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A pandemia e o novo humanismo

A PANDEMIA E O NOVO HUMANISMO PANDEMIA

– Introdução

Vivemos uma era de grandes transformações. A comunicação e a tecnologia transformaram o planeta. Levamos milhões de anos para nos adaptarmos à Terra e nos últimos 50 anos mudamos tanto o nosso redor que buscamos novas adaptações.

Se pensarmos no manejo do plantio e na alimentação, no transporte, nos meios de comunicação e no avanço da medicina e das ciências, poderíamos acreditar que chegamos no apogeu evolutivo. No Ponto Ômega no dizer de Teilhard Chardin.

Que humanismo vivíamos antes da pandemia que está mudando todas nossas relações? Poucos com tanto e tantos com tão pouco. Onde a fraternidade, a liberdade e a igualdade se escondiam? Numa terra tão promissora esquecíamos de tantos despossuídos, retirantes, desabrigados, famintos, prisioneiros de sistemas injustos e tantas mulheres violadas, crianças abandonadas…tanto sofrimento e nós, a maioria de nós, cegos para todos eles.

Vamos fazer um percurso através destes questionamentos.

– Humanidade e Humanismo

     Nossa humanidade está cega na alma, uma humanidade que mata e morre por desacordos egoísticos. Uns lutam em nome de Deus, como se fosse possível que Deus não fosse Uno. Outros lutam pelo poder. Carl Gustav Jung diz: “Pela lógica, o contrário do amor é o ódio; o contrário de Eros, Phobos (o medo). Mas, psicologicamente, é a vontade de poder. Onde impera o amor, não existe vontade de poder; e onde o poder tem precedência, aí falta o amor.” (Psicologia do Inconsciente, pár. 78). Grande verdade, poder e amor não coexistem. Um exemplo vivo é o Papa Francisco, embora seja o pontífice, o dirigente de toda Igreja Católica, segue aquele que lhe nomeou: São Francisco de Assis, o poverello, O Pobrezinho de Deus. Seu exemplo é maior que qualquer título que lhe possa ser outorgado, o Papa Vê, não é cego à fraternidade, a igualdade e a liberdade. Como diz Chardin, não basta ter olhos, é preciso saber ver. O Papa se faz presente com seu testemunho de fé. Ele não tem vontade de poder, mas tem muito amor. Um exemplo para a humanidade que se avizinha nestes novos tempos.

Mas como pensar a humanidade? Diz Chardin: “Humanidade: objeto de uma fé muitas vezes ingênua, mas cuja magia, mais forte do que todas as vicissitudes e todas as críticas, continua a atuar com a mesma força de sedução tanto sobre as almas das massas atuais como sobre os cérebros da `intelligenzia`. Quer se participe de seu culto, quer se ridicularize esse mesmo culto, quem pode, ainda hoje, escapar à obsessão, ou mesmo à ascendência da ideia de Humanidade?” (O Fenômeno Humano, pág. 278). A humanidade causa atração, sedução, mas e o humanismo, o que entendemos por isto?

O Humanismo surge na Itália por volta do séc. XIV como um movimento literário e filosófico e acaba por se espalhar por toda Europa e originou a cultura moderna. Se caracteriza também como qualquer movimento filosófico que considere como fundamento a natureza humana e os limites e os interesses do homem. Ao longo da história vários autores alteram ou acrescentam ideias a este conceito que começa lá em Protágoras: “o homem é a medida de todas as coisas”. (in Diccionário de filosofia, Nicola Abbagnano)

Qual os limites e interesses do homem do séc. XXI? Somos tão heterogêneos. Tão distintos em cultura, moral e política…Como avaliar o humanismo dentro dos padrões contemporâneos?

