Acredito que seja algo óbvio que a situação da educação em nosso país vai de mal a pior. Essa é uma reclamação constante de praticamente todas as camadas da sociedade que, embora por motivos diferentes, acreditam que investir numa educação de qualidade é o caminho para a construção de um futuro melhor para o país. Porém, acredito que a pergunta central que devemos fazer é: o que é educação de qualidade? Lendo o Desenvolvimento da Personalidade de Jung me deparei com a seguinte passagem:
“Quanto mais débil é a consciência do “eu”, tanto menos importa considerar quem propriamente foi afetado, e igualmente tanto menos está o indivíduo em condição de proteger-se contra o contágio geral. Esta proteção apenas poderia ser atenuante se alguém fosse capaz de dizer: “Tu é que estás excitado ou furioso, e não eu, pois eu não sou tu”.” (JUNG, OC, Vol. XVII p. 83)
A afirmação de Jung é extremamente atual e aponta diretamente para um comportamento que podemos observar acontecer com certa frequência na nossa sociedade: a dificuldade do ser humano de se diferenciar da massa. Esse problema se apresenta de maneira circular. Não será possível ao indivíduo aceitar o outro, respeitar o diferente, se ele não consegue diferenciar a si mesmo. Sem saber o que é verdadeiramente seu, projeta no outro suas frustrações inconscientes. Por um lado, isso pode gerar uma identificação com uma população específica que concorda com seus pensamentos, e por outro pode causar conflitos, muitas vezes violentos, com quem pensa diferente. Cria-se assim um círculo vicioso no qual o indivíduo não sabe quem ele é de verdade e assim não consegue aceitar que o outro seja diferente. Na afirmação acima Jung estava exemplificando para explicar como a criança, ainda vivendo a participation mystique, ou seja, sofrendo influência direta do inconsciente do grupo de adultos onde está inserida, se sente. Mais adiante no texto ele irá dizer:
“Em geral se acentua muito pouco quão importante é para a criança a vida que os pais levam, pois o que atua sobre as crianças são os fatos e não as palavras. ” (JUNG, OC, Vol. XVII, p.84)
Ou seja, as crianças aprendem muito mais com as atitudes dos pais do que com o que estes acham por direito impor aos filhos através das palavras. E não estamos falando aqui somente das atitudes conscientes, mas principalmente do que está velado, escondido e/ou negado no inconsciente dos pais e responsáveis pela educação dessas crianças. Jung afirma também que os professores são tão responsáveis pela verdadeira educação das crianças quanto os pais: a escola caracteriza o primeiro ambiente que substitui a casa e a família. É extremamente importante que a crianças encontrem nesse ambiente figuras que influenciem o desenvolvimento total de suas personalidades e não somente os bombardeiem com informação atrás de informação. É importante então que os professores desenvolvam, além de suas atividades docentes, a sua própria e constante educação para servir de exemplo às crianças.
“Tal atitude não pode ser obtida artificialmente, mesmo com toda a boa vontade, mas somente se realiza de modo natural, à medida que o professor procura simplesmente cumprir seu dever como homem e cidadão. É preciso que ele mesmo seja uma pessoa correta e sadia; o bom exemplo é o melhor método de ensino. Por mais perfeito que seja o método, de nada adiantará se a pessoa que o executa não se encontrar acima dele em virtude do valor de sua personalidade. ” (JUNG, OC,Vol. XVII, p. 107a)
Muito se fala do quanto precisamos investir mais em educação, porém essa análise é baseada na maioria das vezes em números e gráficos que não representam de maneira alguma o principal problema da educação em nosso país. Estamos vivendo uma bola de neve da deseducação e a juventude está sendo atropelada e engolida por essa avalanche. O problema não está somente nos números, nos baixos salários dos professores, na falta de verba para equipamentos e no absurdo que é faltar merenda para as crianças nas escolas (ou em qualquer outro lugar, obviamente). É claro que todos esses fatores influenciam diretamente e agravam o problema em grau altíssimo. Porém, assistindo ao documentário Nunca me sonharam que fala sobre os problemas enfrentados pelos alunos da rede pública de algumas das principais cidades do país, podemos fazer uma reflexão acerca do problema que ultrapassa as questões financeiras e burocráticas. O filme, em determinado momento, mostra claramente como a falta de sonhos de um futuro melhor dos pais, responsáveis, professores, ou seja, de todos os educadores, está afetando a capacidade de sonhar dos jovens e crianças que estão sob a influência desses adultos. Sem um referencial para aprender a sonhar, será muito difícil que esses jovens construam uma realidade diferente para si mesmos e para suas futuras famílias. Como será possível aos pais, responsáveis, professores e quaisquer outros adultos envolvidos na formação dessas crianças sonharem qualquer futuro para elas se eles mesmos nunca foram sonhados por seus próprios pais e responsáveis? Como sonhar o outro se não se sabe sonhar a si mesmo?
Essas crianças se tornarão adultos desprovidos de capacidade de diferenciar-se do grupo, da massa. Nunca pensarão por si mesmos, apenas seguirão a correnteza sem nenhum poder de reflexão fazendo aquilo que a massa ditar. Agindo exatamente com o grupo age ou ordena.
