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A grande mãe brasileira, Aparecida

No momento da construção desse artigo estamos há poucos dias de comemorar mais um aniversário de Nossa Senhora Aparecida, e já vemos romeiros saírem de todas as partes do Brasil rumo ao município de Aparecida no interior do estado de São Paulo. Alguns em caravanas, alguns em família, outros sozinhos em sua fé, a pé, em busca de um encontro com o sagrado, em busca do acolhimento que a imagem dessa mãe dá, principalmente, ao povo brasileiro. 

Aparecida do Norte, como é popularmente chamada, recebe cerca de 9 milhões de visitantes ao ano. Sem dúvida o número cresce em outubro em virtude da festa da padroeira do Brasil. O dia 12 de outubro passou a ser oficialmente o dia dedicado à Nossa Senhora Aparecida em 1953, através de um decreto da Conferência Nacional de Bispos do Brasil. A data foi escolhida pela aproximação com a aparição da imagem em meados de outubro de 1717.

De acordo com textos do século XVIII, a vila de Guaratinguetá receberia o conde de Assumar, Dom Pedro de Almeida, que a essa altura era Governador da Província de São Paulo e Minas Gerais. A Câmara dos Pescadores ordena então que os pescadores da região providenciassem peixes frescos para fazer parte do banquete que seria servido ao conde e sua comitiva, que contava com cerca de 500 pessoas. Entre os vários pescadores da região, estavam João Alves, seu pai Domingos Garcia, assim como seu tio Filipe Pedroso.

Após inúmeras tentativas não conseguem nenhum peixe e começam a ficar temerosos, pensando nas possíveis consequências ao não cumprirem a ordem recebida. Resolvem então orar e pedir proteção a Maria, adormecem. Na manhã seguinte João lança mais uma vez a rede numa última tentativa, e para sua surpresa, encontra o corpo de uma santa, uma imagem de Maria, sem cabeça. Lança mais uma vez sua rede e traz a cabeça da santa. Apesar do receio de seu pai, João a guarda com todo cuidado. Jogam mais uma vez a rede, e a partir daí pescam tantos peixes que são obrigados a parar a pesca com o risco de afundarem pela quantidade de peixes. Eis aí o primeiro milagre! 

Filipe Pedroso leva a imagem para casa, sua esposa Silvana cola a cabeça ao corpo com cera de abelha e inúmeras pessoas da vizinhança passam a visitar a imagem da santa.

Já li esse relato sobre a aparição de Nossa Senhora Aparecida inúmeras vezes, mas até hoje me lembro do filme que assisti quando pequena, não me lembro o nome dele, nem quantos anos eu tinha na época, mas me lembro bem de como esse relato de fé me marcou, de como fiquei emocionada ao ver aqueles homens simples e desprotegidos recorrerem a uma mãe sagrada e serem atendidos prontamente por ela, e como eles honraram sua imagem. Me lembro das cenas com uma incrível clareza. Talvez tenha nascido aí minha intensa ligação com ela.

Em 1745 é inaugurada a primeira capela pelo padre Vilella. As peregrinações vão crescendo, sua fama se espalha. Anos mais tarde a imagem é presenteada com uma coroa e um manto dados pela princesa Isabel em agradecimento a uma promessa.

Nessa época o povo era muito oprimido, e sem dúvida a aparição de Nossa Senhora traz um alento. De acordo com o mariólogo Clodovis Boff “a Virgem Negra é uma imagem com a qual naturalmente se identificavam os escravos, assim como, em seguida, os oprimidos de toda a sorte”. Ela traz consigo esperança de dias melhores, de abundância, de felicidade e de liberdade.

Segundo Lucy Penna, psicóloga junguiana, em fases históricas em que os pobres se sentem desvalidos, podem surgir imagens como essa. “Elas trazem misericórdia, alento, compaixão e a inspiração para lutar pela dignidade perdida”.

A imagem pescada era de cor escura, porém peritos dizem que seu aspecto se deve ao fato de ter ficado no fundo do rio lodoso e depois por causa da chama das velas. Não há dúvidas de que a imagem pescada no rio foi inspirada na imagem da Imaculada Conceição, de Portugal. Há a hipótese de que ela teria sido feita por um discípulo do mestre ceramista Frei Agostinho da Piedade, por volta de 1650. Há vestígios que mostram que originalmente ela era pintada de vermelho e azul. De qualquer forma devemos levar em conta que a imagem mergulha nas profundezas do rio e se transforma para ressurgir do inconsciente das águas para fazer renascer a fé em tempos melhores. Ela ressurge como uma Madona Negra nascida da Grande Mãe, do útero escuro da própria Terra. Ela encarna o aspecto telúrico e ctônico, oposto-complementar a imagem de Maria, um feminino branco, celeste, perfeito e maternal, diz Eliana Athié, estudiosa de mitologias. Ela explica ainda que até hoje as Madonas Negras guardam alguns atributos. Trazem fertilidade, para a mulher e para a terra, protegem gravidez e parto, agem na transição dos ciclos da vida e da morte. São fonte de sabedoria intuitiva, de criatividade, de se criar maneiras não só de sobrevivência, mas também maneiras de evoluir. Sua força e poder vem dessa conexão com a Grande Mãe. Nossa Senhora Aparecida ao ressurgir do rio traz consigo esses aspectos que a colocam entre as divindades mais próximas da terra do que do céu, mais próxima dos sofrimentos de todo aquele que se sente de alguma forma abandonado.

