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A Consciência Metafórica da Albedo

A partir da percepção de que aos conceitos da psicologia junguiana vem sofrendo uma popularização que traz aspectos positivos, mas que também projeta uma sombra que pode ser maior do que imaginamos, o presente artigo propõe uma reflexão sobre a consciência metafórica da albedo. Em oposição ao monoteísmo da consciência que unilateraliza e literaliza tudo, inclusive os conceitos da psicologia de profundidade, faz-se necessário refletir sobre esse fenômeno com o objetivo de desenvolvimento de uma consciência lunar, paradoxal e metafórica que abarque tanto os elementos de Logos quanto de Eros.

A partir da percepção de que aos conceitos da psicologia junguiana vem sofrendo uma popularização que traz aspectos positivos, mas que também projeta uma sombra que pode ser maior do que imaginamos, o presente artigo propõe uma reflexão sobre a consciência metafórica da albedo. Em oposição ao monoteísmo da consciência que unilateraliza e literaliza tudo, inclusive os conceitos da psicologia de profundidade, faz-se necessário refletir sobre esse fenômeno com o objetivo de desenvolvimento de uma consciência lunar, paradoxal e metafórica que abarque tanto os elementos de Logos quanto de Eros.

RESUMO: A partir da percepção de que aos conceitos da psicologia junguiana vem sofrendo uma popularização que traz aspectos positivos, mas que também projeta uma sombra que pode ser maior do que imaginamos, o presente artigo propõe uma reflexão sobre a consciência metafórica da albedo. Em oposição ao monoteísmo da consciência que unilateraliza e literaliza tudo, inclusive os conceitos da psicologia de profundidade, faz-se necessário refletir sobre esse fenômeno com o objetivo de desenvolvimento de uma consciência lunar, paradoxal e metafórica que abarque tanto os elementos de Logos quanto de Eros.

Hoje, está claro, a maioria de nós não consegue fugir do poder hipnótico da luz que emana dos milhões de telas que carregamos para todos os lados junto conosco, grudadas aos nossos corpos como apêndices tecnológicos e artificiais. Não é difícil encontrar dados estatísticos que confirmam aquilo que conseguimos observar no dia a dia em nossos trabalhos, no convívio social e até dentro do núcleo familiar: o tempo de vida está sendo trocado pelo tempo de tela, o corpo abandonado e as relações sociais substituídas por simulacros virtuais. Tanta luz só pode lançar uma grande sombra e, como afirma Jung (2011c), exatamente por negar o direito de manifestação simbólica desse importante personagem psíquico, é que ele irrompe de maneira patológica. Não podemos esquecer de que na sombra encontramos tudo aquilo que não somos na consciência, conteúdos com os quais o ego não se identifica ou que não são acessados pelos motivos mais diversos. Por isso, quando ela irrompe através da manifestação disfuncional de complexos, é quase impossível contê-la e os resultados que surgem do fenômeno normalmente são catastróficos, tanto em termos individuais quanto coletivos. O ideal seria que caminhássemos em direção a ela de maneira volitiva e consciente, integrando alguns de seus aspectos e permitindo que ela se manifestasse simbolicamente através das fantasias, imaginações e expressões criativas (ZWEIG; ABRAMS, 1991). Porém, quando o que impera é a luminosidade absoluta, a sombra precisa se esgueirar para fora, para o mundo concreto, e isso acaba acontecendo de maneira sintomática.

Afirmamos então que o aprisionamento na/pela luz cegante do monoteísmo da consciência solar, masculina, yang, diferenciadora, categorizante e unilateralizante é uma das características da sociedade contemporânea. Esse tipo de consciência não pode simplesmente ser considerada negativa ou patológica per se, pois, possui funções importantes para a criação de uma consciência maior, paradoxal e metafórica que englobe os elementos de Logos e Eros. Criamos e enfrentamos problemas quando ela impera sobre todos os outros aspectos irracionais da psique, impedindo, através de uma luz cegante e incessante, que outras potencialidades se manifestem na vida do indivíduo.

C. G. Jung apontou como, em oposição enantiodrômica à encarnação de Deus em Cristo, era natural que o anticristo também se manifestasse, pois ele também é parte da totalidade, portanto, também expressão de aspectos do Self (JUNG, CARL GUSTAV, 2011a). Podemos encontrar alguns elementos desse fenômeno no Iluminismo que, deixando sua herança racionalista, elevou a deusa razão à condição de soberana (JUNG, C. G., 2011). O anticristo também é uma imagem arquetípica e, como tal, é símbolo e movimento, ou ainda, símbolo em movimento (BALESTRINI JR, 2023); ele continuará sempre fazendo uma força que parece contrária à evolução do ego tentando mantê-lo aprisionado numa existência inconsciente, pois este é o seu papel. Mas é exatamente esse conflito que serve ao ego e à criação de consciência que só pode acontecer através da experiencia da realidade da alma. Não podemos esquecer que mesmo Jesus precisou fazer a descida aos infernos e integrar aspectos sombrios individuais e coletivos para que pudesse sofrer a assunção. Como afirma o próprio Jung:

“O âmbito da integração é indicado pela descensus ad inferos, descida de Cristo aos infernos, descida cujos efeitos redentores abrangem inclusive os mortos (JUNG, CARL GUSTAV, 2011a, p. §72).