Como disse Thomas Hobbes, “o homem é o lobo do próprio homem.”  Verdade. Temos uma moral (costumes e leis de uma época para determinado povo) própria do ego (centro da consciência que é o responsável pela percepção corporal e história de vida, que atua se relacionando com o mundo interno, do inconsciente, e com o mundo externo, dos fenômenos que nos envolvem, sua atuação é discriminatória por excelência). Temos também o Self (centro e totalidade psíquica, corresponde a imagem de Deus em nós, aquele que verdadeiramente dirige nossos passos) que, diferente do ego, é ético e ética é atemporal e aespacial, podemos dizer a discriminação suprema. Assim, vemos o homem tão desconectado com essa esfera da totalidade psíquica, tão centrado no próprio ego, apartado de uma esfera gigante da humanidade.

O homem “egoísta”, centrado nos interesses do próprio ego, pensa primeiramente e, infelizmente, algumas vezes, unicamente em seus desejos e ambições.  O outro não lhe afeta. Pura ilusão. Na esfera do inconsciente coletivo somos todos UM. Não temos um inconsciente coletivo, é ele que nos tem. Este inconsciente coletivo contém em si toda herança espiritual da evolução da humanidade. Como diz Jung, ele nasce sempre de novo na estrutura cerebral de cada um de nós. Não só a mitologia e as lendas constituem esse inconsciente coletivo, mas toda experiência repetitiva e fatos relevantes (arquétipos) da história.

Dessa maneira, não estamos nunca separados dos outros seres humanos, somos internamente afetados por tudo que acontece no mundo. A separação é uma ilusão da consciência, no íntimo estamos todos conectados, influenciando e sendo influenciados. Os sofredores de todo planeta estão em nós. Os aflitos dos países em conflito, os famintos das periferias, os drogados exilados da humanidade, os atípicos, os desesperados, os doentes, os moribundos…todos fazem parte do mesmo inconsciente coletivo, são influenciados por nós, mas, também, nos influenciam. Somos uma só humanidade, a separação é uma ilusão egóica.

Nossas personas (“máscaras” de adaptação coletiva, através das quais buscamos ser aceitos) não são nossa personalidade, mas atores que atuam, através de nós, em papéis   sociais. Muitas vezes nos identificamos com estes personagens perdendo a verdadeira noção de quem somos realmente. Mas, muito mais sério, é nossa relação com o mundo. Vivemos de “projeções” do nosso mundo interno, nossa sombra (tudo que foi contido, rejeitado ou impedido de se manifestar), nosso lado trevoso (porque não está na luz da consciência) onde existem tesouros de potenciais não desenvolvidos, mas, principalmente, o mal em nós. Tudo que não pode ser mostrado, que não é aceito, que é “pecado”. Portanto, somos luz e sombra, bem e mal. Nossas polaridades nos fazem “humanos, demasiadamente humanos” como diria Nietzsche.

Se reconhecêssemos isso não faríamos tantas discriminações, tanto separatismo, tanta falta de fraternidade. A humanidade seria uma comunidade de irmandade. Afinal, no íntimo, não somos tão diferentes daqueles que rejeitamos.

– Pandemia

Avançamos em áreas primitivas, tomamos posse de lugares em que o ecossistema era preservado e desconhecido, com isso, abrimos as barreiras de proteção de espécimes nocivas ao homem das quais não tínhamos conhecimento e proteção.

Há alguns anos o mundo todo entrou em choque com uma possibilidade epidêmica do “ebola”, fatal ao ser humano. Conseguimos controlar. Agora, em era tão desenvolvida, em que o homem avançou tanto em conhecimentos os mais diversos nos confrontamos com uma pandemia.

O “corona vírus” chega dizimando um número imenso de vidas. Cria pânico, medo, desestabiliza a economia mundial, cria uma multidão de desempregados e famintos. E ainda não acabou. Não sabemos a real proporção dos danos, as sequelas possíveis, consequência da contaminação, as mutações nos amedrontam porque desconhecemos o potencial danoso que podem provocar.

Porém, o mais cruel, o que faz doer, desacreditar no ser humano, é o descaso com que vários dirigentes encaram e enfrentam o problema. Ironizar dos sofredores e mortos, desconsiderar o sofrimento de tantas famílias, propor saídas que a própria ciência justifica como não corretas, em meio a tanto terror ignorar as saídas preventivas, como as vacinas, as máscaras, o isolamento, desviar dinheiro público para fins escusos, dinheiro da saúde negociado ao preço de sangue, de morte, de descaso, isto é o Mal.