Dei destaque até agora para os alunos da rede pública, porém também é preciso pensar em como a deseducação também acontece nas escolas privadas. Por motivos e causas diferentes, essas crianças ditas privilegiadas, se tornarão indivíduos afastados da reflexão e da dúvida, sendo estas condições essenciais para o desenvolvimento de pensamento crítico. As escolas privadas se preocupam, em sua maioria, com resultados apenas. O importante para elas são os números! Os alunos irão aprender somente a produzir e a obedecer e não a fantasiar e sonhar. De maneira alguma devemos pensar que uma coisa é mais importante do que outra. O ser humano que somente fantasia terá tantos problemas de desequilíbrio psíquico quanto aquele que só produz, e a causa está exatamente no desequilíbrio das duas atitudes. Cada uma deveria ter espaço para acontecer no comportamento humano, porém a sociedade atual reforça o comportamento produtivo muito mais do que o criativo.
Ainda estamos escravos da razão, do concretismo e do materialismo e isso está enraizado no nosso sistema educacional. O capitalismo desenfreado, o desejo de consumo, a energia voltada inteiramente para o objeto produzirá seres unilateralizados que no máximo serão capazes de viver a vida não vivida dos pais, porque estes últimos pelo menos tiveram sonhos para si mesmos e os projetaram em sua prole. Essas crianças, quando adultos, esquecerão seus sonhos, trocarão suas fantasias pela estabilidade financeira, pelo comodismo e pelo modismo. Sua libido estará assim totalmente voltada para fora, para o objeto. A introversão se perde e com ela a chance do encontro com si mesmo. Se as crianças de hoje são privadas de sonhos e aspirações, o que será das próximas gerações? Não terão nem como herança o desejo inconsciente de realizar o que os pais não puderam?
Vivemos hoje a cultura da informação superficial contrária a uma busca pelo aprofundamento. Apesar de todas as possibilidades de ampliação de conteúdos que o mundo virtual nos oferece, a maioria de nós se preocupa somente em compartilhar bobagens nas redes sociais, divulgar notícias sensacionalistas que normalmente não são de origens confiáveis. A educação baseada somente na informação produz indivíduos desprovidos de reflexão e espiritualidade. É preciso semear a reflexão!
A situação atual da nossa sociedade, o comportamento reativo e as reações violentas e exageradas frente ao diferente e ao desacordo que observamos nas notícias e algumas vezes até em pessoas próximas de nós, já é resultado dessa educação que não preza pela reflexão. O adulto de hoje acredita que sua educação acaba quando ele atinge certa idade ou certo grau de escolaridade. A partir daí acha que não é preciso mais estudar, não é preciso mais pensar. Está pronto para o mercado de trabalho, está pronto para se tornar mais uma peça na engrenagem do sistema e fazer sua contribuição para no nosso belo quadro social (parafraseando Raul Seixas). Quando na verdade o caminho do autoconhecimento exige estudo constante, de si e da sociedade. Nosso sistema educacional forma então indivíduos sem poder de reflexão, afastados de si mesmos que não conseguem nem entender os seus próprios desejos. Nesse interim, uma camada muito estreita da sociedade se beneficia da ignorância generalizada do povo.
“E para onde conduzem tais desejos confusos, mostram aqueles países em que os chefes de governo conseguiram usurpar os poderes paternos por meio de hábeis manipulações das esperanças infantis da massa sugestionável. Daí resulta que o empobrecimento espiritual, o aparvalhamento e a degeneração moral vêm substituir o entusiasmo anterior em estabelecer metas espirituais e morais, gerando desse modo a psicose das massas, que somente poderá terminar em catástrofe. ” (JUNG, OC Vol. XVII, p.159)
Sabendo que a situação da educação em nosso país já é bem ruim, e sem querer ser pessimista, acho que ainda cabe a pergunta: já estamos nessa catástrofe? Ou ainda há mais por vir?
Mas o principal aqui é perceber que qualquer que seja a resposta a essa pergunta, é preciso agir! Seja de forma social, familiar ou individual, é preciso investir numa educação de si e do próximo que contemple a reflexão. E respondendo à questão proposta no início do texto, educação de qualidade engloba pais, responsáveis, professores, diretores e todos aqueles que tiverem qualquer convívio com as crianças num esforço para ensinar conteúdos também, mas acima de tudo valores éticos e poder de reflexão através de suas próprias atitudes cotidianas.
*A foto é reprodução de uma cena do filme The Wall de 1982 da banda Pink Floyd.
*Jose Luiz Balestrini Junior, ser humano, psicólogo, analista junguiano em formação pelo IJEP e Sifu (mestre) de Kung Fu, e-mail: balestrini@lungfu.com.br
Atende e dá aulas na Zona Sul de São Paulo. Consultório: 11-98207-7766
Referências
JUNG, C. G., O desenvolvimento da personalidade (OC; Vol. XVII). Petrópolis: Vozes. (2013)