Resgatando as análises de Jung acerca da alquimia, podemos dizer de maneira resumida – e talvez reduzida – que o processo é composto por três fases principais: nigredo, albedo e rubedo (JUNG, 2018b). Para a presente reflexão, embora citemos rapidamente todas elas, iremos focar um pouco mais nossa atenção na albedo. A motivação para essa reflexão se dá, entre outros motivos, pela percepção de que na contemporaneidade vivemos uma popularização da teoria junguiana que, em nossa opinião, carrega aspectos perigosos. Ele mesmo alertou muitas vezes que somente o entendimento racional dos conceitos não caracteriza a experiência da realidade da psique (JUNG, 2015). Isso fica ainda mais perigoso quando os conceitos se tornam cada vez mais apenas palavras jogadas ao vento sem o aprofundamento experiencial que precisa acompanhar o processo de aprendizado psicológico proposto por Jung. Apesar de todas as críticas que podemos tecer, podemos dizer que o mesmo fenômeno aconteceu com a psicanálise freudiana, levando à mais confusões teóricas do que esclarecimentos. Se, por um lado essa popularização parece interessante porque demonstra um crescente interesse pela psicologia de profundidade, por outro, o fenômeno, que pode mostrar uma possível iluminação das experiências psíquicas através dos conceitos, carrega uma sombra enorme. Portanto, de nada adianta repetir clichês junguianos se estes não estiverem conectados com a experiência da realidade da alma. Sem o mergulho experiencial nas profundezas da psique, o processo não leva a nenhuma transformação comportamental significativa (HILLMAN, 1995).

É óbvio que precisamos de estudos conceituais profundos para que seja possível ampliar nossa percepção da realidade da psique, mas não podemos, a partir da teoria, simplesmente transformar a psicologia junguiana em mais um método terapêutico automatizado de prática clínica ou de entendimento da vida. Mais uma vez nas palavras de Jung: “(…) não se chega à claridade pela representação da luz, mas tornando consciente aquilo que é obscuro” (JUNG, 2018a, p. 280). Para que isso seja possível, além dos trabalho sério de pesquisa mitológica e etnopsicológica proposta por Jung, é necessária também a auto experimentação, somente assim compreenderemos verdadeiramente que os conceitos não passam de metáforas para as experiência imaginais (JUNG; SHAMDASANI, 2010). Quando não damos atenção e dedicamos tempo e energia para esse aspecto do processo, transformamos a psicologia analítica numa prática exotérica e não esotérica.

Retomando o assunto principal desse artigo, a brancura da albedo indica a purificação de Mercúrio, que não perde suas propriedades sombrias quando chega nesse estágio, mas ganha espiritualidade (JUNG, 2018a). Isso quer dizer que o caos e a confusão características da nigredo começam a sofrer transformações e, a partir do processo lento de destilação dos conteúdos, tem início a criação de consciência sobre os fenômenos e as experiências, sejam elas quais forem. Como todas as fases de desenvolvimento oferecem possibilidade de recuo e regressão, e estas caracterizam perigos e movimentos constituintes e muitas vezes necessários da jornada heroica arquetípica que o ego precisa viver nesse processo, pode acontecer uma paralisação, uma fascinação que aprisiona o indivíduo nessa fase de iluminação alva. O problema é que a iluminação não está completa e normalmente o que acontece aqui é um abandono dos elementos caóticos e desagradáveis da nigredo. Porém, esses conteúdos sombrios não podem ser descartados como se não fizessem mais parte da nossa estrutura total e, na ânsia de acabar com a angústia que eles causam, a pessoa os abandona ao invés de manter o demônio próximo de si. Porém, o caminho para a rubedo exige o reconhecimento da existência eterna desses aspectos sombrios da psique. Então se a consciência não aceita que eles continuem fazendo parte do processo, o que ocorre é um retorno surpraordenado e sintomático do indivíduo para a nigredo. Diz Jung:

“O retorno ao caos era considerado pelos alquimistas como uma parte da obra. É o estado da nigredo (negrura) e mortificatio (mortificação, morte), seguido do ignis purgatorii (fogo do purgatório) e da albedo (alvura)” (JUNG, CARL GUSTAV, 2011b, p. 260).

