O conceito de arquétipo é fundamental para a compreensão da Psicologia Analítica. O termo não foi cunhado por Carl Gustav Jung, mas foi utilizado por este para definir os moldes psíquicos.
Para Jung (2014, p. 81), em OC 8/2, §280:
Em outras palavras, devemos reconhecer a importância do conceito de arquétipo no que tange a compreensão da natureza humana. O arquétipo é um molde vazio em que as experiências pessoais e coletivas são arquivadas. A imagem arquetípica é a única coisa que o indivíduo pode acessar, sendo nutrido por suas experiências individuais.
Sobre esse tema, compreende-se, portanto, que existe um arquétipo de mãe. Esse arquétipo contemplaria a forma universal da figura materna com seus polos positivos e negativos. Na esfera positiva, poderíamos falar sobre o aspecto da Grande Mãe, muitas vezes associada mitologicamente à Gaia. E na esfera negativa, poderíamos associar à mãe devoradora, que aprisiona os filhos e interditam seu progresso, como Deméter.
Jung dedicou boa parte de suas obras completas debruçado sobre a importância do complexo materno na formação da psique do indivíduo. O complexo é um conjunto associativo de experiências do indivíduo com tonalidades afetivas, no qual reside um núcleo arquetípico.
O complexo materno é de suma importância, por ser o primeiro complexo a ser constituído. Quando nascemos somos indiferenciados com a mãe, sendo que conhecemos o mundo a partir dessa figura que cuida, alimenta e protege, na maioria das vezes assim deveria ser.
A figura singular da mãe real, pode vir a constituir um complexo materno negativo quando houver a identificação da mãe com a persona da vítima. A persona parte da identificação indistinta de um indivíduo com essa máscara usada para se adaptar ao mundo externo. Um arquétipo materno, quando vivido em sua esfera negativa, no caso dessa reflexão em particular, quando vivido sob a esfera do vitimismo materno, percebemos que a vítima sempre irá projetar o algoz no seu entorno relacional, manipulando com culpas e penas.
Sob a ótica dessa pretensa vítima, observamos em realidade uma mulher cheia de raiva, que projeta sobre o outro um arcabouço de mecanismos para controlar e devorar os filhos. A vítima, nesse caso, controla pela sua natureza de “não-responsabilização”. Em que o codependente (nesse ensaio proposto pela figura do filho/da filha) se torna fundamental na função de cuidar da mãe, olhar por ela, se penalizar pela situação.
Sobre esse assunto, Jung (2014, p. 94) ensina, em OC 9/1, § 167:
Nesse trecho, Jung nos convida a adentrar a psique de uma mãe devoradora, e compreender os aspectos inconscientes que torna sua atuação sobre os filhos violenta e dolorosa. Contudo, devemos ir adiante na análise, e observar que ao performar o papel da vítima, a mãe gera um dano tanto maior aos filhos. Para compreendermos como se dá a identificação da mãe com o papel da vítima, é importante observar, que estamos falando aqui do arquétipo da vítima, e como o arquétipo possui sua característica dual, as vítimas não existem sem os seus respectivos agressores.
Para Verena Kast (2022, p. 8): “O tema ‘vítima e agressor’ trata, de muitas maneiras, das relações entre poder e impotência […]” Sabemos que na Psicologia Analítica, devemos observar os pares de opostos para compreendermos a totalidade, sendo que a vítima e o agressor são dois polos de uma mesma coisa. Muitas vezes esses papéis são sequer bem definidos, permutando-se entre si.
O papel da vítima, reserva à mãe ao mesmo tempo uma postura de “evitadora de conflitos”, com sua habilidade de se retirar de situações potencialmente conflituosas, mas ao mesmo tempo, inconscientemente demonstra a tendência oposta. Quando elas se desculpam por não serem boas o suficiente, em realidade inconscientemente estão ocupando uma posição de superioridade em que creem ser melhor que os outros. Essa dinâmica tenta omitir uma verdadeira falta de autoestima e absoluta vergonha por suas origens.
Essa complicada dinâmica se estabelece, como ensina Kast (2022, p. 45):
Na sociedade contemporânea é fácil essas vítimas se esconderem por trás do papel de “humildes”, “altruístas” ou “bem-educadas”, porque uma pessoa é considerada boa se não se infla com os “autoelogios”. Contudo, se essa pessoa crê que nada nela tem valor, e nada nela é bom o suficiente, como podem seus filhos, suas próprias criações, ser bons o suficiente. Se a criadora se coloca numa posição de inferioridade (de forma consciente) perante os outros, como poderia crer que suas criaturas são dotadas de qualquer valor?
A situação se complica ainda mais se observarmos um caso de vitimismo velado, em que a mãe no caso é uma “esquecedora”, como nomeia Kast. A esquecedora, é uma das formas de manifestação do vitimismo, em que a pessoa simplesmente não presta atenção. Ela simplesmente concorda com tudo que dizem e se compromete a cumprir tarefas (sejam para os outros como a entrega de um trabalho, ou para si própria como cuidar de sua própria saúde). Contudo, inevitavelmente não cumpre nada do que se compromete. Quando são cobrados, simplesmente renegociam os prazos e mais uma vez não o cumprem. Essa pessoa não é percebida como agressiva, porém, mesmo assim trata-se de um comportamento agressivo. Em realidade, esse comportamento é “passivo-agressivo”.
