiado ameaçadores à sua auto-imagem. Numa honrada e conservadora família cristã, a ameaça talvez seja embriagar-se ou desposar alguém de outra religião; numa família liberal e atéia, talvez seja a opção pelos relacionamentos homossexuais. Na nossa sociedade, espancamento da esposa e abuso dos filhos costumavam ficar ocultos na sombra familiar, mas hoje emergem, em proporções epidêmicas, à luz do dia.
O lado escuro não é nenhuma conquista evolucionária recente, resultado de civilização e educação. Ele tem suas raízes numa sombra biológica, que se baseia em nossas próprias células. Nossos ancestrais animalescos, afinal de contas, sobreviveram graças às presas e às garras. A besta em nós está viva, muito viva — só que a maior parte do tempo encarcerada.
Muitos antropólogos e sociobiólogos acreditam que a maldade humana seja resultado do controle da nossa agressividade animal, da nossa opção pela cultura em detrimento da natureza e da perda de contato com a nossa selvageria primitiva. O médico e antropólogo Melvin Konner conta, em The Tangled Wing, que foi a um zoológico, viu uma placa que dizia “O Animal Mais Perigoso da Terra” e se descobriu olhando para um espelho.
WALDEMAR MAGALDI FILHO – Psicólogo, especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática e Homeopatia. Mestre e doutor em Ciências da Religião. Autor do livro: “Dinheiro, Saúde e Sagrado” Ed. Eleva Cultural – Coordenador dos cursos de Pós-Graduação que titula especialistas em Psicologia Junguiana, Psicossomática e Arteterapia e Expressões Criativas e do IJEP.