– O Mal

O mal é o oposto do bem na doutrina maniqueísta donde veio Agostinho (conhecido por muitos como o Platão cristão), como convertido precisou rever a natureza do mal. Solilóquios: “Desejo conhecer Deus e a alma. E nada mais? Nada mais, absolutamente”. Deus e alma não requerem, para Agostinho, pesquisas distintas, porque Deus se encontra na própria alma. “Deus está na alma e revela-se na mais recôndita interioridade da própria alma. Procurar a Deus significa procurar a alma e procurar a alma significa reclinar-se sobre si mesmo, reconhecer-se, na própria natureza espiritual, confessar-se(….)Esta atitude não consiste em descrever para si e os outros as alternativas da própria vida interna ou externa, mas em pôr a claro todos os problemas que constituem o núcleo da própria personalidade”, após seus anos de inquietação, em que se dissipou e divagou desordenadamente, percebe que tudo o que buscava e precisava realmente era a verdade e que essa verdade é o próprio Deus: “Não saias de ti mesmo, volta a ti próprio, no interior do homem habita a verdade; e se verificas que a tua natureza é mutável, transcende-te para lá de ti mesmo (De vera rel., 39). Apenas o retorno a si próprio, o encerrar-se na própria interioridade é verdadeiramente o abrir-se à verdade e a Deus. É necessário chegar até ao mais íntimo e escondido núcleo do eu para encontrar mais além dele a verdade de Deus” (N. ABBAGNANO. História da Filosofia. Vol. II. Págs 205/6/7). Deus é, pois, a incorruptibilidade, na medida em que é o próprio Ser. Donde então podemos imaginar a natureza do mal? O mal absoluto é o nada absoluto. O mal é o pecado e a deficiência da vontade que renuncia ao ser e se entrega ao que é inferior. Assim: “Jung ressaltou a função moral da reflexão humana e da consciência no processo em que a imagem do deus patriarcal se transforma e concorre para uma estrutura interior do eu. O modelo de Jung não omite uma percepção consciente da sombra, que na teologia é expressa pela doutrina da substancialidade do mal (A psychological approach to the Trinity. P. 134/136):

          ´Uma das raízes mais fortes do mal é a inconsciência…Eu gostaria que ainda estivesse nos evangelhos a declaração de Cristo: Homem, se sabes o que fazes, és bendito, mas, se não sabes, és maldito e um transgressor da lei…Esse bem poderia ser o lema de uma nova moralidade”.( Natan SCHWARTZ-SALANT. A personalidade limítrofe. Pág. 121.)

          Tomás de Aquino também admite a doutrina platônico-agostiniana da não-substancialidade do mal: “o mal não é senão ausência do bem(…) O mal é de duas espécies: pena e culpa”

          Jung não compactua com a doutrina do mal como privatio boni, que entende que o mal é uma simples ausência do bem. Para Jung é o contrário, ele acentua “a realidade substancial do lado sombrio da psique. Do ponto de vista mitológico, este lado sombrio é o Demônio. Além disso, Jung acentuava que: ´a sombra e a vontade em oposição é a condição necessária a toda realização´. Só com uma integração consciente da sombra é possível a efetivação do numinoso positivo. Isto significa que um indivíduo vive com uma percepção aguda de sua natureza sombria, na qual há um alinhamento com a atração pela morte. Essa dinâmica inclui características psicopáticas que atuam sem qualquer sentido moral. Quando a sombra e as suas consequências destrutivas são integradas, o alinhamento consciente com o numinoso positivo torna-se uma questão ética, uma questão de escolha. Deve-se tomar o partido, ou de Deus, ou do Diabo. Só com a integração da sombra pode de fato o indivíduo desenvolver a força de ego necessária a um relacionamento ativo com o numinoso” (Natan SCHWARTZ-SALANT. A personalidade limítrofe. Pág. 121.)

