Resumo: Este artigo toma como ponto de partida um símbolo recorrente nos sonhos: o rato, que surge em diversas cenas psíquicas do sonhador. Dada a variedade de associações, o símbolo comporta uma leitura subjetiva — fundada na perspectiva, nas emoções e nas vivências do sonhador — e uma ampliação — sustentada por associações impessoais, universais e arquetípicas. Carl Gustav Jung dedicou-se à análise dos sonhos; sua abordagem consolidou-se na clínica e opera nesses dois caminhos, sem jamais esgotar o símbolo nem reduzi-lo a sinal. Diferenciam-se, assim, a leitura causal (freudiana) da finalista (junguiana), sustentando o papel transformador da experiência simbólica. Ao convocar o imaginário criativo, a análise onírica revela seu poder transformador.
Palavras-Chave: sonhos; símbolo; análise; rato.
No mundo onírico de um sonhador, um personagem insiste em manifestar-se: o rato.
Para além dessa manifestação individual, ele também comparece em imagens culturais, na literatura e nos contos de fadas. Como símbolo, revela ambivalência: para alguns, suscita horror, medo e repulsa; para outros, evoca abundância, prosperidade e fecundidade.
O Dicionário de Símbolos aduz que o rato apresenta um simbolismo ambivalente, podendo representar tanto a impureza e a destruição quanto a fecundidade e a astúcia:
Esfomeado, prolífico e noturno como o coelho, o rato poderia, a exemplo desse outro roedor, ser o tema de uma metáfora galante, se não aparecesse também como uma criatura temível, até infernal. É, pois, um símbolo ctônico, que desempenha um papel importante na civilização mediterrânea, desde os tempos pré-helênicos, associado com frequência à serpente* e à toupeira*
CHEVALIER; GHEERBRANT, 2021, p. 847
Neste sentido, Clarice Lispector, no conto ‘Perdoando Deus’, descreve um momento sublime em que a narradora, sentindo-se conectada a Deus, experimenta horror ao deparar-se com essa criatura morta. Após o choque, reflete sobre como o rato também pertence às coisas criadas por Deus, chegando à síntese de que ele faz parte do mundo — e que é impossível amar a Deus amando apenas as criaturas graciosas. (1998, p. 41-45)
O deus Ganesha utiliza como montaria o camundongo Mushika. Na arte maharashtriana, era tradicional representar Mushika como um rato de grandes proporções, enquanto Ganesha aparecia montado sobre ele, como se fosse um cavalo.
Nessa perspectiva, nos contos de fadas, os ratos desempenham um papel similar. No conto Cinderela, na adaptação francesa de Charles Perrault (PERRAULT, 2021) assumem papel significativo, sendo transformados em cocheiro e cavalos, responsáveis por conduzir a protagonista até o baile.
O rato, como símbolo, também foi objeto de estudo de Freud em O Homem dos Ratos (FREUD, 1909, apud JUNG, 2013b, p. 445). Freud privilegia uma leitura causal em que elementos oníricos remetem a desejos recalcados e conteúdos sexuais/fecais, articulando o rato a conotações fálicas e anais.
Para o psicanalista, o animal — considerado impuro e que escava as entranhas da terra — possui conotações fálicas e anais, associando-se simbolicamente a noções de riqueza e dinheiro. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2021, p. 847).
Dessa breve apresentação, é possível notar que a imagem do rato evoca percepções contrastantes entre Oriente e Ocidente.
Enquanto nas tradições orientais o rato está frequentemente associado à prosperidade, inteligência e abundância, como no simbolismo hindu de Ganesha, onde ele é o veículo do deus da sabedoria. No imaginário ocidental a mesma figura costuma remeter à astúcia, horror, furtividade e degradação, como na expressão popular “rato de praia” ou “rato de porão”.
Essa dualidade revela como um mesmo símbolo pode se manifestar sob polaridades culturais distintas, expressando tanto o aspecto luminoso quanto o sombrio de uma mesma energia simbólica.
A presente exposição não pretende transformar este artigo em um glossário da imagem do rato; ao contrário, busca evidenciar as inúmeras variações pelas quais o rato se apresenta como símbolo. Nas palavras de Jung, a assimilação nunca é isto ou aquilo, mas sempre um isto e aquilo (JUNG, 2012, p. 39).
Essa é a principal característica do símbolo: ser isto e aquilo; carregar um aspecto consciente (isto) e um aspecto inconsciente (aquilo). Há sempre algo a mais — sempre o mistério, o enigma. O símbolo não é feito para ser decifrado; ele mobiliza e impacta. É a partir dessas ampliações que o símbolo possibilita a transformação do sonhador.
No cerne deste artigo está a divergência entre Freud e Jung: o modo como cada um compreende a imagem no sonho. Jung (cf. 2013b, p. 445), em A Vida Simbólica, critica as interpretações reducionistas da psicanálise, que tratam os símbolos como meras expressões de repressões infantis. Apesar de Jung reconhecer o mérito de Freud em não empreender nenhuma interpretação de sonhos sem a participação do próprio sonhador, pois as palavras não tem um sentido, mas muitos (2013a, p. 239).