Talvez a identificação do ego com esse estágio intermediário de iluminação aconteça pela força numinosa que ele carrega. Na visão de Albert Camus, concordando claramente com Jung, isso acontece porque, quando passamos por esse tipo de experiência, confundimos nossa existência egóica com a grandiosidade da totalidade da alma humana (CAMUS, 1961). Isso caracteriza um estado de inflação que impede a continuação do processo. A albedo é uma fase de vivificação do que estava morto (JUNG, 2018a) e isso pode nos levar ao reconhecimento da pequenez do ego perante a totalidade ou à essa identificação patológica do mesmo com a totalidade à qual nos referimos. Nas palavras de Jung: “Trata-se, na verdade, do milagre que se dá com a fênix, isto é, uma transformação e um renascimento (transformação da negrura em brancura e da inconsciência em ‘iluminação’) (…)” (JUNG, CARL GUSTAV, 2011b, p. 113). Esse movimento ativa a imaginação e, se o ego consegue sustentar a atitude simbólica que supõe o conhecimento e a capacidade de aceitação de que sempre haverá algo desconhecido e sombrio sobre o fenômeno, a ampliação metafórica pode continuar acontecendo. Quando as imagens são interpretadas de maneira semiótica, literal e unilateral, o processo simbólico morre e a criação de consciência e o surgimento do tertium non datur que levariam o indivíduo para uma nova situação de vida ficam impedidos.

Uma das saídas para esse imbróglio está no reconhecimento de que a consciência da albedo não deveria ser literalizante, mas sim metafórica. Não é uma situação em que a imagem pode ser uma coisa ou outra, mas sim em que ela é uma coisa e outras; a albedo é a morada dos poetas, onde reina Hermes (BOSNAK, 1994). O mar que surge no sonho é o inconsciente, a grande mãe com suas forças criadora e devoradora. Um cão é o representante do diabo, mas também é puro Eros, com sua capacidade incondicional de amar seus donos. O ouroboros, o dragão que engole a própria cauda é a repetição do movimento do indivíduo aprisionado no pecado inconsciente e que acredita de maneira monoteísta somente na existência e supremacia de seu ego narcisista. Porém, a mesma imagem representa a criação da consciência através da destilação espiral alquímica que revela sempre novos significados para os fenômenos.

Arriscamos dizer que a iluminação da consciência literalizante é uma enganação, um truque da porção sombria da personalidade de Mercúrio que serve para manter o indivíduo aprisionado na nigredo sem nem saber que se encontra nessa situação. Mercúrio age assim com aqueles que não reconhecem uma de suas características mais importantes: a ambiguidade; querem ter sua brancura, mas negam seus aspectos sombrios. Pois não é possível que Mercúrio exista parcialmente, ele irá participar de forma integra, quer o ego aceite ou não tal fato. Na verdade, nos parece que quem governa nessa situação é a sombra mercurial que mantem a pessoa aprisionada na razão cega, o que, no fundo, é pura irracionalidade. Essa é a ironia de Mercúrio: negando e desprezando o irracional, o indivíduo acaba aprisionado por ele. Albert Camus afirmava que o contrário da inteligência é a razão cega (CAMUS, 1961), portanto, seremos inteligentes quando estivermos caminhando na direção da criação de consciência, missão fundamental do complexo de ego, personagem que, nessa situação, estará exercendo sua capacidade reflexiva e criativa (MAGALDI, 2009). E, mais uma vez, isso somente pode acontecer se estivermos em contato constante com a sombra, retornando quantas vezes sejam necessárias à nigredo.

A brancura total é essa razão cega, é a consciência iluminada por si mesma que não consegue se deixar ser invadida pela luz da escuridão que surge do inconsciente vivificado. O ego aprisionado no monoteísmo dessa cegueira branca, descrita brilhantemente e metaforicamente por José Saramago em seu Ensaio sobre a cegueira (1995), não consegue mergulhar na escuridão mais profunda da experiência psíquica, de onde pode emergir a luz de uma consciência conectada com a totalidade da psique, ou seja, com o Self ou a Imago Dei, a imagem primordial de Deus que existe em nós (BONAVENTURE, 1975).

