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A tentativa de alcançar o inalcançável

Reflete-se como a autocobrança e o perfeccionismo, alimentados por uma sociedade produtivista e meritocrática, levam a um ciclo de autoexploração, frustração e esgotamento. Utilizando referências filosóficas e mitológicas, o ensaio aborda a dualidade entre a tentativa de alcançar uma "melhor versão" de si mesmo e a inevitável sensação de fracasso, destacando o impacto dessas exigências na psique, especialmente na feminina. Ao tentar atingir o inalcançável, a verdadeira essência humana e a criatividade acabam reprimidas, limitadas por uma busca infindável pela perfeição.

Sabemos que a perfeição é inalcançável, que somos falíveis e que o erro é próprio da nossa humanidade. Mas por que muitos sofrem e se punem quando não conseguem corresponder às altas expectativas que criam para si mesmos? Neste ensaio, abordaremos a autocobrança, perfeccionismo, culpa, produtividade, performance e possíveis impactos na saúde psíquica.

Sofrimentos psíquicos enfrentados não se apresentam somente como resultado da experiência e história pessoal. Somos fruto igualmente da cultura e de um contexto social.  Via de regra, crescemos em um meio ocidental produtivista regido pelo verbo poder, em que “se eu me dedicar, querer, me esforçar e trabalhar muito, eu posso”. O velho lema do ‘querer é poder’.

Nessa dinâmica é preciso estar motivado, ter positividade, acreditar que você é o responsável central pelo seu sucesso ou fracasso. Já que sem esforços não há ganhos (“no pain, no gain”). Além de louvar a ideia de self-made man, que é erguida no contexto meritocrático como a inspiração maior, uma vez que nos é vendido que com dedicação, persistência e trabalho duro tudo é possível.

O filósofo Byung-Chul Han nos apresenta que o dever era a tônica de uma sociedade voltada à disciplina e às proibições. Mas agora presenciamos uma sociedade de desempenho pautada pelo verbo poder. A partir de um determinado ponto da produtividade, o dever se choca rapidamente com seus limites. É substituído pelo verbo poder para a elevação da produtividade.

O apelo à motivação, à iniciativa e ao projeto é muito mais efetivo para exploração do que o chicote ou as ordens. (HAN, 2017, p.20)

As duras imposições que muitas vezes nos auto-submetemos é um verdadeiro chicote a nos molestar. Não somos apenas vítimas, somos também nossos próprios algozes, em um mecanismo de autoexploração que nos dá a sensação de liberdade (HAN, 2012, p. 22). Parece que optamos pelo autodesenvolvimento e pelo melhoramento contínuo. Parece que estamos tentando alcançar a famosa “melhor versão” de nós mesmos. Contudo, as demandas são sempre elevadas e não conseguem ser cumpridas em toda sua extensão, restando dentro de cada um a sensação de fracasso que permeia a vida de um modo envenenador.

Existe uma régua tão elevada e exigências, por vezes extravagantes, que nunca se pode alcançar uma satisfação e uma tranquilidade. Sobra um resquício, uma impureza, um ruído mental, que dá uma carga de como existisse sempre algo que ainda precisa ser feito. Nunca acaba, pois o lugar de perfeição utópica nunca é atingido.

A todo tempo aparenta-se estar em atraso, em falta, em dívida.

Com um sentimento constante de acúmulo de atividades e obrigações, um cansaço quase que permanente se instala. Este nunca pode ser completamente sanado, uma vez que a lista de tarefas a se realizar segue como um check-list sem fim. Nunca existe um último item a ser ticado, pois novas demandas surgem a todo instante.

Para se somar a essa carga já extenuante, não é preciso somente realizar e cumprir as obrigações. É preciso fazer muito bem feito. Reside aqui a idealização das ações, que duramente se concretizam na realidade de modo diferente da fantasia impecável das ideias. Ao ver o produto imperfeito das ações, ocorre uma frustração pelo julgamento sempre presente. A consciência treinada a separar, distinguir e classificar prontamente aponta um culpado. Nessa dinâmica, muito frequentemente o indivíduo se martiriza por não conseguir e não ser bom o suficiente. Logo, “o excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa auto-exploração, que é mais eficiente que uma exploração do outro devido ao sentimento de liberdade” (HAN, 2012, p. 8).

Julgamentos, como o de fracasso, culpabilização e vitimização, passam a crescer em uma espiral.

Quando observamos mais especificamente a psique feminina, Marion Woodman traça em paralelo com a deusa Atena, a deusa da inteligência, e as mulheres na contemporaneidade, em que muitas buscam um nível elevado de excelência e perfeição no âmbito profissional e pessoal. A deusa, na narrativa mitológica, nasce armada com uma lança e com um grito de guerra ao sair da cabeça de seu pai Zeus, local onde foi gestada após o Senhor do Olimpo ter engolido Métis, mãe de Atena.