Para Jung, o símbolo não se esgota em significados pessoais; antes, aponta para dimensões mais amplas da psique e da experiência humana.
Como demonstrado anteriormente, o símbolo do rato comporta várias leituras objetivas, sustentadas por associações impessoais, universais e arquetípicas, mas também possibilita inúmeras associações subjetivas, fundada na perspectiva, nas emoções e nas vivências do sonhador.
Aqui deparamos um fato extremamente importante para a tese de aplicação da análise dos sonhos: o sonho retrata a situação interna do sonhador, cuja verdade e realidade o consciente reluta em aceitar ou não aceita de todo. (…) Este representa a verdade e a realidade interiores exatamente como elas são.
JUNG, 2012, p. 25
Como no exemplo deste artigo, a partir do símbolo do rato é possível perguntar: temos pensamentos, sentimentos ou opiniões “ratos”? Há em nós algo pequeno que corrói? Há também algo ou alguém flexível? Alguém capaz de permanecer submerso sem se afogar, superar obstáculos, deslocar-se por túneis e passagens subterrâneas? Alguém que se torna um condutor?
Jung (2013b, p. 231), aduz que um sinal é sempre menos do que a coisa que quer significar, e um símbolo é sempre mais do que podemos entender à primeira vista.
Além disso, é necessário considerar toda a cena psíquica e indagar: em que local ele está inserido? Quem são os outros personagens? Como o rato se apresenta e o que ele faz?
A cena é a imagem, não apenas o rato e não se esgota em significados. Ela é símbolo: expressa algo que não pode ser inteiramente apreendido pela razão — algo inconsciente, transcendente, misterioso. O símbolo não explica; ele sugere, revela e abre sentidos mais profundos.
Por símbolo não entendo uma alegoria ou um mero sinal, mas uma imagem que descreve da melhor maneira possível a natureza do espírito obscuramente pressentida. Um símbolo não define nem explica. Ele aponta para fora de si, para um significado obscuramente pressentido, que escapa ainda à nossa compreensão e não poderia ser expresso adequadamente nas palavras de nossa linguagem atual.
JUNG, 2013a, p. 292
Jung também ressalta a importância de manter-se fiel à imagem onírica para compreender o sentido de um sonho, sobretudo quando o sonhador encontra dificuldade em realizar as inúmeras associações possíveis. Em A prática da psicoterapia (2012) ele demonstra como trabalhar, na clínica, as imagens dos sonhos.
Ele recomenda investigar com cuidado e pedir ao sonhador que descreva o objeto como se o analista jamais tivesse ouvido aquela palavra (por exemplo, “mesa de pinho”), a fim de estabelecer o contexto vivo da imagem onírica. Jung adverte contra interpretações apressadas: em vez disso, propõe aguardar e acompanhar as associações que emergem do próprio sonhador, explorando a história da imagem até que seu sentido psíquico se revele. (JUNG, 2012, p. 33).
Essa é a principal distinção entre analisar sonhos e interpretá-los. Na interpretação o símbolo se reduz a sinal.
O método, com efeito, baseia-se em apreciar o símbolo, isto é, a imagem onírica ou a fantasia, não mais semioticamente, como sinal, por assim dizer, de processos instintivos elementares, mas simbolicamente, no verdadeiro sentido, entendendo-se “símbolo” como o termo que melhor traduz um fato complexo e ainda não claramente apreendido pela consciência.
JUNG, 2013a, p. 20
Na análise, o símbolo não é decifrado: é vivido, aprofundado, escutado.
Jung foi explícito ao demonstrar sua resistência a reduzir símbolos na prática da análise dos sonhos, ainda que, em termos teóricos, existam símbolos relativamente fixos.
Pode parecer estranho que eu atribua ao conteúdo dos símbolos relativamente fixos um caráter por assim dizer indefinível. Se assim não fosse, não seriam símbolos, mas sim sinais ou sintomas. Como é sabido, a escola de Freud admite a existência de símbolos sexuais fixos – ou sinais neste caso – e lhes atribui o conteúdo aparentemente definitivo da sexualidade. (…) Por este motivo, prefiro que o símbolo represente uma grandeza desconhecida, difícil de reconhecer e, em última análise, impossível de definir.
JUNG, 2012, p. 40
Visões tão distintas quanto à essência da análise dos sonhos tornam patente as diferentes percepções de cada um sobre o material onírico.
Jung, em diversas passagens de sua obra, é explícito ao comparar como cada autor aborda os sonhos dos pacientes. A apreciação pode dar-se a partir de dois pontos de vista: causal ou finalista.
