Zeitgeist é um termo que, em alemão, significa espírito do tempo. Ele marca, desde os românticos alemães, o conjunto do clima intelectual, social e cultural de certa época histórica, tendo ficado mais conhecido com uma obra de Hegel, Filosofia da História.
Não tenho graduação em filosofia nem falo alemão, mas me parece inegável que este termo nos ajude a pensar bastante a atualidade. Não ousaria dizer entendê-la, porque concordo com Jung quando ele diz que um dos métodos de compreensão fundamentais, ao menos em Psicologia, é o histórico. Em outras palavras, é preciso observar por um bom tempo a água correndo debaixo de uma ponte para se poder localizar com alguma precisão de onde ela vem e, sobretudo, onde vai desembocar.
Um exemplo: do ponto de vista mundial, porque estaríamos com os líderes que estamos? Nem é preciso assistir ao “debate” (sim, entre aspas, será que foi mesmo um debate ou uma briga?) entre os candidatos 2020 ao posto número um do governo da importante nação mundial para compreender o que os eleitores/as estadunidenses mais conscientes devem estar sentindo. Ou o que sentiremos em breve em nossas próprias eleições.
Tenho me perguntado muito o porquê de termos tido em nível mundial esta guinada para a direita, com os/as eleitores/as de sistemas democráticos elegendo líderes como os atuais (deixo aqui para cada um escolher o adjetivo que preferir para defini-los/las).
Do ponto de vista junguiano, a primeira noção que vem à cabeça é a de projeção. Estaríamos, portanto (e vou usar a terceira pessoa no plural intencionalmente), projetando conteúdos inconscientes nas lideranças eleitas.
Em Aion, Jung lembra que “a sombra se constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem dispensar energias morais” (JUNG, 2012, § 14).
Moral e, por extensão, moralismo, são palavras complexas. Afinal, um moralista não deixa de ser alguém que tenta reprimir nos outros o que ele/ela não consegue reprimir nele/nela mesmo/a. Hipócrita definiria melhor? Talvez. Mestre Houaiss nos lembra que em grego hupokritḗs, dentre outros significados, quer dizer intérprete, ator, de onde deriva fingimento, ser o que não se é.
Esta projeção coletiva, se percebida – e encarada – de forma consciente, poderia levar ao autoconhecimento. Claro que seria necessário, em geral, acompanhamento terapêutico e “trabalho árduo que pode se estender por um largo espaço de tempo” (JUNG, 2012, § 14).
Mais fácil para o indivíduo, então, seria deixar de lado noções como autonomia, tão caras aos estudos junguianos e outras escolas da psicologia, como as que lidam com aprendizagem (TAILLE; OLIVEIRA; DANTAS, 2019).
E não opor resistência à consciência de manada. Noção que, tomando emprestado do psicólogo francês Pierre Janet (1859-1947), Jung chamava de abaissement de niveau mental, em português rebaixamento do nível mental.
Trata-se do “esmagamento do eu por conteúdos inconscientes e a consequente identificação com a totalidade pré-consciente” (JUNG, 2012b, §430). Ele continua o parágrafo dizendo que esse fenômeno “possui uma prodigiosa virulência psíquica ou um poder de contágio e, por isto, é capaz dos mais desastrosos resultados (idem).
Convém sempre lembrar que esta obra – A natureza da psique –, fundamental para a compreensão da psicologia complexa, foi publicada pela primeira vez em 1948. E que nela Jung refletia sobre os “fenômenos psíquicos observados recentemente na Alemanha” (JUNG, 2012b, §430), isto é, durante a Segunda Guerra Mundial.
Se estamos a falar de bandos, também é preciso lembrar que primatologistas como o holandês Frans de Waal, que estudam o comportamento de chimpanzés, destacam que os machos (e fêmeas) alfa tem muitos atributos além da força física para se manter no cargo. Os mais importantes seriam a capacidade de solucionar conflitos por meio da manutenção da paz do bando e de confortar os demais integrantes que passam por algum tipo de situação difícil.
Uma palestra de Waal, autor de A era da empatia (WAAL, 2010), pode ser vista gratuitamente neste link: https://www.ted.com/talks/frans_de_waal_the_surprising_science_of_alpha_males?language=pt-br
Voltando à Jung, na mesma obra ele recomenda a quem se sente temeroso de entrar na vibe desta consciência de manada a empregar alguma medida compensatória da consciência do eu. “Eu aconselharia a quem se sente ameaçado por tais tendências a pendurar uma imagem de São Cristóvão na parede e a meditar sobre ela” (JUNG, 2012b, §430), sugere.
Quem pesquisar a história do grande (em tamanho) São Cristóvão pode perceber que se trata de uma metáfora usada por Jung para não deixar o ego inflar e se render ao self por meio do processo de individuação, “que não exclui o mundo; ao contrário, o engloba” (JUNG, 2012b, §432). E o caminho do autoconhecimento via introspecção é um recurso usado desde a aurora da Psicologia, que ajuda até hoje neste processo.
Reduzir um pouco o burburinho externo e se abrir para o mundo interior, da forma que cada um sentir ser o seu caminho, pode ser salutar para manter a saúde psíquica e estar apto / apta a exercer uma voz ativa e cidadã neste momento delicado da história da humanidade.
Para saber mais
JUNG, C. G. Aion: estudo sobre o simbolismo do si-mesmo (OC 9/2). 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012a.
JUNG, C. G. A natureza da psique (OC 8/2). 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012b.
TAILLE, Y. DE LA; OLIVEIRA, M. K. DE; DANTAS, H. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. São Paulo: Summus, 2019.
WAAL, F. DE. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.