Quando uma mãe se coloca nessa posição passivo-agressiva, ela acaba criando uma estrutura em que alguém (muitas vezes os filhos) acabam se tornando as pessoas “esquecidas”. Ou seja, cria-se um vínculo de co-dependência entre a pessoa que se esquece, e a pessoa que é esquecida. Não é incomum que a pessoa que é esquecida acabe se tornando a pessoa que organiza a agenda dessa mãe, que cuida de sua saúde, cobra rigorosamente os prazos que deve cumprir. Aqui vemos se consolidar um cenário em que o (a) esquecido (a) se torna um potencial “agressor”. Essa pessoa será percebida como agressora para a mãe vítima, por executar a função de cobrança. Constrói-se então uma relação de desconfiança entre as partes, em que o (a) esquecido (a) se sente constantemente sobrecarregado pela necessidade de executar as funções de cobrança e recai sobre ele (a) a culpa pelas falhas da esquecedora. Se os esquecidos por qualquer motivo que seja não estão constantemente em estado de atenção para todas as necessidades da esquecedora, eles serão percebidos como negligentes. Ao passo que, estar constantemente à par de todas as necessidades da esquecedora gera uma fadiga absurda.
Cabe mencionar aqui, que as pessoas que criam uma relação de co-dependência com uma pessoa esquecedora, tem maior propensão à desenvolver fadiga por compaixão. A função do materno que era de nutrir, proteger, cuidar, ensinar os limites, portanto, fica invertida, sendo desenvolvida pelos filhos. Nessa situação, a mãe fica, então, na posição de filha. Quando há essa inversão dos papéis, os filhos vivem em função da mãe, cansados pelo exercício da tentativa de controlar uma pessoa “esquecedora”, mas também esquecidos de suas próprias vidas, já que todo seu tempo é ocupado pelo cuidado com a mãe. Ao mesmo tempo, a mãe ocupa uma posição de filha, em que não se responsabiliza pelas coisas, e controlando os filhos a partir da figura de seu esquecimento.
A figura da mãe que “devora” os filhos por sua sede de ser o centro das atenções constantemente serve de interdito para o desenvolvimento deles. Contudo, essa mãe, se estiver absolutamente inconsciente de seus mecanismos, vai alegar que é somente uma pessoa esquecida e que precisa de ajuda. Se fizermos uma leitura à luz da Psicologia Analítica, podemos observar que se trata então de uma Puela Aeternus. Ou seja, a figura da criança que nunca cresceu. Puer aeternus significa “juventude eterna”. A figura da puela seria seu correspondente da psique feminina.
Para Marie-Louise von Franz, (2021, p. 9):
Se transportarmos esse conceito, aqui referido como aplicado ao homem, para a situação da mãe no papel de vítima, veremos que a mãe acaba transferindo essa relação essencial de dependência da mãe aos filhos. Os filhos então acabam se tornando alvo de uma projeção em que eles são os responsáveis pelo cuidado e manutenção dos desejos básicos dela.
Enriquece von-Franz (2021, p. 12):
Verifica-se, então, que a mãe “esquecedora” na verdade não tem o desejo de se responsabilizar por nada que demande seu posicionamento. É imensamente mais fácil ‘delegar’ a função de lembrar aos filhos, de forma que ela nunca se indispõe com os outros. Quando questionada ou pressionada, recorre ao discurso da vítima, em que se desculpa por seus esquecimentos e diz que não tornará a repetir essa atitude. Todavia, invariavelmente repete o comportamento, por se tratar de um padrão inconsciente, que acaba promovendo acolhimento e cuidado.
A pessoa que se esquece acaba evocando para si uma compaixão dos demais, e a solidariedade aos esquecimentos. As pessoas acabam se tornando proativas num primeiro momento para ajudar a pessoa em situação crítica. Quando o comportamento se repete demasiadas vezes, as pessoas menos próximas tendem a se afastar, e ser taxadas de cruéis, ou impiedosas, enquanto as mais próximas tendem a se envolver na dinâmica de “vítima-agressor”.
Num primeiro momento fica claro que a figura da vítima está sendo performada pela pessoa que se esquece. Porém, com o passar do tempo, o poder da esquecedora vai aumentando, e ela passa a se tornar uma agressora implacável. Da mesma forma, as pessoas que originalmente ofereceram ajuda de forma livre e espontânea, quando se tornam “cobradores” acabam se tornando agressores, tanto quanto prisioneiros da própria dinâmica.
Uma vez disposta essa dinâmica familiar disfuncional, percebe-se a necessidade de encontrar um caminho criativo tanto para a esquecedora, que precisa retomar a responsabilidade por seus atos e pela sua própria vida, quanto para os esquecidos, que precisam encontrar um caminho para permitir que a esquecedora se responsabilize. Ao mesmo tempo, é necessário que a esquecedora abra mão do controle que exerce em seus filhos, e os filhos precisam abrir mão do poder de controlar a agenda dos outros e focar em seus próprios desejos.
É difícil perceber um caminho fácil de saída dessa dinâmica, uma vez que quanto mais arraigada e inconsciente, mais fácil é de as pessoas estarem significativamente identificadas com seus papéis e com dificuldade de dar espaço criativo para essa “raiva” acumulada na relação.
Paula de A. Bernardi Peñas – Membro Analista em formação pelo IJEP
Dra. E. Simone Magaldi – Membro Didata do IJEP
Referências:
FRANZ, Marie-Louise von. Puer Aeternus. A luta do adulto contra o paraíso da infância. São Paulo: Paulus, 2021.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. 7. Ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11.ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
KAST, Verena. Abandonar o papel de vítima: viva a sua própria vida. Petrópolis: Vozes, 2022.