Insistimos que a consciência solar não pode ser considerada automaticamente negativa, pois, como indicamos, ela possui funções importantes para o desenvolvimento da unilateralidade necessária que permite o foco e as construções e desenvolvimentos social, cultural e científico da humanidade. Essa é a consciência literalizante que se torna problemática quando acredita que somente ela existe. A lua é seu contraponto complementar, símbolo de um feminino que revela a verdadeira cor da luz do sol e do masculino. Durante o dia enxergamos a luz do sol amarela, laranja e as vezes vermelha. Quando ele está a pino, chegamos mais próximos da verdade e vemos sua luz quase branca. Pois a luz do sol seria, para o nosso aparelho visual, originalmente branca. A enxergamos diferentemente por causa da atmosfera terrestre. É a escuridão da lua que revela a verdadeira cor da iluminação solar. A imagem do encontro da luz do sol com a lua é um símbolo da coniunctio, do encontro do Yang e do Yin que unidos revelam o paradoxo transcendente do Tao. Essa imagem é ambígua pois traz a luz e a escuridão ao mesmo tempo. Essa é a consciência metafórica da albedo.

Por isso, sente-se, deite-se, desligue as telas e os aparelhos sonoros, feche os livros, apague as luzes e os olhos. Se deixe ser invadido pela quietude e silêncio ensurdecedores, mergulhe na escuridão mais profunda e, como diz um ditado taoista, “escute com os olhos e enxergue com os ouvidos”. Assim, a alma terá chance de iluminar, revelar movimentos, criar imagens que possamos ouvir e fazer barulhos que possamos enxergar. E, o mais importante, quando isso acontecer, não acredite ter encontrado categoricamente qualquer resposta para a experiência daquilo que chamamos de vida, pois somente as metáforas podem nos aproximar do que a totalidade da alma é, e o nome que damos a essa experiência, também não passa de mais um nome. Para encerrar esse ensaio, trago novamente as palavras de Jung em seu Estudos Alquímicos (2018a) quando ele explica o assunto que tratamos aqui:

“Pareceu-me oportuno portanto apresentar em detalhe os fenômenos psíquicos que estão à base da alquimia, assim como da psicologia moderna do inconsciente. Assim fazendo, tenho consciência e espero ter tornado isso evidente ao meu leitor de que uma compreensão puramente intelectual não seria suficiente. Nós nos contentamos assim de adquirir certos conceitos verbais, mas passamos ao lado de seu verdadeiro conteúdo, que consiste na experiência viva e impressionante do processo feito sobre nós mesmos. Não devemos entregar-nos a nenhuma ilusão quanto a isto: nenhuma compreensão de palavras, nenhum artifício da sensibilidade podem substituir a experiência verdadeira” (JUNG, 2018a, p. 374).

José Luiz Balestrini Junior – Analista Didata em Formação

Waldemar Magaldi – Analista Didata Responsável

Referências:

BALESTRINI JR, J. L. Sonho, Imagem, Imaginação e o Coração Onírico. São Paulo: Eleva Cultural, 2023. 256 p. 978-65-993921-5-3 

BONAVENTURE, L. Psicologia e vida mística: contribuição para uma psicologia cristã.  Editora Vozes, 1975.

BOSNAK, R. Breve curso sobre sonhos: técnica junguiana para trabalhar com os sonhos.  Paulus, 1994. 8534901287.

CAMUS, A. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo.  Livros do Brasil, 1961.

HILLMAN, J. Cem anos de psicoterapia e o mundo está cada vez pior.  Grupo Editorial Summus, 1995. 8532304591.

JUNG, C. G. Aion-Estudo sobre o simbolismo do si-mesmo (OC 9/2).  Petrópolis: Vozes, 2013f.(Original publicado em 1951) JUNG, CG Símbolos da …, 2011a.

JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis 14/1: Os componentes da Coniunctio; Paradoxa; As personificações dos opostos.  Editora Vozes Limitada, 2011b. 8532641261.

JUNG, C. G. A natureza da psique.  Editora Vozes Limitada, 2011c. 8532641342.

JUNG, C. G. Seminários sobre sonhos de crianças. Vozes, 2011.

JUNG, C. G. Sobre sentimentos e a sombra: Sessões de perguntas em Zurique.  Editora Vozes Limitada, 2015. 8532649246.

JUNG, C. G. Estudos alquímicos vol. 13.  Editora Vozes Limitada, 2018a. 8532658385.

JUNG, C. G. Psicologia e alquimia vol. 12.  Editora Vozes Limitada, 2018b. 8532658377.

JUNG, C. G.; SHAMDASANI, S. O livro vermelho.  Vozes, 2010. 8532639755.

MAGALDI, W. Dinheiro, saúde e sagrado. São Paulo: Eleva Cultural, 2009.

SARAMAGO, J. Ensaio sobre a cegueira.  Editora Companhia das Letras, 1995. 8543801214.

ZWEIG, C.; ABRAMS, J. Meeting the shadow: The hidden power of the dark side of human nature.  Penguin, 1991. 087477618X.

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