Não podemos ignorar o mal para não sermos tomados por ele, como um complexo que constela e assume o lugar do ego, porque, sim, o mal também está em nós, precisamos ampliar a consciência para não sucumbirmos ao nosso lado sombrio. Só com um processo de vontade consciente poderemos nos render ao Self (a imagem de Deus em nós) e adquirir forças para enfrentar esse lado nefasto em nós e na sociedade, principalmente em relação aos homens de poder. Empatia, essa é a chave. Ver o outro, sentir o outro como o irmão que em verdade ele é.

Apesar do Mal que com tanta força constelou durante esta pandemia devemos buscar o Bom, o Belo e o Verdadeiro e reverter o quanto for possível este desvario que assola a humanidade durante esta pandemia.

– Conclusão

Boff nos traz uma nova visão de mundo concebida por cientistas modernos: “O grupo de cientistas de Princeton e Pasadena que buscam uma reaproximação entre ciência, filosofia e religião, autodenominando-se ambiguamente ´neognósticos`, sustenta, como tese fundamental de sua basic cosmology, que ´o mundo é dominado pelo Espírito e é feito pelo Espírito`. A metáfora dessa nova cosmologia é a do jogo. Como diz um cientista teólogo da Comunidade Européia, ´o jogo nos comunica a idéia de complexidade, de lógica não-linear, mas também da implicação essencial dos jogadores e de sua criatividade; o ser humano não é mais espectador passivo de um mundo do qual se sente excluído`. Essa cosmologia é integradora” Ecologia, Mundialização, Espiritualidade. Págs. 66/67).

  É oposta a sociedade misógina, opressora e excludente. É uma cosmologia que reinstaura a relação, o jogo. Esse é o ensinamento da nova física, nada existe sem relação, e tudo depende de opções, do jogo que escolhemos jogar.  

Esta é a chave, o novo humanismo deve principiar na “relação”, no “jogo” do homem com seus iguais, do homem com a Natureza e do homem com Deus. Entendermos que o Espírito permeia todo o Cosmo.

A pandemia deve servir para nossa evolução espiritual. Precisamos aprender a servir, como diz Waldemar Magaldi Filho em suas aulas: “- Quem não vive pra servir, não serve para viver.”. Que todas estas mortes, esse sofrimento, esse isolamento nos aproximem do Sagrado para reconhecermos o Mito do nosso Significado, o propósito da vida de cada um de nós.

Não podemos voltar aos velhos costumes, egocêntricos, separatistas. Precisamos desenvolver um novo modo de “jogar”, onde cada um é imprescindível, onde nenhum ser fica fora da jogada porque absolutamente esta é a regra: todos juntos.

 O antídoto para o mal depende da conscientização de que somos luz e sombra e de que o mal e o bem são opostos complementares que coabitam na nossa essência, para que possamos agir com a consciência e a lucidez da consequência dos nossos atos e das nossas omissões, assim como se estamos servindo a alma ou apenas reproduzindo, cegamente, os padrões dominantes da persona materialista, competitiva e egoísta, presente neste sistema excludente e destrutivo.

Dra Ercilia Simone D. Magaldi

Referências:

Abbagnano, Nicola. Diccionário de filosofia, Fondo de Cultura Econômica. México.

_________ História da Filosofia. Vol. II, Ed. Presença, 1969, Lisboa

Boff, Leonardo.  Ecologia, Mundialização, Espiritualidade. Ed. Ática. 2000 SP

Chardin, Teillard de. O Fenômeno Humano, Ed. Cultrix , 1995, SP

 Jung, Carl G. Psicologia do Inconsciente, Ed. Vozes. 2006, Petrópolis

Sêneca. Sobre a Brevidade da Vida, Ed. Nova Alexandria, 1993. SP

Schwartz-Salant Natan . A personalidade limítrofe.

Este artigo foi para a Revista Pastoral 2022.

E. SIMONE MAGALDI – 02/03/2022

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