Nossa Senhora Aparecida surge como um símbolo para atender a necessidade do inconsciente coletivo. Uma imagem arquetípica surge quando a consciência reconhece que conteúdos inconscientes precisam ser expressos, através de imagens. O mestre em teologia Anderson Santos diz que:

A  finalidade  da  imagem  é  representar  o  Mistério,  tornando-se  uma  forma  de “presentificação”, ou seja, é como uma “presença” a ser captada por meio da imagem e da aproximação do fiel que através dela também pode entrar em comunhão com o transcendente, já que ela recorda e permite o contato da pessoa com o protótipo, aquilo que a imagem / ícone procura representar, superando a dicotomia sagrado-profano que não são duas realidades completamente  distintas  ou  opostas,  mas  dois  níveis  da  única  e  mesma  realidade,  duas modalidades da experiência. (SANTOS, Andeson A., 2019)

            Para Marion Woodman, analista junguiana, a Madona Negra ou a Virgem são metáforas da dimensão sagrada da matéria. Elas personificam os valores que foram reprimidos e lançados a sombra. Para ela quando uma imagem assim emerge está apontando para a necessidade de lembrar a humanidade de seu compromisso com o pessoal e o coletivo, o compromisso com a Mãe Terra. Ela é negra não só por vir das profundezas da terra, mas por ser desconhecida da consciência.

          Para Neumamm:

Quando dizemos que os arquétipos e os símbolos são espontâneos e independentes da consciência, nos referimos ao fato de que o ego, como centro da consciência, não tem participação ativa nem intencional na formação e no surgimento do símbolo ou do arquétipo, isto é, que a consciência não pode “fazer” um símbolo nem “escolher” a vivência de um arquétipo. Isso não impede, contudo, uma relação entre o arquétipo ou o símbolo com a totalidade da personalidade, assim como com a consciência. Com efeito as manifestações do inconsciente não consistem meramente numa expressão espontânea de processos inconscientes, mas também são reações a situação da consciência da pessoa; essas reações são um fator de compensação assim como frequentemente ocorre conosco nos sonhos. Isto significa que o surgimento de símbolos e imagens arquetípicas também é em parte determinado pela estrutura tipológica e individual do sujeito, pela situação que atravessa, por sua atitude consciente, sua idade etc.

          Lucy Penna diz que Nossa Senhora Aparecida é um mito brasileiro, que foi sonhada pelo povo brasileiro. O mito nasce no momento em que os pescadores tomam a imagem nas mãos, reconhecem-na como uma santa católica e entendem que ela irá salvá-los. Ela é trazida até eles num momento histórico em que a psique das pessoas estava carecendo de proteção, misericórdia, alívio para suas dores, estavam se sentindo abandonadas e precisavam de colo de Mãe. Ele traz a amplitude da psique coletiva, Aparecida está dentro de nós, mas também extrapola as nossas mentes conscientes, por isso perdura e continua viva. E podemos perceber que ao longo das décadas nossa situação não mudou, continuamos precisando dessa proteção materna, por isso continuamos vendo tão viva a devoção tanto em Nossa Senhora Aparecida, como em outras representantes dessa Grande Mãe. Daí o mistério!

          Nossa Senhora Aparecida mobiliza milhares de pessoas de todas as maneiras imagináveis. Me lembro, na infância, de várias idas junto com minha família ao santuário de Aparecida pelos mais diversos motivos, fazíamos todo o percurso pela passarela que liga a igreja velha a catedral. Para uma criança a passarela me parece até maior do na verdade é, e minha cabeça ficava imaginando o que levava aquela multidão a atravessar todo aquele caminho de joelhos, com bebês no colo, idosos e todo tipo de dificuldades para ver a imagem de uma santa. Eu ficava parada diante da imagem original e olhava para minha mãe, meu pai e as outras pessoas emocionadas diante de uma imagem tão pequena e pensava, como uma senhora tão pequenininha tinha tanto poder, conseguia acalmar tantos corações que sofriam, trazia tanto alento, eu gostava de ficar ali, quietinha olhando para ela e imaginando quem era aquela, que mistérios ela guardava…naquele momento eu só sentia, e sentia entrar em mim uma paz, uma paz tão imensas que só uma Mãe pode nos dar. Mais tarde conheci seu sincretismo com outra Grande Mãe, Oxum, que na Umbanda é representada por essa mesma imagem e guarda os mesmos atributos de mãe protetora e acolhedora. Quando penso em Grande Mãe, para mim é essa imagem arquetípica que surge.

Nossa Senhora Aparecida é isso, nossa Grande Mãe Brasileira, cheia de mistério e graça!     

**Imagem produzida por Mike Villela. @inkedmike

Keller Villela – Membro Analista em Formação do IJEP

E. Simone Magaldi – Analista Didata Responsável

Referências:

NEUMAMM, Erick. A Grande Mãe, Editora Cultrix, 2006.

PENNA, Lucy. Aparecida do Brasil, a Madona Negra da Abundância, Editora Paulus, 2009.

SANTOS, Anderson A. A imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida em uma perspectiva simbólico-eclesiológica e mariológica, Mestrado em Teologia. São Paulo, 2019

WOODMAN, Marion. A Feminilidade Consciente. Editora Paulus, 2003.

https://www.revistaplaneta.com.br/nossa-senhora-aparecida-a-madona-negra-brasileira/ – acessado em 02/10/2021

https://yam.com.vc/sabedoria/792338/madona-negra-e-nossa-senhora-aparecida acessado em 02/10/2021

https://www.a12.com/academia/palavra-do-associado/viva-a-virgem-imaculada-o-senhora-aparecida – acessado em 02/10/2021

https://www.a12.com/santuario/festa-da-padroeira/historia-do-dia-12-de-outubro-1 acessado em 03/10/2021

keller Villela

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