A concepção causal de Freud parte de um desejo, de uma aspiração recalcada, expressa no sonho. Esse desejo é sempre algo de relativamente simples e elementar, mas pode se dissimular sob múltiplos disfarces. (…) Por este caminho a escola freudiana chegou a ponto de interpretar – para citarmos um exemplo grosseiro – quase todos os objetos alongados vistos nos sonhos, como símbolos fálicos, e todos os objetos redondos e ocos, como símbolos femininos.
JUNG, 2013a, p. 195
Carl Gustav Jung acreditava que os sonhos não manipulam nem dissimulam.
Para ele, o sonho mostra o que precisa ser visto, contrapondo-se à visão de Freud. Na psicologia analítica, o símbolo onírico possui significado próprio; é pedagógico: ensina, orienta e amplia a consciência do sonhador:
Para este ponto de vista, a riqueza de sentidos reside na diversidade das expressões simbólicas, e não na sua uniformidade de significação. O ponto de vista causal tende, por sua própria natureza, para a uniformidade do sentido, isto é, para a fixação dos significados dos símbolos. O ponto de vista final, pelo contrário, vê nas variações das imagens oníricas a expressão de uma situação psicológica que se modificou. Não reconhece significados fixos dos símbolos, por isto considera as imagens oníricas importantes em si mesmas, tendo cada uma delas sua própria significação, em virtude da qual elas aparecem nos sonhos. Em nosso exemplo, o símbolo, considerado sob o ponto de vista final, possui mais propriamente o valor de uma parábola: não dissimula, ensina.
JUNG, 2013a, p. 195
Em análise, o saber do analista precisa ceder lugar à sabedoria do inconsciente. Só assim é possível descobrir o que cada imagem realmente quer dizer para o paciente e dar espaço para que o símbolo emerja.
Jung de maneira muito didática discorre acerca do tema:
Podemos formular a questão da seguinte maneira: Para que serve este sonho? Que significado tem e o que deve operar? Estas questões não são arbitrárias, porquanto podem ser aplicadas a qualquer atividade psíquica. Em qualquer circunstância, é possível perguntar-se “por quê? e “para quê?”, pois toda estrutura orgânica é constituída de um complexo sistema de funções com finalidade bem definida e cada uma delas pode decompor-se numa série de fatos individuais, orientados para uma finalidade precisa.
JUNG, 2013a, p. 192
Jung designou esse fenômeno inconsciente — que se exprime espontaneamente no simbolismo de longas séries de sonhos — como função transcendente (processo de individuação). Daí o aspecto finalista: os símbolos oníricos têm por escopo a evolução da personalidade, por meio da ampliação da consciência. (JUNG, 2013a, p. 244).
O paciente muitas vezes anseia por uma análise de sonhos “aplicável”, que forneça uma resposta imediata, um significado, e não apenas um sentido. O ego quer “fazer algo” com a imagem. Contudo, na psicologia analítica, o objetivo primeiro da análise onírica é a autorregulação da psique. Por isso, a compreensão não se restringe ao intelecto: o contato vivo com as imagens produz efeitos clínicos: transforma e amplia a consciência.
A este respeito, tenho a observar que a compreensão não é um processo exclusivamente intelectual, porque, como nos mostra a experiência, imensas coisas, mesmo incompreendidas, intelectualmente falando, podem influenciar e até mesmo convencer um homem, de modo sumamente eficaz. Basta lembrar, neste sentido, a eficácia dos símbolos religiosos.
JUNG, 2013a, p. 194
Portanto, é esse diálogo com o símbolo, essas vivências com as realidades interiores, que faz o olhar do paciente ampliar, os horizontes alargarem e se enriquecer. Colocando-o em contato com o verdadeiro autoconhecimento (cf. JUNG, 2013a, p. 244).
O trabalho analítico começa quando o analista abandona suas certezas e se dispõe a ouvir o sentido que as coisas têm na alma do paciente, não o que ele próprio acredita saber sobre elas.
Do ponto de vista clínico, o rato funciona como parábola: não dissimula, ensina. Quando a escuta analítica se mantém fiel à imagem e à sua ampliação, o símbolo promove autorregulação psíquica, assimila conteúdos do inconsciente para a consciência e favorece mudanças de atitude — aquilo que Jung denominou processo de individuação.
Jaqueline Carvalho – Analista em formação pelo IJEP
Ajax Salvador – Analista Didata IJEP
Referências:
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formar, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2021.
JUNG, Carl Gustav. Ab-reação, análise dos sonhos e transferência. Petrópolis: Vozes, 2012.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 2013a.
JUNG, Carl Gustav. A vida simbólica. Petrópolis: Vozes, 2013b.
LISPECTOR, Clarice. Perdoando Deus. In: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
PERRAULT, Charles. Cinderela / Cendrillon ou la petite pantoufle de verre. Tradução de Elisangela Maria de Souza. Organização de Regina Michelli, Flavio García e Maria Cristina Batalha. 1. ed. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2021.
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