Atena nascendo da cabeça de Zeus

Em paralelo à Palas Atena, a gloriosa deusa de olhos brilhantes, nas palavras de Homero, encontramos a Medusa. Esta antes de ser a mortal górgona temida por petrificar quem a olhasse, era uma linda jovem, a qual ofendeu Atena, que como vingança transformou-a no temido monstro de cabelos de serpente, presas pontiagudas, mãos de bronze e asas de ouro.

Medusa teve seu fim quando Perseu cortou-lhe a cabeça com ajuda das sandálias aladas e da espada de Hermes, do escudo espelhado de Atena e do capacete de Hades, capaz de o tornar invisível. Do corte fatal no pescoço de Medusa, saem Pégaso, uma das mais belas criaturas da mitologia grega, e gigante Crisaor. Em seu regresso o herói, resgata a princesa Andrômeda, que estava presa para ser dada em sacrifício, casando-se depois com ela.

Tomando a narrativa grega, Woodman sugere que as mulheres tornaram-se Atenas da modernidade. Elas são nascidas das testas de seus pais, do centro do funcionar racional e diretivo, ao mesmo tempo em que buscam excelência em tudo que desempenham. Externamente sustentam uma figura de perfeição. Parece que a vida está impecável: trabalho, roupas, casa. Mas essa camada superficial, por vezes, encobre uma prisão em vícios, como a compulsão alimentar, a limpeza excessiva e o perfeccionismo. A vida torna-se estéril e no cerne destes vícios, encontra-se a deusa enfurecida (WOODMAN, 2002, p.9)

Dentro dessa configuração, simbolicamente a Medusa está afundada e reprimida nas trevas há longo tempo. Sua presença se manifesta pelo desejo incessante de prazeres efêmeros, conquistas materiais ou pelo alcance de metas estabelecidas. Essa imagem sombria lembra a ira e a repressão.

A mera possibilidade de olhar a Medusa que habita nosso íntimo gera uma petrificação pelo medo:

“O complexo de Medusa em sua forma extrema de fato petrifica, pois detém o fluxo da vida, o dar e receber natural de energia.”

WOODMAN, 2002, p.54

A realidade em que estamos imersos no presente é uma construção cultural de uma era patriarcal que preza pelo resultado, acúmulo e especialização. Lentamente uma parte do princípio feminino foi arrasado e o poder adentrou no lugar do amor e da capacidade de relacionar-se. O desempenho, a todo instante cobrado e exigido que aumente mais e mais, traz o apelo à perfeição.

 Compelidos a fazer o melhor na escola, no trabalho, nos relacionamentos, em cada aspecto de nossa vida, tentamo-nos tornar verdadeiras obras-primas. Nessa árdua luta para criar a nossa própria perfeição, esquecemos que somos seres humanos. Por um lado, tentamos ser a eficiente e disciplinada deusa Atena e, por outro, somos forçados a afundar na voraz e reprimida energia da Medusa. (WOODMAN, 2002, p. 9)

Quando nossos olhos estão voltados para fora, medimos facilmente nosso valor, nossa percepção de quem somos e nossa felicidade por aquisições externas. Entretanto, a jornada interna de mergulho em si passa pelo reconhecimento de fraquezas, incapacidades e limitações. Não com o olhar condenatório de um juiz interno cruel. Mas com a justa medida do entendimento que nossa natureza é falível e imperfeita. Nossa vida transita no campo da possibilidade de expressão do nosso ser e na busca por descortinar as camadas superficiais que nos afastam do entendimento de nós mesmos.

Ex perfecto nihil fit (Nada se pode fazer com o que já é perfeito), dizem os velhos mestres, ao passo que o imperfectum (inacabado) traz dentro de si os germes de um aperfeiçoamento futuro. O perfeccionismo termina sempre em um beco sem saída, ao passo que a integralidade carece somente dos valores seletivos. (JUNG, 2013, §620)

Na busca pelo perfeito, tenta-se alcançar os deuses.

Contudo a condição humana nos proporciona a capacidade de completude, jamais de perfeição. A própria mitologia é profícua em exemplos de mortais que intentavam ser como deuses ou mais que eles. Todos recolheram o peso de sua desmedida e encontraram ruínas em seu caminho. Incorrer na hybris é esterilizante e mortal.

Na tentativa de alcançar o inalcançável, a realidade fica rígida e engessada. Somente nas frestas do imperfeito, do humano, da queda é que abriremos espaço para a beleza humana, para a expressão e para a criatividade pulsante da vida.

Lorena de Sousa Oliveira – Membro analista em formação pelo IJEP

Dra. Simone Magaldi – Membro didata do IJEP

Referências:

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Volume I, Petrópolis, Vozes, 1986.

JUNG, Carl Gustav. Resposta a Jó, Petrópolis. Vozes, 2013.

HAN, Byung-Chul. Agonia do Eros. Petrópolis. Vozes, 2017.

 ___________. Sociedade do cansaço. Petrópolis, Vozes, 2019.

WOODMAN, Marion. O vício da perfeição: compreendendo a relação entre distúrbios alimentares e desenvolvimento psíquico. São Paulo, Summus, 2002.

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